segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Noticia e Filosofia


Da notícia à Reflexão Filosófica

Morreu Capitán, o cão que dormiu 11 anos junto ao túmulo do dono

Capitán tinha uma rotina: todas as noites, durante 11 anos, ia dormir junto ao túmulo do dono em Villa Carlos Paz, um município da província de Córdoba, na Argentina. Agora foi a vez do cão rafeiro, com traços de pastor alemão, descansar. O animal, com cerca de 15 anos, acabou por morrer, segunda-feira, no mesmo cemitério.
Capitán descobriu o túmulo do dono em 2007, dez meses após a morte de Miguel Guzmán. O fiel amigo de quatro patas era conhecido e querido pelos funcionários do cemitério, recebia alimentos e tratamento veterinário.
Nos últimos tempos, Capitán já andava com dificuldade, tinha perdido parcialmente a visão e sofria de insuficiência renal.
O veterinário Cristhian Stempels afirmou ao jornal La Voz que, tendo em conta a idade e as condições de saúde, o animal poderia ter sido internado para que morresse numa clínica. Mas o médico explicou que optaram por fazer o atendimento no cemitério, onde Capitán vivia e se sentia tranquilo.
Ninguém sabe como o cão chegou ao local. A família diz que desapareceu após a morte de Miguel Guzmán e que, meses depois, foi encontrado junto ao túmulo. Foram feitas tentativas para levar o animal para casa, mas sem sucesso.
Guzmán morreu num hospital e, de acordo com os familiares, Capitán não acompanhou o velório ou seguiu o cortejo funerário até ao cemitério.
O diretor do cemitério, Héctor Baccega, contou ao La Vozque o animal chegou sozinho e deu voltas até encontrar a campa. Apesar de andar solto e dar passeios durante o dia, voltava e deitava-se em frente ao jazigo todos os dias ao fim da tarde.

O destino de Capitán ainda está por decidir. De acordo com o jornal El Clarín, as associações de proteção animal de Córdoba pedem que o animal seja enterrado ao lado do dono, mas a autarquia pretende cremá-lo, enterrá-lo numa praça e construir um monumento em sua homenagem.
A história de Capitán faz lembrar o caso de Hachiko, um cão japonês que acompanhava o dono, um professor do Departamento de Agricultura da Universidade de Tóquio, no trajeto até à estação de comboios de Shibuya. Depois da morte do dono, em 1925, o animal manteve a rotina como se o dono continuasse vivo.


Direitos dos animais e erros dos humanos


Haverá limites para o modo como os seres humanos podem tratar legitimamente os animais não-humanos? Ou podemos tratá-los de qualquer maneira que nos agrade? Se há limites, quais são? São suficientemente fortes, como algumas pessoas supõem, para nos levarem a ser vegetarianos e a diminuir, se não mesmo eliminar, o nosso uso de animais não-humanos em experiências “científicas” concebidas para nos beneficiar?
Para avaliar completamente esta questão, vou contrastá-la com duas questões diferentes: há limites para o modo como podemos tratar legitimamente as pedras? E: há limites para o modo como podemos tratar legitimamente outros seres humanos? A resposta à primeira questão é, presumivelmente, “Não”. Bem, isso não está muito certo. Há alguns limites para o que podemos legitimamente fazer com ou às pedras. Se a Paula tem uma pedra de estimação, então a Susana não pode justificadamente tirá-la da Paula ou esmagá-la com uma marreta. Afinal de contas, é a pedra da Paula.
Ou, se há uma pedra de beleza invulgar ou que seja de interesse especial para os humanos, como o “Velho Homem de Hoy” ou o Monte Rushmore, seria inapropriado, e provavelmente imoral, se eu a destruísse, vandalizasse ou se tirasse uma das suas partes para usar na minha catapulta.

