Um modelo da Eucaristia
filosoficamente inteligível
Tipicamente no
Cristianismo entende-se a Eucaristia como um processo pelo qual Cristo se torna
realmente presente nas espécimes do pão e do vinho consagrados. Essa presença
de Cristo não é entendida metaforicamente, mas sim como real e objectiva.
Esta ideia deu origem a muitos puzzles filosóficos difíceis de resolver: como
pode o corpo e sangue de Cristo estar simultaneamente presente em múltiplos e
desconexos lugares? Como pode estar Cristo todo presente em
cada um dos lugares em que se celebra a Eucaristia? Haverá um modelo
filosoficamente consistente e plausível para a doutrina da presença real de
Cristo na Eucaristia? Começarei por apresentar o modelo da transubstanciação,
como milagre metafísico, e as suas dificuldades. Por fim argumentarei que há um
modelo mais simples e inteligível da Eucaristia: o modelo do facto
institucional (baseado na ontologia social do filósofo John Searle).
Começando pelo
modelo de Tomás de Aquino, conhecido como modelo da transubstanciação, durante
a consagração do pão e vinho ocorrem dois milagres para explicar como Cristo
está realmente presente e como persistem as propriedades empíricas do pão e do
vinho. O primeiro milagre consiste em substituir os elementos do pão e vinho
por Corpo e Sangue de Cristo e o segundo consiste em manter todos os acidentes do
pão e do vinho. Ou seja, no acto de consagração a substância muda, mas os
acidentes permanecem. Designe-se a essa ocorrência por milagre
metafísico, isto é, um evento que altera as características do mundo
material sem fazer qualquer diferença empírica.
O filósofo
Alexander Pruss, no artigo “The Eucharist: real presence and real absence” de
2009, concebeu duas formas logicamente possíveis no qual esse modelo da
transubstanciação, com o milagre metafísico, pode acomodar a ideia de que
Cristo está totalmente localizado em múltiplas regiões que não se cruzam. Uma
solução seria Deus deformar o espaço de tal forma que todas as
regiões que parecem estar ocupadas pelo pão e vinho consagrados são a
mesma região. Neste caso Cristo não está multiplamente localizado uma vez que
as regiões do pão e vinho consagrados são de facto uma só região. Alexander
Pruss procura defender que é logicamente possível que o espaço esteja dessa
forma estruturado por Deus. Mas será que no mundo actual poderia
ocorrer isso sem se fazer qualquer mudança empírica à forma como as coisas são?
Uma outra solução apresentada por Alexander Pruss é a sugestão mereológica em
que se sustenta que é logicamente possível que os objectos ocupem o espaço de
diferentes formas, ou melhor, é possível que os objectos estendam as
regiões em que estão localizados (tal como os fractais). Ora, Cristo seria um
objecto desse tipo, permitindo-se sustentar que Cristo está totalmente
localizado em cada região que se está a celebrar a Eucaristia. Contudo, não
parece nada intuitivo entender Cristo como um objecto estendido desse
tipo.
Mas será a
própria ideia de milagre metafísico possível? Ou seja, será a
transubstanciação logicamente possível? Seguindo o filósofo católico Michael
Dummett, no artigo “The intelligibility of eucharistic doctrine” publicado em
1987, o modelo da transubstanciação conduz a um dilema: Por um lado, suponha-se
que é possível que Deus transforme um objecto de algum tipo F, num objecto de
algum outro tipo, G, ao alterar a sua substância-F pela substância-G sem fazer
qualquer outra alteração. Ora, nesse caso estamos a utilizar uma noção degenerada de
substância que exclui qualquer critério para responder à pergunta “o que é
isso?”. Além disso, não é nada claro que Deus possa transformar F em G ao
substituir a sua substância-F pela substância-G mas sem haver qualquer mudança
microfísica no objecto. Isto porque intuitivamente se uma coisa parece como
café, sabe e cheira a café, e é uma réplica microfísica de um café, então
estamos diante de um café. Contudo, pelo modelo de Aquino e Pruss é logicamente
possível que não seja um café - o que parece muito controverso. Mas, por outro
lado, suponha-se que não é possível que Deus transforme F em G ao substituir a
substância-F pela substância-G; nesse caso a substância (se há uma tal coisa)
não tem qualquer relevância para o problema filosófico em consideração. Por
isso, de uma forma ou de outra, este modelo da transubstanciação enfrenta
grandes dificuldades.
