Tanto
crentes como não-crentes consideram por vezes que as tentativas de provar que
Deus existe são descabidas, porque a crença religiosa não é uma questão de
provas. Diz-se por vezes que o amor que a Clara tem pela Joana não é uma
questão de provas — apenas a ama, e é tudo. Do mesmo modo, acreditar que Deus
existe estaria também para lá das provas.
O
fideísmo é uma família de posições filosóficas que desenvolve esta maneira de
ver as coisas. A ideia é que a crença de que Deus existe não só não se apoia
muitas vezes em provas, como não precisa realmente delas para ser apropriada.
Repare-se que a ideia não é apenas que muitas pessoas acreditam que Deus existe
sem provas; isso é talvez verdadeiro, mas irrelevante, pois muitas pessoas ao
longo da história também acreditaram sem provas que nada havia de errado com a
escravatura, que as mulheres não deviam ter direitos iguais e que amar pessoas
do mesmo sexo era uma doença. As pessoas acreditam nas mais estafadas tolices;
a questão é saber se acreditam de maneira apropriada, ou se pelo contrário
acreditam irresponsavelmente. Um dos aspectos do fideísmo é a ideia de que é
apropriado, em alguns casos, acreditar que Deus existe, mesmo sem provas da sua
existência. E é aqui que entra a famosa aposta de Pascal.
Blaise Pascal foi um importante matemático e teólogo
católico francês do século XVII; nasceu em 1623 e morreu em 1662, com apenas 39
anos. No seu tempo, estava em marcha o que ficou mais tarde conhecido
como a revolução científica: um período que se estendeu
até finais do século XIX e no qual ciências como a física, a química e a
biologia conheceram desenvolvimentos ímpares na história da humanidade. Uma das
consequências de todo este desenvolvimento científico foi a descoberta de que
várias crenças históricas e científicas associadas ao teísmo cristão eram pura
e simplesmente falsas. Tornou-se difícil continuar a acreditar no teísmo como
Anselmo e Tomás acreditavam. Daí que Pascal afirme o seguinte:
Se há um Deus, ele está infinitamente para lá da nossa
compreensão, uma vez que, sendo indivisível e sem limites, não tem qualquer
relação connosco. Somos portanto incapazes de saber o que ele é e se é. (Pascal, Pensamentos, §418)
Tanto
Tomás como Anselmo ficariam perplexos com esta afirmação, sobretudo porque
Pascal era cristão. Até então, era comum os cristãos considerarem que havia
provas perfeitamente boas da existência da sua divindade. A própria Bíblia era
encarada como uma fonte fidedigna de informações históricas que provavam a existência
dessa divindade. Porém, à medida que se foi descobrindo que grande parte da
informação supostamente histórica e científica presente na Bíblia não era
verdadeira, e à medida que se foi descobrindo que o Universo não era afinal
como os cristãos pensavam, tornou-se cada vez mais comum encontrar esta posição
a que Pascal dá voz.
Tal
como noutras formas de fideísmo, Pascal parte da ideia de que não há provas
adequadas de que Deus existe, nem de que não existe. Deste ponto de vista, há
como que um empate das provas a favor e contra a existência de Deus. Contudo,
este ponto de partida é uma consideração pessoal e subjectiva; não é o
resultado de um exame cuidadoso e exaustivo das provas a favor e contra a
existência de Deus. Concluir adequadamente que as provas para um lado e para o
outro se anulam ou equilibram é muito mais difícil do que parece à primeira
vista. Isto porque não basta apresentar algumas provas duvidosas; é preciso ser
exaustivo e procurar as melhores provas a favor da existência de Deus. Depois,
é preciso examiná-las para ver se são todas deficientes. Mas mesmo isto ainda
não basta; ainda falta comparar o peso relativo das dificuldades encontradas
nessas provas com a plausibilidade da hipótese da inexistência de Deus, e das
eventuais provas a seu favor. Ver apenas que algumas provas que nos pareciam
definitivas deixam muito a desejar está longe de ser uma boa prova de que não
se pode saber que Deus existe nem que não existe.
Como
é evidente, fica-se surpreendido, e com razão, que seja um crente a declarar
que afinal não há provas adequadas da existência de Deus. Nesse caso, por que
razão continua ele a acreditar que Deus existe? Não seria muitíssimo mais
razoável suspender a crença e adoptar uma posição agnóstica?