Porém, estes limites surgem não de alguma preocupação directa pelas pedras; em vez disso, são impostos devido aos interesses e direitos de outros humanos. A Susana não pode levar a pedra da Paula pela mesma razão que não pode levar a borracha da Paula: é da Paula e a Paula tem direito às coisas que são suas. E ninguém pode destruir ou vandalizar objectos de grande beleza natural porque, ao fazê-lo, está a prejudicar indirectamente os interesses que os outros humanos têm nesses objectos. Então, há limites para o que podemos legitimamente fazer a objectos inanimados, mas, sejam quais forem esses limites, surgem de uma preocupação humana.1
Não é assim com o tratamento que destinamos aos outros humanos. Supomos que é inapropriado tratar um ser humano de qualquer maneira que nos apeteça. Não posso roubar outro humano; isso seria rapto. Nem posso esmagar alguém com uma marreta; isso seria, dependendo do resultado, assalto, tentativa de homicídio, ou homicídio. E a razão pela qual eu não posso fazer estas coisas não tem a ver com o que terceiros querem ou não. Tem a ver com o interesse e desejos da pessoa particular em causa. É errado da parte da Susana agredir a Paula, não porque outras pessoas gostem da Paula ou porque outras pessoas ficariam ofendidas, mas porque a Paula é uma pessoa. Ponto final.
Assim, há uma diferença fundamental entre aqueles objectos que podemos tratar como nos apetecer (excepto quando estivermos limitados pelos interesses de outros humanos) e aqueles que não podemos. As pedras vulgares enquadram-se no primeiro domínio; os humanos enquadram-se no último. E os animais não-humanos? Enquadram-se no primeiro ou no segundo domínio? Ou algures no meio?
Há razões para crer que muitos animais, e certamente os animais superiores, são mais parecidos com os humanos do que são parecidos com pedras. Assim, temos razões para crer que há limites para o modo como os podemos tratar legitimamente, independentemente das nossas vontades e desejos particulares. Ou pelo menos é isso que defenderei.
Por agora, destacarei simplesmente que estas são crenças que a maior parte de nós já tem. Isto é, a maior parte de nós presume que é ilegítimo tratar animais apenas como nos apetece. Por exemplo, a maior parte de nós pensa que é errado matar arbitrariamente um mamífero superior. Suponha-se que descobrimos que algum membro da nossa comunidade, digamos o João, tem o hábito de apanhar cães ou gatos abandonados e decapitá-los com a sua guilhotina caseira2, ou tomamos conhecimento que ele inventou uma máquina que os esquarteja. Ele usa estas máquinas porque se diverte com a dor dos animais, porque delira ao ver sangue; ou talvez seja um cientista que quer estudar a reacção deles ao stress.Neste caso, concluímos prontamente que o João é imoral. Não quereríamos que fosse nosso Presidente, ou amigo, ou vizinho, ou genro.
Resumidamente, todos parecemos concordar que há limites para o modo como podemos tratar legitimamente os animais não-humanos e que estes limites surgem devido à natureza dos animais, não apenas devido aos desejos de outros humanos de verem os animais a ser bem tratados. Isto é, esses actos são errados não apenas porque outros humanos se incomodam com eles. Pensaríamos que seriam igualmente errados se fossem praticados secretamente de modo a que mais ninguém da comunidade soubesse deles. Pensamos que são errados devido ao que acontece ao animal.
Por outro lado, estamos integrados numa cultura que usa arrogantemente animais para a alimentação, para o vestuário, para a pesquisa no desenvolvimento de novos medicamentos, e para determinar a segurança de produtos de higiene doméstica. E muitas destas utilizações requerem a inflicção de uma grande quantidade de dor a animais. Os registos de tais utilizações são prontamente disponibilizados em várias revistas académicas, e objecto de crónicas de inúmeros autores deste tópico (Ryder, 1975; Singer, 1978; Mason and Singer, 1980). Mas, para o leitor que possa não estar familiarizado com estes registos, descreverei brevemente duas maneiras em que usamos animais e que lhes infligem uma quantidade substancial de dor.
Os animais que são criados para a alimentação são obviamente criados com o objectivo claro de gerarem lucro para o produtor. Nada de surpreendente. Mas as implicações disto são directa e obviamente prejudiciais para os animais. O produtor tem duas maneiras pelas quais pode aumentar o seu lucro. Uma é aumentar os preços dos bens que comercializa, a outra é gastar menos na produção desses bens. Uma vez que há um limite para o valor que as pessoas pagarão pela carne, há uma pressão financeira considerável para reduzir as despesas de produção da carne.
Isto leva compreensivelmente à sobrepopulação nas explorações pecuárias; afinal de contas, quantos mais animais um produtor conseguir encaixar num espaço menor, menos custará a produzir carne. E há pressões semelhantes para limitar o movimento dos animais. Quanto menos os animais se mexerem, menos comem, diminuindo assim a despesa do produtor. Por exemplo, os produtores que criam galinhas tendem a pô-las em gaiolas do tipo “bateria”. Oito a dez galinhas são comummente mantidas num espaço mais pequeno do que uma página de jornal. Incapazes de andarem de forma minimamente livre ou mesmo de abrir as suas asas, muito menos de criar um ninho, os animais tornam-se agressivos e atacam-se entre si (Rachels, 1977).
As pessoas comuns parecem igualmente pouco ou nada familiarizadas com o uso extensivo de animais em experiências laboratoriais. Muitas destas experiências são apenas moderadamente significativas3; muitas envolvem uma dor prolongada para os animais. Por exemplo, N. J. Carlson administrou choques eléctricos de alta voltagem a dezasseis cães e descobriu que o “grupo de alta voltagem” ficava “ansioso” mais depressa. Ou o caso de investigadores no Texas que construíram um pistão pneumático para fazer com que uma bigorna batesse contra os crânios de treze macacos. Quando isso não produzia imediatamente concussões, os investigadores aumentavam a força do pistão até que produzisse problemas cardíacos, hemorragias e lesões cerebrais (Ryder, 1976). Ou ainda o caso de investigadores em Harvard que puseram ratos bebés com ratos adultos esfomeados. Os adultos comeram os bebés. A conclusão dos investigadores: a fome é um móbil importante nos animais. (Isso, é claro, é algo que aprendemos com surpresa; nunca saberíamos deste facto de outro modo.)

