Sentido da Vida
As questões sobre o sentido e o
propósito [da vida] nem sempre perturbaram as pessoas como acontece hoje. Numa
era religiosa estas questões eram deixadas ao cuidado de um sábio Criador. Este
Criador, acreditava-se, fez o mundo, e tudo o que nele existe, com um
propósito. O Homem, e cada homem individual, era parte de um grande desígnio.
Além disso, o homem ocupava um lugar de especial importância nesse desígnio,
tendo sido feito ‘à imagem de Deus’ por um acto especial de criação. Foi-lhe
dado o poder da razão que o colocou acima dos animais. Além disso, foi dotado,
ao contrário destes últimos, de uma alma imortal. Isto significava que a morte
não era o fim da vida de uma pessoa, mas apenas uma passagem para outra forma
de existência superior, de acordo com o propósito de Deus. A terra e todas as
suas criaturas foram dadas ao homem. Neste grande plano, a existência delas
está ao serviço dos humanos. O lugar onde os humanos habitam, a terra, ocupava
um lugar central no cosmos, tendo o sol e os outros corpos celestes sido
criados para seu benefício.
O que resta destas crenças hoje? Hoje
acreditamos que a terra é um planeta menor circulando em torno do sol, ele
próprio uma estrela indistinta, uma entre um vasto número de estrelas
pertencentes a uma galáxia que, por sua vez, faz parte de um conjunto
inumerável ou mesmo infinito de galáxias. Este planeta menor apareceu devido a
uma explosão casual de materiais cósmicos, sofreu vários processos químicos e
continuará a existir e a ser uma casa onde se pode viver até que as condições
voltem a mudar, quem sabe se devido a uma pequena mudança da temperatura do
sol. É-nos dito que a vida surgiu provavelmente de uma combinação química
acidental e que há razões para pensar que as mesmas condições possam surgir, ou
tenham surgido, noutra parte do universo. A teoria da seleção natural diz-nos
que a espécie humana não existe por um ato especial de Deus. Em vez disso, é o
resultado de um processo de seleção cego decorrente da luta pela sobrevivência,
tendo evoluído por pequenos passos impercetíveis a partir de criaturas
semelhantes a macacos, sendo o chimpanzé moderno um primo próximo. Os
psicólogos dizem-nos que o pensamento e ação humanas são em larga medida
determinados por processos obscuros inconscientes e não pela luz da razão. Além
disso, apesar de ser válido que o homem detém poderes de discurso e de
raciocínio especiais, está longe de ser claro que devamos considerar estes
poderes mais especiais que estes ou aqueles poderes notáveis característicos de
outros animais. Não há razão para pensar que o homem é melhor ou ‘superior’ e,
olhando para as suas atividades destruidoras, até seria razoável fazer o juízo
oposto.
E que dizer da crença no plano de Deus e
também da vida após a morte? Há ainda muita gente que defende estas ideias.
Trata-se, no entanto, de uma minoria, pelo menos no mundo ocidental. Mesmo os
crentes religiosos, cercados por uma cultura secular, não se sentem
confortáveis com as perspetivas religiosas sobre o sentido e propósito como
antigamente.
As conceções modernas do homem e do
mundo não resultam meramente da substituição de uma explicação ou teoria por
uma outra. Houve uma mudança no próprio conceito de explicação e quanto ao que
uma explicação deve ser. Antes pensava-se que o único tipo de explicação real
ou realmente satisfatória teria de referir-se a um propósito. Explicar-se-ia um
fenómeno dizendo para que servia, qual o propósito que lhe dava um homem,
animal ou Deus. Havia também a explicação causal que se referia ao que precedeu
o fenómeno, mas este tipo de explicação era entendido como incompleto e
inferior. Era apenas com o outro tipo que podíamos obter uma compreensão real.
Nos tempos modernos, porém, e especialmente desde a época de Hume, a explicação
causal suplantou largamente o outro tipo, o tipo teleológico. As teorias
científicas modernas não são expressas em termos teleológicos e as modernas
leis da natureza não são acerca de fins e de propósitos, mas acerca de
regularidades observadas no mundo. Explicamos porque acontece algo, não olhando
para a frente em direção a um fim ou objetivo, mas olhando para trás para uma
causa antecedente.
Num certo sentido, estas explicações são
menos satisfatórias do que as explicações teleológicas. A explicação que faz
referência às leis da natureza diz, com efeito, que um acontecimento ou
sequência de acontecimentos ocorre porque as coisas sempre assim ocorrem.
Porém, isto é apenas ligar um facto bruto (um facto particular) a outro (uma
regularidade geral). Nesse sentido, diz-se muitas vezes que a ciência moderna
é, no fim de contas, meramente descritiva. Diz-nos como acontecem
as coisas e não porquê. Uma explicação teleológica, ao invés, dá
sentido e significado ao acontecimento. Isto é particularmente claro no caso de
uma ação humana consciente, na qual a perceção do significado da ação pode ser
dado pelo agente em termos do propósito deste ou desta. Se este tipo de
explicação pudesse ser aplicado aos fenómenos naturais em geral, também eles
teriam este género de significado. Mas, como já disse, este modo de explicar
foi largamente abandonado em favor do outro tipo de explicação, ‘sem sentido’,
que se mostrou mais frutuoso em outros aspetos.