Perante
qualquer crença, seja ela religiosa ou não, há sempre três atitudes. Vejamos no
caso da crença de que Deus existe:
1.
Acreditar que Deus existe.
2.
Acreditar que Deus não existe.
3.
Não acreditar que Deus existe, nem que
não existe.
1
é a posição de uma pessoa crente
2 a de uma ateia. Ambas têm uma crença relativa à existência de Deus, e ambas contrastam com a posição
3, que é a da pessoa agnóstica. Esta última nem acredita que Deus existe, nem acredita que não existe; limita-se a suspender a crença. Isto é algo que fazemos muitas vezes. Por exemplo, é de prever que as pessoas, na sua maioria, não acreditam que existem extraterrestres inteligentes que pesam duzentos quilos; mas também não acreditam que não existem. Simplesmente, não têm qualquer crença quanto a isso.
2 a de uma ateia. Ambas têm uma crença relativa à existência de Deus, e ambas contrastam com a posição
3, que é a da pessoa agnóstica. Esta última nem acredita que Deus existe, nem acredita que não existe; limita-se a suspender a crença. Isto é algo que fazemos muitas vezes. Por exemplo, é de prever que as pessoas, na sua maioria, não acreditam que existem extraterrestres inteligentes que pesam duzentos quilos; mas também não acreditam que não existem. Simplesmente, não têm qualquer crença quanto a isso.
Este
aspecto elementar da lógica da crença não é rejeitado por Pascal; porém, o seu
raciocínio desenvolve-se pressupondo que, na prática, tanto faz acreditar que
Deus não existe como não acreditar que existe, porque em ambos os casos não
somos crentes. De modo que Pascal formula a questão em termos de duas
alternativas apenas: acreditar ou não? E a resposta de Pascal é que é
irracional não acreditar em Deus, se pensarmos cuidadosamente nas alternativas:
§
Deus existe e acredito; ganho o
infinito.
§
Deus existe e não acredito; perco o
infinito.
§
Deus não existe e acredito; o que perco
não é significativo.
§
Deus não existe e não acredito; o que
ganho não é significativo.
Chama-se aposta de Pascal à
atitude de apostar na crença porque é a mais vantajosa das quatro alternativas.
É a mais vantajosa porque promete um ganho infinito, nada de substancial se
perdendo caso se perca a aposta. Em contraste, se não acreditarmos,
arriscamo-nos a perder o infinito, e o que se ganha, se Deus realmente não
existir, é negligenciável.
A
aposta de Pascal compreende-se mais claramente com outro exemplo. Imagine-se
que alguém nos propõe um negócio mafioso que custa apenas dois reais. Se
existir vida em Marte, esses dois reais rendem-nos duzentos milhões de reais.
Se não existir vida em Marte, só perdemos os dois reais. Contudo, se recusarmos
delicadamente o negócio, o mafioso puxa da pistola e diz-nos que, nesse caso,
se existir vida em Marte, teremos de pagar duzentos milhões de reais. Mas se
tivermos a sorte de não existir vida em Marte, diz-nos ele com um sorriso
benevolente, guardando a pistola, poupamos os dois reais e nada mais acontece.
Eis as alternativas:
§
Há vida em Marte e aposto; ganho
duzentos milhões de reais.
§
Há vida em Marte e não aposto; perco
duzentos milhões de reais.
§
Não há vida em Marte e aposto; perco
dois reais.
§
Não há vida em Marte e não aposto; poupo
dois reais.
Caso isto nos fosse proposto, o mais vantajoso seria, evidentemente, abrir a carteira e apostar dois reais na existência de vida em Marte. No máximo, perdemos dois reais — mas talvez ganhemos duzentos milhões. E se não apostarmos, arriscamo-nos a ter de pagar duzentos milhões de reais. Claro que neste caso seria irracional não apostar na existência de vida em Marte.
E
é isto que Pascal tinha em mente. Do seu ponto de vista, é irracional não ser
crente porque no máximo perde-se tempo com rituais e tudo isso, mas talvez
ganhemos o infinito. Em contraste, se não formos crentes, o que se ganha é
pouco importante, mas arriscamo-nos a perder o infinito.