As opções

Como dividimos a nossa absoluta repulsa pelo nosso hipotético João e a sua guilhotina de animais, e a nossa aceitação bastante indiferente do tratamento dos animais nas explorações pecuárias e nos laboratórios científicos e comerciais? Não é imediatamente claro que possamos fazer essa divisão. O que é claro, parece, é que temos três opções, três crenças alternativas sobre o tratamento que dedicamos aos animais. Estas são:
  1. Se ficamos indignados com o tratamento do João aos animais abandonados, estamos simplesmente a ser inapropriada ou excessivamente sensíveis ou compassivos. Não devemos sentir aversão por matar, torturar ou usar animais de qualquer modo que nos apeteça, a não ser, como é evidente, que o animal seja propriedade de alguém, isto é, seu animal de companhia.
  2. Há razões para que devamos tratar os animais não-humanos melhor do que tratamos as pedras; ainda assim, há também razões pelas quais podemos usar os animais não-humanos de maneiras segundo as quais nunca poderíamos usar legitimamente humanos.
  3. Devemos tratar os animais não-humanos de maneira mais semelhante ao modo como tratamos presentemente os humanos. Muitas das nossas maneiras aceites de tratar os animais são, de facto, moralmente condenáveis.
A primeira posição, parece, é completamente indefensável. Nenhuma pessoa razoável, penso eu, está disposta a adoptar uma posição que defende que torturar animais por divertimento é completamente aceitável; ninguém está disposto a dizer que o João é um membro bem integrado na sociedade. Esta crença, parece, é virtualmente inabalável. A maior parte dos leitores entendeu perfeitamente o que eu queria dizer quando descrevi o comportamento do João como “tortura”. Mas esta afirmação seria um absurdo se pensássemos que não há limites morais para o modo como podemos tratar os animais.4Então, ficamos com as duas últimas opções. E, é evidente, aquela que escolhermos terá um impacto crucial nas vidas dos humanos e dos outros animais.
Um esclarecimento necessário: dizer que os animais devem ser tratados de maneira mais semelhante ao modo como tratamos os humanos não é o mesmo que dizer que eles devem ser tratados exactamente como os humanos. Por exemplo, não precisamos de considerar a hipótese de dar aos animais o direito de voto, o direito de liberdade religiosa, ou o direito de liberdade de expressão. Tanto quanto posso saber, a maior parte dos animais não tem as capacidades necessárias para exercer estes direitos. Contudo, o mesmo é verdade em relação a crianças muito novas e a adultos com sérios casos de deficiência mental. É por isso que também não têm estes direitos: não têm as capacidades requeridas para tal. Ainda assim, o mero facto de que o direito de voto não é concedido a alguns humanos adultos não significa que seja legítimo comê-los ao almoço ou testar champô nos seus olhos. Então, por que razão poderemos presumir que o é para com os animais?

Por que os animais não devem sofrer desnecessariamente

Até agora tenho tentado identificar as nossas profundas crenças sobre as restrições relativas ao tratamento correcto dos animais. Agora é altura de tentar oferecer uma defesa positiva do nosso entendimento comum, uma defesa que terá implicações ainda mais radicais do que possamos ter suposto. Isto é, quero argumentar a favor da opção 3 anterior; quero argumentar que há limites rigorosos sobre o que é moralmente permissível fazer aos animais. Mais especificamente, pretendo argumentar que todos devemos tornar-nos vegetarianos e que devemos reduzir drasticamente, se não mesmo eliminar, o nosso uso de animais nos laboratórios.
Embora haja numerosos argumentos que podem ser apresentados em defesa desta posição, quero defender uma afirmação em particular: que devemos não infligir dor desnecessária a animais. Antes de continuar, devo esclarecer o que quero dizer com “dor desnecessária”. O ponto pode ser estabelecido mais claramente com uma analogia.
Comparem-se os seguintes casos: 1) eu espeto o braço da minha filha com uma agulha sem ter uma razão aparente para o fazer (embora não precisemos de presumir que retiro daí qualquer prazer sádico); 2) sou um médico e vacino-a contra a tifóide. O que diferencia estes casos? Em ambos espeto o braço da minha filha; em ambos (presumamos) inflijo-lhe uma quantidade similar de dor. Todavia, consideramos que o último não é apenas justificável, mas possivelmente obrigatório; consideramos o primeiro caso sádico. Porquê? Porque consiste na inflicção de dor desnecessária. A minha filha não beneficia de todo com o que lhe faço. Assim, a dor desnecessária é aquela que é infligida num ser senciente (física e psiquicamente sensível) quando tal não acontece para o bem desse ser em particular. Esta última seria uma dor necessária, porque seria aquela dor que esse ser sofreria para seu próprio bem.
Há duas premissas principais no meu argumento. A primeira é a afirmação factual de que os animais sentem, de facto, dor. A segunda é a afirmação de que o potencial sofrimento de um animal limita fortemente aquilo que lhe podemos justificadamente fazer, restringindo o modo como podemos usá-lo legitimamente.