Haverá um
outro modelo da presença real de Cristo na Eucaristia que seja
mais plausível e que não enfrente tantas dificuldades? Com base na ontologia
social do filósofo John Searle podemos conceber um modelo minimalista,
sem as noções metafisicamente controversas do modelo anterior, e que consegue
acomodar a presença real e objectiva de Cristo na Eucaristia. Para isso,
pode-se começar por uma ideia muito simples: Quando vamos à nossa carteira
buscar uma nota de 5€ temos apenas um pedaço de papel e nada mais? Podemos
fazer uma análise química muito rigorosa e só encontramos papel. Mas o que faz
com que esse pedaço de papel nos permita comprar um café? Uma resposta
plausível será dizer que por causa de convenções institucionais esse
pedaço de papel é realmente 5€. Também por causa de convenções
similares há realmente coisas que são casamentos, fronteiras
geográficas, obras de arte, governos, países, etc, e até (imagine-se!) pode
haver uma convenção (instituída por Cristo na última ceia) em que num pedaço de
pão está realmente presente Cristo na Eucaristia, tal como
defendem os filósofos cristãos Michael Dummett e Harriet Baber, e que também me
parece à primeira vista plausível.
De acordo com
esse modelo, a acção de consagração na Eucaristia é uma acção convencionalmente
gerada p.e. de forma análoga ao acto de passar um cheque. Esse passar um cheque
ocorre (1) em virtude de uma acção prescrita convencionalmente (2) por um
agente legitimamente credenciado (3) com a intenção de escrever um cheque (4)
usando materiais apropriados (5) tal como requerido por convenções
institucionais em que um cheque que reúne essas condições torna-se dinheiro.
Quando eu passo um cheque para comprar alguma coisa digo verdadeiramente: “Aqui
estão os meus 200€!”. Todavia, à luz das melhores investigações em físico-química,
um pedaço de papel com números e letras não vale literalmente nada mais do que
um pedaço de papel. Ainda assim, dadas certas condições constituídas por
particulares convenções sociais e institucionais, uma cheque que alguém passa
por 200€ é realmente 200€ (desde que respeite as condições 1-5 e não seja um
“cheque em branco”). Por outras palavras, em determinadas circunstâncias
o significado de um objecto está para além da sua composição
ontológica.
Quanto à
Eucaristia podemos contar uma história muito similar. Ou seja, a Eucaristia e o
momento da consagração ocorre (1) em virtude de uma acção prescrita
convencionalmente instituída por Cristo, (2) por um agente legitimamente
credenciado pela Igreja, como um sacerdote, (3) com a intenção de fazer o que
foi instituído na última ceia (4) usando materiais apropriados, como pão e
vinho, especificados pela Igreja (5) tal como requerido por essa convenção
instituída por Cristo na última ceia, na quinta-feira santa, em que pão e vinho
que reúnem essas condições tornam-se na presença real de
Cristo. Assim, na Eucaristia temos a presença do corpo de Cristo qua facto
institucional que é similar a outras convenções sociais, tal como casamento,
dinheiro, países, governos, etc. Até um ateu pode aceitar sem grandes problemas
este modelo da Eucaristia.
É verdade que
Jesus Cristo poderia ter escolhido outro tipo de matéria para constituir a
presença real de Cristo na Eucaristia. Todavia, o pão e o vinho são os
elementos da Eucaristia porque ele declarou que seriam esses
elementos. Do mesmo modo, o governo de Portugal ou a Comissão Europeia poderiam
ter declarado que as conchas e as penas de águia como veículo para as
transacções financeiras. Mas não o fizeram. Pelo contrário as moedas e notas
específicas contam como dinheiro porque um dado governo declarou-as como
dinheiro. Algo similar pode ocorrer com a Eucaristia: Cristo declarou o
pão e vinho em circunstâncias apropriadas como a sua presença real. Portanto,
na Eucaristia o pão e vinho contam como presença real de Cristo em virtude da
sua própria declaração na última ceia na quinta-feira santa. E
essa ideia de que factos institucionais são criados por declarações está
bem defendido p.e. pelo filósofo John Searle no livro Making the social
world (de 2009).
