Ignorância e votação
"Do mesmo
modo que não queremos os bêbados a conduzir, também não queremos os ignorantes
a votar"
"Quando obrigamos todos os cidadãos
a votar, inundamos as urnas com os menos informados", defende, em
entrevista à VISÃO o cientista político Jason Brennan
Um jornalista deve prevenir os seus leitores: esta entrevista tem tanto de
provocação quanto de sedução. Jason Brennan é um cientista político americano.
Nasceu em 1979, doutorou-se em Filosofia pela Universidade do Arizona, sendo
atualmente professor associado na Universidade de Georgetown, em Washington. No
livro Contra a Democracia (Gradiva), defende que a democracia não só não é o
melhor dos regimes (à exceção de todos os outros, prosseguindo com a
citadíssima frase de Churchill), como se tem revelado muito pouco eficaz.
Argumenta ainda que a democracia é, de forma irrealista, julgada pelas suas
intenções e não pelos seus resultados. Concorde-se ou não, as suas ideias podem
ajudar a explicar a encruzilhada de populismos a que temos assistido nos países
ocidentais.
Em Portugal, vamos ter
eleições autárquicas no próximo fim de semana e o Governo quer proibir a
realização de jogos de futebol em dias de sufrágio como uma maneira de tentar
travar a abstenção.
O que pensa sobre isto?
Não sei se alguma vez algum país experimentou proibir jogos de futebol. Mas
sei que, na Austrália, por exemplo, decidiram fechar os bares nos dias das
eleições e que a medida parece ter surtido efeito. Por outro lado, tenho de
perguntar: as pessoas não vão votar porque vão ver jogos de futebol?
É que, provavelmente, essas pessoas não
são os eleitores mais informados e motivados e, de certa forma, a medida estará
a fazer com que as urnas sejam inundadas por gente que, na verdade, não se
importa muito com o assunto.
O que motiva, então, o
voto?
Naturalmente que as pessoas que se interessam mais por política também são
aquelas que participam mais nos atos eleitorais. Tendem a estar mais
informadas, mas também a ser extremamente preconceituosas. Interessam-se imenso
sobre o seu próprio partido e veem os seus adversários, membros dos outros
partidos, como se fossem estúpidos, uma espécie de encarnação do mal. Não
possuem, digamos, uma mente muito aberta. Pelo contrário, os eleitores que não
votam costumam ter opiniões fracas e muito poucos conhecimentos. Resumindo,
basicamente, temos: pessoas preconceituosas altamente motivadas e pessoas
ignorantes e desmotivadas. E são estes os dois grupos que existem numa
democracia.
No caso dos
abstencionistas, é qualquer coisa como “não quero saber dos problemas da minha
comunidade, só me interessam
os meus problemas”?
Acho que não, que não é propriamente isso. Porque esses eleitores não se
interessam por política, mas ao mesmo tempo querem que as coisas melhorem.
Podem, por exemplo, pensar que a democracia não é a melhor forma de resolver os
seus problemas, que existem outras maneiras de se envolverem na comunidade.
Presumo que seja contra
o voto obrigatório, como existe em alguns países.
Sou contra, sim. Porque, ao contrário do que é habitual dizer-se, o voto
obrigatório não traz grandes benefícios. Não precisamos que toda a gente vá
votar, há maneiras mais baratas de o fazer, basta selecionar 20 mil pessoas,
não é preciso forçar 10 milhões ou 210 milhões, como acontece nos Estados
Unidos da América, a ir votar. Quando obrigamos todos os cidadãos a ir votar,
estamos a inundar as urnas com os eleitores menos informados e ignorantes.
E isso não é bom. Do mesmo modo que não
queremos pôr os bêbados a conduzir, também não queremos pôr os ignorantes a
votar.
No mundo do século XXI,
com menos guerras e menos regimes ditatoriais do que aqueles que existiram no
passado, os cidadãos tomam como adquirido direitos fundamentais como o direito
à paz, o direito ao trabalho, a liberdade de expressão?
