CONHECIMENTO CIENTÍFICO
Vamos caracterizar melhor este ponto de vista especial sobre o mundo a
que chamamos ciência, analisando as suas especificidades e procurando compreender
o processo do seu desenvolvimento.
Já
sabemos que a ciência não é a única forma de conhecimento, nem a primeira e
mais imediata forma de nos relacionarmos com o real.
Senso comum
Na
verdade, existe uma forma comum de conhecimento, formado no decorrer da vida de
cada um pela simples acumulação de experiências pessoais e que nos serve de
orientação para o nosso viver quotidiano com uma certa eficácia. De modo
natural e directo, vamos conhecendo os objectos que nos cercam, as pessoas com
quem lidamos, a rua ou cidade onde moramos, etc. Fazemos tudo isto, sem ser de
uma forma propriamente científica, mas antes pela experiência de vida. No nosso
dia a dia passamos bem sem a ciência. Porquê? Porque no nosso dia a dia
basta-nos o senso comum.
É
um tipo de conhecimento que assenta exclusivamente na experiência de vida que
todos os homens têm; é um saber popular, básico e elementar transmitido
oralmente de geração em geração; é adquirido através do ouvir dizer, do ver
fazer e da imitação de comportamentos com os quais nos identificamos. Ele é
fruto da aprendizagem e educação que espontânea e/ou institucioalmente
recebemos enquanto membros de uma comunidade. O conhecimento do senso comum,
sendo imprescindível à vida do dia a dia apresenta, no entanto muitas limitações:
é superficial; está sujeito a erros; é subjectivo; não é um conhecimento
crítico.
TEXTO
1:
« A
apreensão imediata e directa dos sentidos pode dar representações inexactas da
realidade captada; (...) Recordemos um dos mais notórios – os sentidos dizem
enganadoramente ao homem que o Sol gira em torno da terra e que esta é imóvel.
Isto, no entanto, é uma mera aparência que só o aprofundamento do processo
cognitivo pode resolver, vencendo-se essa aparência imediata e enganadora.»
Armando de Castro, A Evolução
Económica de Portugal
Esta forma de conhecimento, embora importante para nos inserirmos na
realidade que nos rodeia, não nos dá a explicação e a compreensão mais profunda
que ansiamos.
Conhecimento científico
« Hoje, descobrimos um meio poderoso e
elegante para compreender o universo, um método chamado ciência.»
Carl
Sagan, Cosmos
« Se vivêssemos num planeta onde nada
mudasse, pouco teríamos que fazer. Não haveria nada a compreender. Não haveria
necessidade de ciência. E, se vivêssemos num mundo imprevisível, onde as coisas
mudassem ao acaso ou de forma muito complexa, não teríamos possibilidade de
esclarecê-las. E, mais uma vez, não haveria ciência. Mas vivemos num universo
intermédio, onde as coisas mudam, de facto, mas segundo padrões, regras, ou,
como nós lhe chamamos, leis da natureza. Se eu atirar um pau para o ar, ele
cai, sempre. Se o Sol se põe a ocidente, nasce sempre, na manhã seguinte, a
oriente. E por isso, é possível compreender as coisas. Podemos desenvolver a
ciência e, com ela, melhorar as nossas
vidas.»
Carl Sagan, Cosmos
O conhecimento científico, marcado
pela sua natureza racional, não é comum a todos os homens, mas é um
conhecimento comum a grupos de especialistas visando a objectividade.
O conhecimento
científico constitui-se como outro modo de o homem apreender o real.
Não se funda nas evidências do senso comum. A ciência não é uma atitude
espontânea e natural do ser humano: levou muito tempo e foi percorrido um longo
caminho para que a ciência configurasse o real de modo novo (científico).
A ciência
não é uma interpretação espontânea da realidade, mas uma interpretação metódica
e racionalmente construída.
A ciência através da introdução da
medida, do método experimental e da matemática, criou um saber abstracto
e muito afastado do nosso dia a dia. O método experimental comporta: observação
organizada de um fenómemo ou grupo de fenómenos; a formulação de hipóteses
(momento em que se procura arranjar uma explicação plausível para os fenómenos
observados) e a verificação experimental (momento em que se procura comprovar a
validade da hipótese). O método,
dirigindo a investigação de uma forma organizada, rigorosa e geralmente aceite
pela comunidade científica, permite chegar à descoberta de constâncias, de
regularidades, de relações necessárias, que conduzirão posteriormente à
enunciação de leis. É pelas leis e teorias que o cientista explica os factos,
relacionando-os uns com os outros, de modo a transmitir-nos uma visão
estruturada do mundo.