Além disso,
penso que um modelo de “convenção institucional” que estamos a expor capta bem
a ideia das passagem bíblicas da última ceia, p.e. em Lucas (22, 19-20), sem
recorrer a noções metafísicas mais sofisticadas e possivelmente mais
controversas. Afinal por que razão o acto de consagração na Eucaristia não
poderá ser uma acção convencionalmente gerada com raiz na última ceia e
instituída por Cristo? Por que razão não pode a presença real do corpo de
Cristo qua facto institucional ser similar a muitas outras
convenções sociais? Por que razão não se pode conceber a consagração como uma
acção convencionalmente gerada que induz uma mera mudança Cambridge nos
elementos da Eucaristia? É verdade que, de acordo com o filósofo católico Peter
Geach (1969, p. 71), uma mera mudança Cambridge não é real no
sentido que não envolve qualquer mudança nas propriedades intrínsecas dos
objectos em que elas ocorrem. Por exemplo, a Xantipa casada é
microfisicamente igual à Xantipa viúva; do mesmo modo a
hóstia não-consagrada é microfisicamente igual à hóstia consagrada na
Eucaristia. Mas, ainda assim, há um sentido em que tais mudanças são reais na
medida em que não são meramente subjectivas nem dependem
de estados psicológicos. Então, por que razão não pode haver na
Eucaristia uma mera mudança Cambridge nas propriedades do pão
e do vinho? Isso é bem possível e plausível.
Pode suceder
que um pessoa de uma tribo desconhecida venha ao mundo ocidental e não consiga
identificar uma fronteira geográfica convencional, como um país ou uma cidade.
Também posso deparar-me com duas pessoas e não saber se elas são casadas ou
não. Para saber se elas são casadas precisava de saber se aquelas pessoas
realizaram ou não um casamento válido. Por que razão o mesmo não se pode passar
com a Eucaristia? Sim, se encontrarmos uma hóstia perdida, não conseguimos
dizer se é hóstia-hóstia ou hóstia-presença-real-de-Cristo. Tudo bem! Mas
quando me deparo com duas pessoas desconhecidas aos beijos também não sei se
são casadas ou não. Não parece haver problema nisso. Como disse: tipicamente
nos factos institucionais há uma mera mudança Cambridge (p.e.
com respeito a uma pessoa casada ou viúva não iremos encontrar qualquer
alteração nas propriedades intrínsecas, mas ainda assim são realidades
diferentes). Por que razão não pode haver também uma mudança Cambridge no
pão e vinho durante a consagração na Eucaristia?
É importante
salientar que com este modelo filosófico da Eucaristia não estou a dizer que o
corpo de Cristo, no seu sentido mais literal do termo, é uma convenção social.
Aliás, dado o cristianismo, Jesus Cristo não passou a existir na medida em que
um conjunto vasto de pessoas convergiram em estabelecer que ele tinha um corpo.
Contudo, o que estou a tentar defender é uma tese diferente. O que estou a defender
é o seguinte: a presença de Cristo na Eucaristia, nos elementos do pão e do
vinho, é um facto institucional que se obtém em virtude da sua instituição na
última ceia pela declaração (para usar o termo de Searle) do
próprio Cristo. E isso é um evento novo que não ocorria antes dessa declaração.
Ou seja, só passou a haver presença de Cristo na Eucaristia nos elementos do
pão e do vinho depois dessa convenção institucional. Assim, tal como o dinheiro
“não existia antes da tal convenção social”, também podemos afirmar que a
presença de Cristo nos elementos do pão e do vinho não existia antes da tal
convenção institucional da Eucaristia. Assim parece que a analogia corre sem
problemas.
Com esta
argumentação, se for plausível, temos um modelo filosoficamente inteligível da
Eucaristia e evitamos compromissos com teorias metafísicas muito controversas.
O objectivo é ter um modelo filosófica e religiosamente adequado, bem como
ontologicamente minimalista. Mas será isto plausível?
Agradecimentos: estou grato ao António Rodrigues Gomes por me provocar a tratar
filosoficamente deste problema da Eucaristia. Também estou muito grato ao
Ludwig Krippahl e ao Aires Almeida por me apresentarem algumas objecções que me
permitiram clarificar e refinar melhor o modelo da Eucaristia como facto
institucional que aqui defendo. Para um “estado da arte” sobre as teorias e
modelos mais contemporâneos da Eucaristia vale a pena ler o artigo “Recent
Philosophical Work on the Doctrine of the Eucharist”, publicado em 2016 na
revista Philosophy Compass, do filósofo James Arcadi.
Domingos Faria
Lola
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