Na ciência política, há muita literatura que defende que os níveis de
abstenção das nossas sociedades têm a ver não tanto com uma insatisfação em
relação à democracia, mas antes com uma satisfação plena: as coisas funcionam
muitíssimo bem, não requerem o meu contributo e, portanto, posso ficar em casa.
Segundo estes estudos, os insatisfeitos seriam aqueles que mais iriam às urnas.
No entanto, em meu entender, não pode dizer-se que, nos Estados Unidos da
América e na Suíça, países com níveis de abstenção elevados, as pessoas não
participam por estarem satisfeitas com a democracia. Existem muitos outros
fatores que contribuem para essa abstenção.
Existem razões,
portanto,
para estarmos
preocupados?
Nos anos 40 do século XX, só
existiam duas ou três grandes democracias,
eram monarquias
ou regimes de partido
único, na maioria. As pessoas preocupavam-se porque as democracias eram muito
frágeis e, agora, julgam que já não
se justifica terem tantos receios.
No entanto, na minha opinião, as pessoas
deveriam estar tão preocupadas com a democracia como estavam no pós-guerra.
Todos os anos, a revista britânica The Economist divulga um índice do estado
das democracias e, nos últimos cinco, seis anos, o nível global da democracia
tem descido. O Governo americano possui um índice similar, chama-se Freedom
House e, nos últimos tempos, também tem revelado que a democracia está em
declínio. Assim, eu penso que, confrontando com o mundo de há 40 anos, o dos
nossos dias é muito mais democrático. Contudo, se o compararmos com o de há
cinco ou seis anos, o mundo está, hoje, menos democrático.
No livro Contra a Democracia, argumenta que a democracia tem sido julgada pelas suas intenções e não pelos seus resultados. Ter todas as pessoas a votar não é um bom resultado por si só?
No livro Contra a Democracia, argumenta que a democracia tem sido julgada pelas suas intenções e não pelos seus resultados. Ter todas as pessoas a votar não é um bom resultado por si só?
É só um ideal tonto?
Num certo sentido, é um ideal tonto, sim. Porque a verdade é que as pessoas
têm expectativas irrealistas sobre o modo como a democracia funciona. No ano
passado, saiu um livro muito interessante sobre isto: Democracy
for Realists, de Christopher
H. Achen e Larry Bartels. Os autores
contam uma história muito parecida com a minha, embora não tirem uma conclusão
tão radical quanto a minha. Chamam-lhe teoria folk da democracia e descrevem a
democracia do seguinte modo: as pessoas têm um entendimento bastante razoável
sobre quais são os seus interesses, olham cuidadosamente para os vários
candidatos e partidos políticos e escolhem aqueles que se aproximam mais dos
seus interesses.
E não é assim?
Isso é o que ouvimos nos bancos de escola e o que lemos nos jornais. Mas
trata-se de uma história completamente falsa, todas essas premissas estão
erradas. Muito poucas pessoas sabem aquilo que os partidos defendem, muito
poucas têm noção de que tipo de políticas beneficiam os seus interesses, as
pessoas não votam com base na política, votam com base na sua identidade: eu
vou votar nos democratas-cristãos porque as pessoas como eu votam nos
democratas-cristãos, eu vou votar nos verdes porque as pessoas como eu votam
nos verdes.
E isso também não é
legítimo? Votam livremente.
Mas não é eficaz. Origina que os partidos atuem de forma bastante
independente e, como os eleitores não têm registo ou memória daquilo que os
partidos fizeram, não os penalizam pelos seus erros nem os recompensam pelas
coisas boas. Realisticamente, isto é a democracia. Há quem se refira à
democracia como um mercado, embora eu prefira outra metáfora. Um professor
chega à primeira aula do semestre e propõe o seguinte: daqui a seis meses, os
alunos vão ter um exame, que conta 100% para a nota; a nota que terão não
corresponde à nota individual, mas antes a média de todas as notas do exame.
Num sistema educativo destes, julgo que ninguém iria estudar e todos seriam
maus alunos. É assim que funciona a democracia: é como se, de quatro em quatro
anos, os cidadãos fossem fazer um exame e, no final, tivessem que dividir a
nota com todos os outros cidadãos desse país.
