Livre-arbítrio e
responsabilidade humana
A minha tese é a seguinte: a pessoa que está
convencida que tem liberdade de escolha ou livre-arbítrio tem um maior sentido
de responsabilidade do que a pessoa que pensa que o determinismo absoluto
governa o universo e a vida humana. O determinismo no sentido clássico
significa que todo o fluir da história, incluindo todas as escolhas humanas e
as acções, estão completamente determinadas desde o início dos tempos. Quem
quer que acredite que “o que tem que ser, será” pode tentar escapar à
responsabilidade moral apesar de ter agido erradamente defendendo que tal
estava predestinado por leis rígidas de causa e efeito.
Mas se a livre escolha realmente existe
na altura de escolher, os homens têm claramente responsabilidade moral por
decidirem entre duas ou mais alternativas genuínas, e o álibi determinista não
tem qualquer peso. Assim, o coração da nossa discussão radica na questão de
saber se é verdadeiro que temos livre escolha ou se é verdadeiro o determinismo
universal.
Tentarei resumir brevemente as razões principais que apontam para a existência de livre-arbítrio.
Tentarei resumir brevemente as razões principais que apontam para a existência de livre-arbítrio.
Primeira: há uma intuição vulgar
imediata e poderosa, que é partilhada por virtualmente todos os seres humanos
de que existe liberdade de escolha. Esta intuição parece-me tão forte como a
sensação de prazer ou de dor; e a tentativa dos deterministas provarem que esta
intuição é falsa é tão artificial como a pretensão […] de que a dor não é real.
Claro que a existência desta intuição não prova por si a existência da
liberdade de escolha, mas justamente por ser uma intuição tão forte, coloca o
ónus da prova do lado dos deterministas, que têm que provar que se baseia numa
ilusão.
Segunda: podemos recusar o argumento
determinista admitindo, ou até insistindo, que há uma grande quantidade de
determinismo no mundo. O determinismo na forma de leis causais do tipo
“se…então…” governa não só o funcionamento de inúmeros movimentos corporais
como o funcionamento de grande parte do universo. Podemos estar contentes com o
facto dos sistemas respiratório, digestivo, circulatório, e dos batimentos
cardíacos, funcionarem deterministicamente — pelo menos até avariarem. O
determinismo versus livre-arbítrio é uma falsa questão; o que nós sempre
tivemos foi um determinismo e um livre-arbítrio relativos. O livre-arbítrio sempre
esteve limitado pelo passado e por um conjunto vasto de leis causais do tipo
“se…então…”. Ao mesmo tempo, os seres humanos usam o livre-arbítrio para
tirarem partido daquelas leis determinísticas que fazem parte da ciência e das
máquinas que produziram. A maioria de nós guia carros, e somos nós e não estes
quem decide quando e para onde vão. O determinismo usado de forma sábia e
controlada — o que nem sempre se verifica — pode tornar-nos mais livres e
felizes.
Terceira: o determinismo é algo
relativo, não apenas porque os seres humanos têm liberdade de escolha, mas
também porque a contingência e o acaso são um traço fundamental do cosmos. A
contingência percebe-se melhor na intersecção de sequências de eventos
independentes entre si sem qualquer conexão causal prévia. O meu exemplo
favorito é o da colisão do transatlântico Titanic com um iceberg, a meio da
noite de 14 de Abril de 1912. Foi um acidente terrível em que morreram mais de
1500 pessoas. A deriva do iceberg desde o norte e o percurso do Titanic de
oeste a partir de Inglaterra representam claramente duas sequências causais de
eventos independentes.
Se, por hipótese, um grupo de
especialistas tivesse sido capaz de identificar as duas sequências causais e
assegurar que tal catástrofe estava predeterminada desde o momento em que o
transatlântico deixou o porto de Southampton, ainda assim isso não perturbaria
a minha teoria. A relação espaço-tempo do iceberg e do Titanic, desde que este
iniciou a sua viagem, seria, em si, uma relação de contingência, já que não
haveria qualquer causa relevante para a explicar.
Como referi, a presença constante da
contingência no mundo é igualmente provada pelo facto de todas as leis naturais
assumirem a forma de sequências ou relações do tipo “se…, então…”. O elemento se
é obviamente condicional e demonstra a coexistência habitual da contingência
com o determinismo. A actualidade da contingência nega a ideia de uma
necessidade total e universal a operar em todo o universo. No que diz respeito
as escolhas humanas, a contingência assegura que as alternativas de que temos
experiência são indeterminadas relativamente ao acto de escolher, o que faz
depois que uma delas seja determinada.
A minha quarta razão é que o significado
aceite de potencialidade, nomeadamente, de que todo o objecto e acontecimento
no cosmos têm possibilidades plurais de comportamento, interacção e
desenvolvimento, deita por terra a tese determinista. Se quiseres realizar uma
viagem de férias no próximo Verão, pensarás sem qualquer dúvida em inúmeros destinos
possíveis antes de te decidires. O determinismo implica que isso não seja mais
do que teatro, pois estás determinado escolher precisamente o destino que
escolheste. Quando relacionamos o padrão causal com a ideia de potencialidade,
verificamos que a causalidade mediada pela escolha livre pode ter o seu efeito
apropriado na actualização de qualquer uma das diversas possibilidades
existentes.