Que os animais sentem dor

Que os animais sentem dor parece relativamente incontestável. É uma crença que todos partilhamos. Como fiz notar anteriormente, nem faria sentido falar em “torturar” um animal se presumíssemos que não é capaz de sentir dor. Nem poderíamos entender a repulsa pelo uso dos animais abandonados da parte do João a não ser que pensássemos que os animais sofriam nas suas mãos. Se o João apanhasse latas abandonadas e as cortasse aos pedaços com a sua guilhotina, poderíamos pensar que o João seria extremamente esquisito, mas não imoral.
Pode-se dizer ainda mais. Temos mais do que provas comportamentais adequadas de que os animais sentem dor e de que podem sofrer. A maior parte de nós viu um cão que tenha sido atropelado por um carro, embora não tenha morrido imediatamente. O cão tem convulsões, sangra e gane. De forma menos dramática, a maior parte de nós, num qualquer momento, já pisou a cauda de um gato ou a pata de um cão e testemunhou a reacção do animal. A reacção, surpreendentemente, é como a nossa própria reacção em casos similares. Se alguém pisa a minha mão, provavelmente eu gritarei e tentarei mexê-la.
Mas não precisamos de fazer depender o nosso ponto nas provas comportamentais, embora me pareça realmente que isso é mais do que suficiente. Devemos também notar que partilhamos estruturas anatómicas importantes com animais superiores. O sistema nervoso central de um ser humano é impressionantemente semelhante ao de um chimpanzé, cão, porco, e mesmo ao de um rato. Isto não é o mesmo que dizer que os cérebros são exactamente iguais; não o são. O córtex cerebral nos seres humanos está mais desenvolvido do que na maior parte dos mamíferos (embora não evidentemente quando comparado com um golfinho ou um grande primata); mas o córtex é a localização nas nossas “funções cerebrais superiores” — por exemplo, onde se encontra o pensamento, o discurso, etc. Contudo, as áreas do cérebro identificadas neurofisiologicamente como os “centros de dor” são virtualmente idênticas entre animais humanos e não-humanos. De acordo com a biologia evolutiva, isto é exactamente o que é de esperar. Os centros de dor funcionaram bem ao aumentar a sobrevivência de espécies menores, pelo que foram alterados apenas ligeiramente em estágios evolutivos que se sucederam. As funções cerebrais superiores, no entanto, conduzem à sobrevivência e, assim, levaram a avanços mais dramáticos no desenvolvimento cerebral. Considerando tudo isto, parece inegável que muitos animais sentem dor.