Qual o impacte destas mudanças na nossa
conceção de nós mesmos? ‘Poderia argumentar-se, escreve Kurt Baier, que quanto
mais claramente compreendemos as explicações dadas pela ciência, mais somos
levados para a conclusão de que a vida humana não tem um propósito e, portanto,
um sentido’. Baier rejeita esta conclusão. Nota que no sentido habitual de
‘propósito’, as vidas humanas não estão menos ligadas a um propósito do que
estavam antes. Continuamos a viver grande parte das nossas vidas perseguindo
objetivos de um tipo ou de outro. A questão ‘Porque estás a fazer isso?’, ou
seja, ‘Qual o teu propósito?’, continua a ser posta tanto quanto o era antes e
uma resposta satisfatória pode ser dada em muitos casos. É verdade que algumas
pessoas vivem as suas vidas com menos rumo do que outras, mas também neste caso
sempre assim foi e nada tem a ver com os desenvolvimentos científicos e com a
moderna conceção do lugar do homem no mundo. De facto, segundo Baier, ‘A
ciência não só não nos roubou nenhum propósito que tínhamos antes, mas
apetrechou-nos com um poder muito maior para atingir estes propósitos’.
Baier distingue ainda um uso secundário
de ‘propósito’, aplicado a coisas e não a pessoas, como quando perguntamos
‘Qual o propósito daquele aparelho que instalaste na oficina?’ Neste caso, não
estamos a dizer que o objeto é motivado por um propósito. A ideia é antes a de
que lhe é dado um propósito, o propósito da pessoa que o fez ou instalou. É
este sentido de propósito diminuído pela perspetiva científica? Não.
Continuamos a fazer todo o género de coisas destinadas a cumprir um propósito
dizendo, neste sentido, que ‘têm um propósito’.
Mas o que dizer do homem? Pode dizer-se
que o homem, na perspetiva religiosa,cumpre um propósito, em vez de
perseguir propósitos por si. E esta atribuição de propósito,
esta resposta à questão sobre o propósito da vida, fica fora do nosso alcance uma
vez abandonada a perspetiva religiosa. Para Baier, porém, esta resposta sempre
foi desprovida de valor. ‘Atribuir a um ser humano um propósito neste
sentido... é ofensivo. É degradante para um homem ser visto como algo que
cumpre um propósito’. Ao tratar um homem dessa forma, diz Baier,
‘reduzi-lo-íamos ao nível do utensílio, do animal doméstico ou talvez do
escravo, tratá-lo-íamos, como na frase de Kant, meramente como um meio para os
nossos fins, não como um fim em si mesmo’.
Estas observações são verdadeiras e
importantes. São elas relevantes? Se nós tratarmos seres
humanos dessa maneira, como ‘cumprindo um propósito’, não os trataremos com o
devido respeito e o nosso tratamento seria moralmente ofensivo. Mas daqui não
se segue que os seres humanos seriam degradados por servir o plano de Deus, que
Ele os degrada ao tratá-los dessa forma ou ao criá-los para o Seu propósito.
Uma observação similar pode ser feita acerca da relação entre homens e animais.
A maior parte das pessoas diria que não é degradante para um animal o ser usado
para um propósito. Por exemplo, se alguém compra um cão para desencorajar os
ladrões, isto não seria moralmente degradante ou ofensivo.
Os crentes religiosos não são, e não
precisam de se sentir, ofendidos pela ideia de que existem para cumprir um
propósito de um ser superior. Podem também afirmar que isto dá às suas vidas o
tipo de propósito e sentido que a perspetiva científica só por si lhes não
poderia dar.
As observações de Baier acerca do papel
permanente e, na verdade, inevitável da existência de um propósito nas nossas
vidas não nos ajudam também quanto ao sentimento de insignificância que resulta
da revolução científica. Ficamos chocados quando tomamos conhecimento destes
factos sobre a situação humana no espaço e no tempo e ficámos chocados quando
estas ideias foram introduzidas pela primeira vez. Segue-se delas que as nossas
vidas são realmente sem sentido? É claro que não há um silogismo que procede de
premissas acerca de cosmologia ou da seleção natural para a conclusão de que a
nossa vida é desprovida de sentido. E deve notar-se, como faz Baier, que há
critérios independentes de questões de cosmologia ou de história natural que
podem ser usados para descrever uma vida humana quer como plena de sentido quer
como desprovida dele.
No entanto, a imagem científica
priva-nos de sentido numa aceção diferente. Há uma conexão entre sentido e
importância e se a imagem científica é correta, não temos a importância que
pensávamos ter. Esta conexão entre sentido e importância está refletida no uso
da palavra ‘insignificante’. Algo que não tem importância pode ser descrito
como insignificante ou (nessa aceção) sem sentido. Podemos entender desta
maneira o veredicto de Macbeth ‘a vida não é mais do que uma sombra em
movimento ... que nada significa’.
Oswald
Hanfling, The Quest For Meaning (Oxford, 1987), pp. 42-46.
Tradução de Carlos
Marques.
Lola
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