Quinta: os processos normais do
pensamento humano estão ligados à ideia de potencialidade tal como a descrevi,
e do mesmo modo tendem a mostrar que a liberdade de escolha é real. Pensar
envolve constantemente concepções gerais, universais ou abstractas sob as quais
são classificados os diferentes particulares. No caso que discuti na minha
quarta razão, “viagem de férias” era a concepção geral e os diferentes lugares
que poderias visitar eram os particulares, as alternativas, as potencialidades,
que alguém podia livremente escolher. Se de facto não houver liberdade de
escolha, então a função do pensamento humano de resolver problemas torna-se
supérflua e numa máscara de faz-de-conta.
Sexta: é esclarecedor para o problema da
liberdade de escolha perceber que apenas existe o presente, e que é sempre
alguma actividade presente que dá origem ao passado, no mesmo sentido em que um
esquiador deixa atrás de si um trilho na neve quando desce uma colina. Tudo o
que existe — o vasto conjunto agregado de matéria inanimada, a imensa profusão
de vida anterior, o ser humano em toda a sua diversidade — existe ou existem
apenas como acontecimentos quando ocorrem neste instante exacto, que é agora. O
passado está morto e passado; existe apenas na medida em que se exprime nas
estruturas e actividades presentes.
A actividade do presente imediatamente
anterior estabelece os fundamentos através dos quais opera o presente imediato.
O que aconteceu no passado tanto cria limitações como possibilidades, que
condicionam sempre o presente. Mas condicionar neste sentido não significa o
mesmo que determinar; cada dia se desenvolve a partir de agora no seu próprio
momento, actualizando novos padrões de existência, mantendo e destruindo
outros. Portanto, quando um homem escolhe e age no presente não é inteiramente
controlado pelo passado, mas parte da evolução interminável do poder cósmico. É
um agente activo e iniciador, que, montado na onda de um dado presente,
delibera entre alternativas abertas para alcançar decisões relativamente às
muitas e diversas fases da sua vida.
A minha sétima razão é que a doutrina do
determinismo universal e eterno se auto-refuta quando consideramos, por redução
ao absurdo, todas as suas implicações. Se as nossas escolhas e acções de hoje
estivessem determinadas ontem, então estariam igualmente determinadas antes de
ontem, no dia do nosso nascimento, no dia do nascimento do nosso sistema solar
e da terra há biliões de anos. Considere-se então a consequência: para o
determinismo, o chamado impulso irresistível que os sistemas jurídicos
reconhecem quando julgam crimes cometidos por pessoas insanas, deve ser
considerado com o mesmo vigor para as acções realizadas por pessoas sãs e
virtuosas. Segundo a filosofia determinista, o homem bom sente um impulso
irresistível para dizer a verdade, para ser bom para os animais e para expor a
corrupção na política.
Oitava: são inúmeras as palavras que
perdem o seu significado normal no novo dialecto do determinismo. Refiro-me a
palavras como abstenção, proibição, moderação e remorso. Uma vez provada a
verdade do determinismo, teríamos que rasurar grande parte dos dicionários
existentes e redefinir uma grande quantidade de coisas. Por exemplo, que
significado deveria ter proibição quando já está determinado que irás recusar o
segundo cocktail de Martini? Em boa verdade, só se pode proibir quando se quer
impedir alguém de fazer alguma coisa que esteja no seu alcance fazer. Mas
segundo o determinismo não poderias aceitar o segundo cocktail por já estar
predeterminado que dirás “Não”. Não estou a dizer que a natureza deva
conformar-se aos nossos usos linguísticos, mas os hábitos linguísticos dos seres
humanos, que evoluíram ao longo da imensidão dos tempos, não podem ser
negligenciados na análise do livre-arbítrio e do determinismo.
Finalmente, não penso que o termo
“responsabilidade moral” possa manter o seu significado tradicional, a não ser
que exista liberdade de escolha. Segundo a perspectiva da ética, da lei e do
direito criminal, é difícil entender como um determinista consistente possa ter
um sentido de responsabilidade pessoal adequado relativamente ao
desenvolvimento de padrões éticos decentes. Mas a questão permanecerá
independentemente de terem sido ou de alguma vez poderem vir a ser
deterministas consistentes, ou até do facto de o livre-arbítrio ser um traço
inato e tão profundamente característico da natureza humana, como sugeriu
Jean-Paul Sartre ao afirmar “Não somos livres para deixar de ser livres”.
Corliss Lamont
“Freedom of the Will and Human Responsibility”,
in Philosophy: The Quest for Truth, ed. Louis P. Pojman (Nova
Iorque, Oxford University Press, 6.ª ed., 2006), pp. 367–368.
Tradução e adaptação
de Vítor João Oliveira
in Critica
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