Que eles sentem dor é moralmente relevante

“E depois?”, alguém poderá perguntar. “Mesmo que os animais sintam realmente dor, por que deverá isso limitar ou, pelo menos, restringir seriamente o tratamento que lhes destinamos? Por que não podemos continuar a usá-los para os nossos fins, sejam eles quais forem?”.
Coloquemos a questão ao contrário por um momento, e perguntemos: por que razão pensamos que devemos poder usá-los para os nossos fins, considerando que eles sofrem? Afinal de contas, opomo-nos firmemente à inflicção desnecessária de dor a seres humanos. Se os animais também sentem dor, por que não devemos ter a mesma relutância em infligir-lhes dor desnecessária?
Um princípio fundamental da ética é que devemos tratar casos iguais de forma igual. Isto é, devemos tratar dois casos igualmente, a não ser que haja alguma razão geral e relevante que justifique a diferença no tratamento. Assim, dois estudantes que têm um desempenho igualmente bom numa aula devem ter os mesmos resultados na avaliação; dois que tenham um desempenho bastante diferente devem receber diferentes resultados na avaliação. Pelo mesmo princípio, se dois seres sentem dor e se é impróprio infligir dor desnecessária a um deles, seria igualmente impróprio infligir dor desnecessária ao outro.
Mas o argumento progrediu demasiado depressa. Este argumento funciona apenas se a razão pela qual é errado infligir dor desnecessária num ser é que ele sente dor. Se houvesse outra razão que pudesse diferenciar animais humanos de não-humanos, então não seríamos capazes de inferir que é ilegítimo infligir dor desnecessária em animais. Assim, se alguém pretende demonstrar que não é errado infligir dor desnecessária em animais, então tem de identificar alguma diferença relevante entre animais humanos e não-humanos, alguma diferença que justifique esta diferença de tratamento.
E, é claro, isto é justamente o que a maior parte dos defensores do modo como tratamos presentemente os animais estão inclinados a fazer. Embora as pessoas tenham outrora visto os animais como seres não-sencientes, como meros autómatos, isso já não acontece. A crença de que os animais são incapazes de sentir dor não é defensável à luz de todas as provas comportamentais e científicas. Portanto, o passo comum é encontrar alguma outra diferença que se pense distinguir significativamente os humanos dos animais.
A mais frequentemente citada e promissora candidata é a racionalidade ou a consciência de si como um ser contínuo. Os humanos, diz-se, podem raciocinar e pensar; os animais (presume-se) não podem. Mais ainda, a capacidade de raciocínio reflecte-se na capacidade do humano de se ver a si mesmo como um ser contínuo, como um ser que tem um passado e que terá um futuro.
Concedamos por um momento que os humanos são racionais e que os animais não; que os humanos têm uma consciência de si como seres com uma existência contínua e que os animais não. Por que haveria isso de fazer diferença? Ou, mais precisamente, por que haveria de fazer tanta diferença como faz? Será que o facto de sermos racionais legitima o nosso uso de animais não-racionais de qualquer maneira que nos apeteça?
Parece que não. Certamente não legitima o tratamento abusivo de outros humanos. Alguns seres humanos têm sérios atrasos mentais ou estão em comas irreversíveis, e assim são tão racionais como os animais. Contudo, pensamos que seria inapropriado usar estes humanos quer para determinar os efeitos do amoníaco na pele, quer para grelhá-los para o jantar. Presumimos que fazê-lo iria violar os seus direitos. Então por que não devemos ter igual relutância quanto a usar animais desta maneira? (Se achar a sugestão de usar humanos destas maneiras repugnante, pergunte-se: por que é tão fácil usar animais destas maneiras?) Então, a racionalidade não parece ser o fundamento do que há de errado em infligir dor desnecessária em humanos.
Ainda mais, podemos imaginar uma situação aparentemente análoga, embora contrastante. Suponha que uma raça de extraterrestres especiais vinha à terra, extra-terrestres cuja inteligência fosse amplamente superior à nossa. Suponhamos que eram mais inteligentes em relação a nós do que nós somos em relação aos outros mamíferos. Se isso acontecesse (embora suponhamos que isso não acontecerá), poderiam estes extra-terrestres justificadamente grelhar-nos em churrascos ou usar-nos para testar um novo produto de limpeza para a sua nave espacial? Certamente, pensaria (e esperaria) que não. Se eles não poderiam justificadamente fazê-lo, parece que temos de concluir que a inteligência e a racionalidade não justificam a nossa convicção de que é errado infligir dor desnecessária em humanos.
Finalmente, podemos notar que as características em causa estão mais propriamente ligadas a outros direitos que não sejam o direito de não sofrer dor desnecessária. A racionalidade está mais ligada ao direito de voto, de liberdade de expressão, etc., enquanto a capacidade que um ser tem de ser consciente de si como tendo uma existência contínua parece mais intimamente ligada ao direito à vida. (Afinal de contas, a morte não é temida por um ser que não tem consciência de si como existindo no futuro.) Inversamente, o direito a não sofrer dor desnecessária parece ligado a apenas uma característica, nomeadamente a capacidade de sentir dor. Se os humanos não tivessem um centro de dor, se não tivessem experiência da dor, então não teriam o direito de não sofrer dor desnecessária, independentemente de quão inteligentes ou racionais fossem. Consequentemente, parece moralmente inaceitável infligir dor desnecessária em animais.