A ciência torna-se próxima da
filosofia pela sua postura de investigação, pelo seu desejo de saber, pela
procura racional que empreende no sentido de descodificar os enigmas e
mistérios do mundo. Mas demarca-se dela, pelo registo solucionador que adopta
face aos problemas. A ciência não se contenta com
respostas, ela pretende chegar a soluções e, através destas, fazer desaparecer
os problemas com que se defronta.
« O homem, na sua necessidade de lutar contra
a natureza e no seu desejo de a dominar, foi levado, naturalmente à observação
e ao estudo dos fenómenos, procurando descobrir as suas causas e o seu
desencadeamento.
Os resultados deste estudo, lentamente
adquiridos e acumulados, vão constituindo o que, no decurso dos séculos da vida
consciente da humanidade, se pode designar pelo nome de ciência. O conhecimento
científico distingue-se, portanto do conhecimento vulgar ou primário, no facto
essencial seguinte: este satisfaz-se com o resultado imediato do fenómeno – uma
pedra abandonada ao ar cai; uma leve pena de ave, abandonada ao ar, paira, ou
sobe; aquele faz a pergunta porquê e procura uma resposta que dê uma explicação
aceitável pelo nosso entendimento.
O objectivo final da ciência é, portanto a formação de um quadro ordenado
e explicativo dos fenómenos naturais, fenómenos do mundo físico e do mundo
humano, individual e social. (...)
Os homens pedem à ciência que lhes forneça um
meio, não só de conhecer mas de prever fenómenos – quanto maior for a
possibilidade de previsão maior será o domínio deles sobre a natureza. (...)
Entendamo-nos bem. A ciência não tem, nem
pode ter, como objectivo descrever a realidade tal como ela é. Aquilo a que ela
aspira é construir quadros racionais de interpretação e previsão; a legitimidade
de tais quadros dura enquanto durar o seu acordo com os resultados da
observação e da experimentação.»
Bento de Jesus Caraça,
Conceitos
Fundamentais da Matemática
A ciência
pode ser e é vulgarmente entendida como uma organização de
conhecimentos e de resultados que são aceites universalmente. Esta aceitação
universal é devido ao facto de os resultados poderem ser verificados.
«
O primeiro carácter do conhecimento científico (...), é a objectividade, no
sentido de que a ciência intenta afastar do seu domínio todo o elemento
afectivo e subjectivo, deseja ser plenamente independente dos gostos e das
tendências pessoais do sujeito que elabora. Numa palavra, o conhecimento
verdadeiramente científico deve ser um conhecimento válido para todos. A objectividade
da ciência, por isso, pode ser também, e talvez melhor, chamada
intersubjectividade, até porque a evolução recente da ciência, e especialmente
da Física, mostrou a impossibilidade de separar adequadamente o objecto, do
sujeito e de eliminar completamente o observador. (...) Todavia, não elimina de
modo algum da ciência o propósito radicalmente objectivo.
Outro carácter universalmente conhecido é a positividade, no sentido de
uma plena aderência aos factos e de uma absoluta submissão à fiscalização da
experiência. (...)
O
terceiro carácter do conhecimento científico reside na sua racionalidade. (...)
A ciência moderna é essencialmente racional, isto é, não consta de meros
elementos empíricos, mas é essencialmente uma construção do intelecto. (...) A
ciência pode ser definida como um esforço de racionalização do real. (...)
Além disso, os cientistas modernos verificam unanimemente no
conhecimento um carácter muito alheio à mentalidade científica do século
passado, o da revisibilidade. Não há posições definitivas e irreformáveis. Toda
a verdade científica aparece, em certo
sentido, como provisória, susceptível de revisão, de aperfeiçoamento, às vezes
mesmo de uma completa reposição em causa. Todos os conhecimentos científicos
são aproximados. (...) Os conceitos de adequação total e perfeita devem ser
substituídos pelos de aproximação e validez limitada.»
Selvaggi, F.: Enciclopédia Filosófica
« O
conhecimento científico é fáctico:
(...) Parte dos factos, respeita-os até certo ponto e sempre retorna a eles. A
ciência procura descobrir os factos tais como são, independentemente do seu
valor emocional (...). Nem sempre é possível, (...) respeitar inteiramente os
factos quando se analisam. (...) O físico perturba o átomo que deseja espiar; o
biólogo modifica e pode inclusive matar o ser vivo que analisa; o antropólogo,
empenhado no seu estudo de campo de uma comunidade, provoca nele modificações.
Nenhum deles apreende o objecto tal como é, mas tal como fica modificado pelas
suas próprias operações.
O conhecimento científico é claro e preciso: os seus problemas são distintos, os seus resultados são
claros. (...)