Pode sintetizar a sua
trilogia de cidadãos, inspirada no futebol, em O Senhor dos Anéis e em Star
Trek?
Os hobbits não se interessam pelo mundo exterior, só querem levar a sua
vida mundana, não se preocupam com o que está a acontecer e, por isso, não
querem salvar o mundo. Uma pessoa assim não participa na política, não sai de
casa para votar. Os hooligans sabem tudo sobre o jogo, decoram factos e números
sobre jogos de há 40 anos, mas são altamente preconceituosos. Acham que todas
as pessoas da sua equipa são boas e que todas as outras são más. Na política,
isto corresponde a um partisan.
Os hooligans costumam estar muito bem informados,
embora sejam incrivelmente preconceituosos.
E os vulcanos,
considera-se
um vulcano?
O vulcano é o tipo ideal, uma pessoa perfeitamente racional, que processa a
informação de forma científica. Falo nos vulcanos não porque me considere um
vulcano nem porque ache que só eles deveriam governar, mas porque, quando lemos
o que dizem os filósofos sobre a democracia, eles presumem que as pessoas se
comportam como vulcanos. Lamento, mas não se comportam: a democracia é o
domínio dos hobbits e dos hooligans. E isto significa que nós temos de baixar
as nossas expectativas em relação à democracia.
E como implementar o que
propõe – uma epistocracia, uma espécie
de governo dos sábios, como
em A República, de
Platão
– no século XXI?
Uma epistocracia distribui o poder político na proporção do conhecimento ou
da competência. Porém, o sistema político que eu defendo é o sufrágio universal
com veto epistocrático. Isto significa que permanecem no sistema algumas das
instituições e órgãos políticos das democracias, que o sufrágio é universal,
mas que o sistema inclui também um conselho epistocrático composto por cidadãos
com fortes conhecimentos de sociologia e de filosofia política.
Este sistema seria
importante
para deter a ascensão
dos populismos a que temos assistido?
Penso que sim. Temos muitos dados sobre isto, ainda que sejam sobretudo
dados da realidade americana. Quando olhamos para os cidadãos que têm votado em
candidatos e partidos políticos populistas, observamos que têm baixos níveis de
informação.
E, pelo contrário,
verificamos que os cidadãos que têm muita informação conseguem prever algumas
atitudes políticas dos populistas. Vemos no discurso populista uma desconfiança
no que diz respeito aos estrangeiros, receios relacionados com o comércio
internacional, uma combinação entre a melhor política económica e uma política
de defesa e de segurança à direita, um certo apoio a intervenções militares…
Tudo isso são sentimentos que, combinados com baixos níveis de informação ou
até de desinformação, podem ser explosivos. Na minha opinião, o populismo é um
movimento baseado na ignorância.
Imagino que tenha
escrito o seu livro antes da eleição de Trump. A sua vitória foi a tradução da
sua teoria para o domínio dos factos?
Por acaso, acho que o que fortaleceu a
minha teoria não foi tanto a vitória de Trump [eleições de novembro de 2016]
mas antes a vitória do Brexit uns meses antes [no referendo de junho de 2016].
De resto, na semana seguinte à votação, o meu livro, Contra a Democracia, foi
traduzido em cinco ou seis línguas europeias.
O Brexit é, de facto, um bom exemplo das minhas
preocupações sobre a ignorância dos eleitores. Depois do referendo, um número
significativo de britânicos respondeu a uma série de questões acerca do seu
voto para uma sondagem. Perguntaram coisas como: Quantos imigrantes da União
Europeia vivem no Reino Unido? Quanto dinheiro é transferido pelo Reino Unido
para a Europa? Chegou a haver eleitores a sobrestimar a realidade em cerca de
400 por cento.
Sara Belo Luis
ENTREVISTAS VISÃO
08.10.2017 às 9h00
Entrevista publicada na VISÃO 1282 de 28
de setembro
Lola
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