Objecções à minha perspectiva

O sofrimento dos animais não é desnecessário

Alguém poderia conceder tudo isto que estabeleci, e ainda assim afirmar que a nossa utilização de animais é aceitável, uma vez que o sofrimento dos animais não é verdadeiramente desnecessário. Afinal de contas, a maior parte dos humanos come animais e portanto consegue alimentar-se a partir deles; a experimentação animal é uma parte significativa e vital da nossa tentativa de descobrir curas para doenças humanas devastadoras e de proteger os humanos da introdução de produtos comerciais possivelmente perigosos.
Sem dúvida que a utilização de animais destas maneiras beneficia por vezes os humanos. Mas será genuinamente necessária? Não é evidente que assim seja. Por exemplo, embora a maior parte dos humanos adquira alguns nutrientes importantes ao comer animais, há alternativas mais adequadas. Nunca é preciso comer carne para se ser muito saudável. De facto, as dietas vegetarianas podem ser extremamente benéficas; aqueles que têm dietas vegetarianas, por exemplo, têm menos incidência de determinadas formas de cancro. Assim, a razão fundamental pela qual as pessoas são carnívoras em vez de vegetarianas é que estas preferem (ou pensam que preferem) a textura da carne em detrimento das alternativas.5 Mas certamente satisfazer o palato de certa maneira não é uma razão suficiente para infligir uma dor significativa a animais. Reportando-me a um caso referido anterior: o João pode retirar um prazer enorme da tortura de animais abandonados, mas isso não justifica que os torture.
Certamente, também muitas experiências em animais são desnecessárias. A experiência pode não ter sentido ou ser continuamente duplicada. Muitas experiências são, sem dúvida, meramente motivadas pelo desejo de serem novamente publicadas (se forem académicas) ou para comercializarem a 97.ª marca de pasta de dentes. Mais ainda, muitos críticos afirmaram que a larga maioria de experiências podem ser feitas tão bem, se não melhor, usando simulações por computador e culturas de células (Pratt, 1980).
Penso que os críticos estão obviamente certos ao dizerem que muitas das experiências são totalmente desnecessárias, pelo que pura e simplesmente não devem ser feitas, ou que o seu objectivo previsto pode ser razoavelmente atingido de uma forma alternativa que seja exequível. Ainda assim, talvez haja alguns produtos que só podem ser conseguidos, ou pelo menos conseguidos rapidamente, pelo uso da experimentação animal.
Mas por que devemos supor que isso justifica a inflicção de uma dor enorme nos animais? Parece pelo menos igualmente plausível presumir que há alguns ganhos científicos que podem ser atingidos apenas através de pesquisas em seres humanos. De facto, essa é exactamente a afirmação que os nazis fizeram quando realizaram as suas “experiências científicas” nos seus prisioneiros judeus. Contudo, pensamos presumivelmente que tais experiências são moralmente questionáveis, independentemente do bem que possa vir (ou que tenha vindo) delas. Os humanos simplesmente não devem ser usados dessa maneira. Mas então porquê supor que os animais podem sê-lo?
Parece que enfrentamos o seguinte dilema: ou os animais de laboratório são ou não suficientemente iguais a nós de modo a que as pesquisas neles possam ser generalizadas para seres humanos. Se não são suficientemente iguais a nós para permitir generalizar as descobertas experimentais aos humanos, então as experiências não fazem aquilo para que servem, e, assim, não têm sentido. Por outro lado, se os animais são suficientemente iguais a nós para permitir generalizar as descobertas aos humanos, então são suficientemente iguais a nós, de modo que devemos presumir que tais experiências são imorais. Portanto, em qualquer caso, a experimentação é inaceitável.
Concordo que esta conclusão parece demasiado forte. Todos vemos os benefícios que podem resultar de certas formas de investigação médica. Pode até ser que algumas formas limitadas de investigação possam ser justificadas, embora eu suspeite que não podem. Em todo o caso, se essa investigação pudesse ser justificada, isso não enfraqueceria de modo nenhum o facto de que a maioria das investigações laboratoriais com animais não podem sê-lo.

A senciência não é suficiente

Alguns comentadores, e mais destacadamente R. G. Frey (1980), argumentaram que, embora os animais sejam sencientes, não são sapientes, isto é, não podem raciocinar. Assim, afirma (para recuperar o argumento anterior), podemos usá-los para os nossos próprios fins.
Anteriormente, tentei defender que os animais não precisam de ser sapientes para merecerem o nosso respeito. O simples facto de que podem sentir dor sustenta a afirmação de que é errado infligir-lhes dor desnecessária. Agora quero contrariar o argumento de Frey, segundo o qual os animais não são racionais. Ele argumenta que os animais não podem raciocinar. Qualquer comportamento animal que parece racional, afirma ele, é meramente instintivo. Para ser racional, um ser precisa de ter crenças e não temos razões para supor que os animais têm crenças. Porquê? Porque não têm o uso genuíno da linguagem. Nem são capazes de mentir ou de afirmar deliberadamente algo de falso.
A afirmação de que estes animais não têm linguagem ou pensamento parece altamente questionável. Uma série de estudos com chimpanzés e macacos mostrou que têm a capacidade de aprender linguagem gestual (Gardner and Gardner, 1969). Uma vez dominada a linguagem, comunicam com os outros humanos; soube-se que alguns ensinaram a linguagem gestual aos outros primatas.
Frey, contudo, afirma que este comportamento é apenas mimetismo ou uma resposta a estímulos. Isso parece errado, pois vários animais mostraram combinar palavras de maneiras que nunca tinham aprendido, em suma, criando novas palavras. Mais ainda, há pelo menos um caso registado de um babuíno que mentiu. E alguns investigadores afirmaram que os golfinhos são capazes de aprender a sintaxe (regras de gramática), bem como o significado de certas palavras (Griffin, 1976). Dado que tais experiências são razoavelmente novas e são promissoras, devemos concluir com Griffin que os animais, mesmo os que estão consideravelmente mais abaixo na cadeia evolutiva, podem ser capazes de pelo menos terem um pensamento rudimentar.