O conhecimento científico é comunicável: (...) não é privado, mas
público. A linguagem científica comunica informações a quem quer que tenha sido
preparado para a entender. (...)
O conhecimento científico é verificável: deve passar pelo exame da
experiência. Para explicar um conjunto de fenómenos, o cientista inventa
conjecturas fundadas de algum modo no saber adquirido. As suas suposições podem
ser cautelosas ou ousadas, simples ou complexas; em todo o caso, devem pôr-se à
prova. (...)
A investigação científica é metódica: (...) A investigação procede
de acordo com regras e técnicas que se revelaram eficazes no passado, mas que
são aperfeiçoadas continuamente (...).
O conhecimento científico é sistemático: uma ciência não é um agregado
de informações desconexas, mas um sistema de ideias ligadas logicamente entre
si. (...)
O ciência é explicativa: tenta explicar os factos em termos de leis e as leis
em termos de princípios. Os cientistas não se conformam com descrições
pormenorizadas; além de inquirir como são as coisas, procuram responder ao
porquê: porque é que ocorrem os factos tal como ocorrem e não de outra maneira.
(...)»
M. Bunge, La ciencia, su método y su
filosofía
Tal como podemos constatar através da análise dos textos, a ciência pode
ser e é vulgarmente entendida como uma organização de conhecimentos e de
resultados que são aceites universalmente. Esta aceitação universal é devido ao
facto de os resultados poderem ser verificados e de a construção do
conhecimento se submeter a métodos.
A
ciência visa a observação e o estudo aprofundado dos fenómenos naturais e
sociais.não se limita a descrever a experiência, mas a explicá-la por meio de leis;
- é um conhecimento que se submete à verificação experimental;
- é um conhecimento organizado, metódico, que se baseia numa investigação planeada;
- é um conhecimento sistemático, ou seja, não é constituído por um amontoado de informações, mas por um conjunto de ideias metódica e logicamente organizadas;
- o conhecimento científico procura as causas e uma explicação para os fenómenos observados;
- à subjectividade do conhecimento do senso comum, o conhecimento científico procura opôr a objectividade: ser independente dos gostos e tendências do sujeito que conhece.
É neste sentido que a ciência se constitui como um
conhecimento que procura ser universalmente válido.
Este objectivo é assegurado quer pela submissão de todas as hipóteses à
fiscalização da experiência, quer pela utilização de uma linguagem rigorosa.
A
ciência ganhou durante a modernidade o estatuto de conhecimento verdadeiro e
objectivo, subordinado ao rigor matemático e ao método experimental. Esta
concepção despertou um optimismo muito grande no papel da ciência, chegando-se
a pensar que em seu nome poder-se-ia dominar o mundo e que o progresso
científico conduziria a humanidade em direcção à verdade total sobre a
natureza, à organização da justiça entre os homens e à felicidade nesta vida.
MAS, a ciência perdeu este estatuto. Hoje, a ciência apresenta-se de
forma menos ambiciosa, configurando apenas uma das interpretações possíveis do
mundo, susceptível de ser falsificada, sem um método concludente, sem
verificações definitivas e com uma objectividade aproximada. A ciência é um
processo em contínua revisão, em permanente auto-correcção. O rigor do
conhecimento científico é limitado e apenas podemos esperar resultados
aproximados, não absolutamente certos.
Mas, apesar do dito, não podemos negar que vivemos numa época
profundamente marcada pela ciência e não temos receio de afirmar que muito lhe
devemos. É hoje um lugar comum, defender que a vida dos homens e das mulheres
se transformou e que muitas dessas transformações são devidas ao progresso
científico e técnico. Não podemos pois ignorar a ciência: foi ela que nos deu
os antibióticos, as viagens à lua, os raios laser, todo o conforto material a que
hoje estamos habituados e que já não dispensamos. Talvez por isso, ainda domine
actualmente uma concepção de ciência como algo de qualidade, mas uma qualidade
que não pode oferecer dúvidas uma vez que foi testada e provada e que inclusivé
já deu provas suficientes para ser merecedora de uma confiança total. De facto,
aos olhos do grande público, a ciência surge como o protótipo de um
conhecimento rigoroso, objectivo, fiável e merecedor de total confiança.
Haverá um lado negro da Ciência?
MAS, não nos podemos esquecer também do lado negativo da ciência:
armamento, guerras, bombas nucleares, atómicas, químicas, cobaias, manipulação
genética, clonagem, desastres ecológicos, etc. A ciência tornou-se explosiva.
Mas não podemos passar sem ela e sem o que ela nos permite obter. É afinal, a
dramática contradição do humano modo de viver: perpetuamente em desiquilíbrio,
constantemente em progresso.
Paulo Alves
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