E se criássemos os animais humanamente?

Alguém poderia opor-se à minha perspectiva da seguinte maneira: tenho defendido que devemos não infligir dor nos animais. Mas, e se os criássemos humanamente e os matássemos rapidamente (e, assim, de forma relativamente indolor)? Daria o meu argumento alguma razão para supor que comer animais nestas condições seria errado? Se não, com que base poderia alguém opor-se plausivelmente a comer carne nestas condições?
Esta é uma questão teórica interessante. Mas antes de tentar responder-lhe, devo deixar claro que a resposta não tem qualquer influência sobre como devemos actuar na situação presente. Como fiz notar, há fortes questões económicas que tornam a criação humana de animais altamente improvável. Consequentemente, é provável que nunca tenhamos que decidir se devemos comer animais criados humanamente. Assim, mesmo que fosse moralmente permissível comer carne nestas circunstâncias imaginárias, continuaria a ser inaceitável comermos carne nas circunstâncias actuais (embora, é claro, nada disto invalide o trabalho para conseguir métodos mais humanos de criar os animais na pecuária).
Em segundo lugar, se, ao contrário de todas as expectativas razoáveis, começássemos a criar humanamente animais na pecuária, a carne resultante seria tão cara que o consumo ficaria fortemente limitado. Assim, uma vez mais, é provável que poucos de nós se deparassem com um verdadeiro dilema sobre comer animais criados humanamente.
Mas suponhamos, contrariamente à realidade, que poderíamos obter carne de animais que sofressem apenas ligeiramente (porque a carne teria um preço razoável). Seria, então, moralmente permissível comê-los? Aqui a resposta, parece, é mais complicada. Tenho estado antes de mais preocupado em mostrar que o tratamento presente que dedicamos aos animais é moralmente indefensável, uma vez que a prática da pecuária intensiva lhes causa uma dor significativa e desnecessária. Assim, a relevância do meu argumento para este caso hipotético não é óbvia.
Escolhi usar o argumento que usei porque era simples, embora convincente. Isto é, parece virtualmente inquestionável que é errado infligir dor desnecessária em seres sencientes, e que as nossas práticas presentes causam, de facto, esse tipo de dor aos animais. Mais ainda, uma vez que a nossa única opção genuína é entre comer animais criados de forma desumana ou tornar-nos vegetarianos, então este argumento é mais do que suficiente para os fins em causa. Todavia, parece realmente apropriado no fim deste artigo entrar em ousadas conjecturas especulativas.
A minha perspectiva, de algum modo tentadora, é a seguinte: o argumento da dor necessária ajuda-nos a aperceber-nos de que há limites morais sobre como devemos usar legitimamente os animais. Mais ainda, estes limites surgem devido aos interesses dos animais em si mesmos, e não devido a um interesse parasitário que os humanos tenham neles.
Mas isso significa dizer que os animais são, em pelo menos algum sentido significativo, fins em si mesmos, coisas que não podem ser legitimamente usadas meramente como meios para fins humanos. Se, contudo, o facto de serem fins em si mesmos faz com que seja ilegítimo infligir neles dor para satisfazer o nosso palato, parece que também talvez não seja razoável matar animais para estimular o nosso palato — mesmo que tenham sido criados humanamente.
Reconheço que esta resposta não será inteiramente convincente. Isso não é surpreendente. Não estou sequer inteiramente convencido da sua força. Em todo o caso, parece uma extensão plausível do argumento anterior. E, mesmo que não seja totalmente adequado, estou inclinado a adoptar um princípio de precaução aqui: é melhor abstermo-nos de cometer acções que podem ser seriamente imorais (mesmo que não estejamos certos de que o são) se os ganhos potenciais da acção questionável são mínimos; termos o palato estimulado de determinada forma parece claramente um ganho mínimo. Mais ainda, uma vez que a escolha moral que realmente enfrentamos não é como agiríamos neste caso hipotético, mas como devemos agir no mundo real, então esta admissão não é minimamente prejudicial para o argumento apresentado.

Conclusão

Compreendo que a afirmação de que há limites morais significativos para o modo como podemos legitimamente tratar os animais opõe-se bastante à atitude para com eles que nos foi legada, pois, enquanto a maior parte das pessoas pensa que é errado ou pelo menos de mau gosto torturar animais, a maioria geralmente presume que os animais estão aqui para nossa utilização. Nesse ponto, a minha perspectiva é um afastamento radical da nossa herança cultural. Mas, à luz dos argumentos apresentados, é um afastamento com mérito.
Não sei exactamente até onde leva esta perspectiva. Não sei se toda a experimentação animal é injustificada, não sei exactamente como lidar com algumas pragas, o que fazer com o gado actualmente existente, etc. Mas o facto de que nem todos os pormenores estão pensados não pode ser considerado contra a afirmação de que a nossa perspectiva presente é moralmente inaceitável.
Quando as mulheres começaram a exercer pressão a favor do direito de voto ou da igualdade de direitos em geral, não sabiam exactamente onde as suas reivindicações nos levariam. E ainda não sabem; nem eu. Mas estou bastante confiante de que é uma mudança para melhor, muito embora os pormenores específicos das mudanças só se venham a revelar com o tempo. E o mesmo é verdade sobre o tratamento que destinamos aos animais. Talvez um dia os nossos filhos olhem para a geração presente e se perguntem como pudémos acreditar que era tolerável tratar os animais da maneira que os tratamos. Espero sinceramente que sim.

Hugh LaFollette
Retirado de Nigel Dower (org.), Ethics and Environmental Responsibility
 (Gower Press, 1989), pp. 79-90.

Referências

  • Frey, R.G., Interests and Rights, Oxford, The Clarendon Press, 1980.
  • Gardner, B.T. and Gardner, R.A., “Teaching Sign Language to a Chimpanzee”, Science, 165: 664-72, 1969.
  • Griffin, D.G., The Question of Animal Awareness: The Evolutionary Continuity of Mental Experience, New York, The Rockefeller University Press, 1976.
  • Mason J. and Singer, Peter, Animal Factories, New York, Crown Publishers, 1980.
  • Pratt, D., Alternatives to Pain in Experimentation on Animals, New York: Argus Archives, 1980.
  • Ryder, Richard, “Experiments on Animals”, in Animal Rights and Moral Obligation, ed. T. Regan and P. Singer, Englewood Cliffs, NJ, Prentice-Hall, Inc., 1976.
  • Ryder, Richard, Victims of Science: The Use of Animals in Research, London, Davis-Poynter, 1975.
  • Rachels, James, “Vegetarianism and the “Other Weight Problem"”, in World Hunger and Moral Obligation, ed. W. Aiken and H. LaFollette, Englewood Cliffs, NJ, Prentice-Hall, Inc., 1977.
  • Singer, Peter, Animal Liberation, New York, Avon Books, 1978.

Notas

  1. Na verdade, penso que a situação é bastante mais complexa do que sugeri. Há muito a dizer a favor da afirmação de que há limites para o que os humanos podem legitimamente fazer a objectos inanimados, e que esses limites não acabam nos interesses dos humanos neles. Mas essa posição é reconhecidamente controversa. Mais ainda, posso defender o ponto que pretendo defender sobre os animais sem abordá-la. Então, pelo menos para já, farei como se as únicas restrições para o nosso comportamento relativamente aos objectos inanimados derivem dos interesses humanos. Outros ensaístas discutirão sem dúvida as preocupações ambientais mais abrangentes nos seus ensaios.
  2. Este exemplo não é, como pode ter suposto ou esperado, uma mera peça de ficção. Alguns cientistas investigadores compram guilhotinas em miniatura feitas especialmente para decapitar ratos de laboratório. Anúncios destes instrumentos aparecem frequentemente nas páginas de revistas de medicina veterinária.
  3. O Professor Harry Harlow, cuja investigação em bebés macacos é conhecida em todo o mundo, disse que “a maior parte das experiências não valem a pena ser feitas e as informações obtidas não são dignas de publicação”, in Journal of Comparative and Physiological Psychology (1962).
  4. Deixarei agora de referir “animais não-humanos” e, daqui em diante, referir-me-ei a eles simplesmente como “animais”. A expressão mais longa, embora seja mais precisa, é simplesmente demasiado pesada.
  5. Digo “penso que preferem” porque já vi muitas pessoas que descobriram, depois de eliminarem ou mesmo reduzirem o consumo de carne, que as suas dietas são mais variadas e saborosas do que quando eram carnívoros.
Tradução de Miguel Moutinho
In blog Critica na rede



Lola

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