Terá Pascal razão?
Pascal
pensa que a crença religiosa promete o infinito, e este conceito é fundamental
no seu pensamento. Isto é até um pouco estranho precisamente porque Pascal era
matemático e deveria saber que nada há de especialmente misterioso nos vários
infinitos matemáticos. Mas ele usa este conceito, e não o de vida paradisíaca
no além, precisamente porque está a pensar na sua aposta em termos matemáticos:
de um lado, a hipótese de ganhar o infinito, ou de o perder; e, do outro, a
hipótese de ganhar ou perder ninharias que, face ao infinito, são irrelevantes.
A ideia é precisamente que perante a hipótese de um ganho infinito, ou de uma
perda infinita, qualquer outra hipótese fica infinitamente em segundo plano.
Porém,
como sabe Pascal que a crença sem provas nos dá a hipótese de ganhar o
infinito? Uma vez que ele começa por admitir que não sabe se Deus existe, nem
qual é a sua natureza, isto significa obviamente que também não sabe se Deus
nos recompensa com o infinito quando acreditamos sem provas. Talvez, ao invés,
Deus nos castigue com a danação eterna caso acreditemos sem provas — talvez
porque isso significa que usámos mal as capacidades racionais dadas por Deus.
Ou talvez Deus castigue os interesseiros, que acreditam na ausência de provas
só porque estão a pensar em ganhar o infinito. Como sabe Pascal que as coisas
não são assim, dado que confessa não saber se Deus existe, nem qual é a sua
natureza? A perda do infinito quando se acredita sem provas não é uma
alternativa menos plausível que qualquer outra para quem confessa não saber se
Deus existe, nem qual é a sua natureza. Consequentemente, a aposta de Pascal
está longe de parecer promissora. Esta é uma primeira dificuldade, e é
muitíssimo séria.
Para
ver uma segunda dificuldade, imagine-se que, de algum modo, Pascal consegue
mostrar que Deus concede a graça do infinito a quem acredita sem provas. Mesmo
assim, ele teria ainda de explicar o que há assim de tão desejável no infinito.
Pascal
usa o termo «infinito», e limita-se a pressupor que isso é desejável. Porém,
está longe de ser óbvio que o seja. Na Antiguidade grega, por exemplo, o
filósofo Epicuro respondia às inquietações que os seus contemporâneos sentiam
com a morte explicando-lhes que a morte era o fim de tudo, e que por isso nada
havia a recear. Isto porque na mitologia grega se explicava a morte da seguinte
maneira: quando uma pessoa morre, perde a vida, mas continua a existir
infinitamente, como uma sombra, no mundo dos mortos. Esta existência é terrível
porque os mortos não têm vida, e não podem pôr fim a essa terrível condição.
Eis um infinito nada desejável.
É
evidente que Pascal imagina que o infinito é a vida eterna no paraíso que faz
parte da crença especificamente cristã. Porém, se Deus «está infinitamente para
lá da nossa compreensão», nas palavras do próprio Pascal, como sabe ele que o
infinito não é o que se imaginava na mitologia grega? Nesse caso, o melhor a
fazer não é ser crente, mas antes descrente, pois só isso nos libertará do
pesadelo de existir para todo o sempre como uma sombra sem vida no mundo dos
mortos.
Há
muitas versões de fideísmo, mas a de Pascal continua a ser uma das mais
fascinantes. Infelizmente, enfrenta dificuldades de monta. É
extraordinariamente difícil, ou impossível, concluir apropriadamente que é preferível
ser crente sem estabelecer primeiro que Deus existe, e sem saber qual é a sua
natureza.
Além
disso, os seres humanos não mandam irrestritamente nas suas próprias crenças:
quando uma pessoa está a ver nevoeiro, dificilmente consegue convencer-se que está
a ver um dia de Sol radioso. Só com extremo auto engano conseguimos obrigar-nos
a acreditar no que não temos provas, e não é de prever que isso nos deixe num
estado psicologicamente saudável.
Não
se deve confundir a crença de que Deus existe com a esperança de que exista. As
condições em que é razoável acreditar que existe uma divindade são diferentes
das condições em que é razoável ter a esperança de que exista. Porém, mesmo no
caso da esperança, é muitíssimo difícil defender adequadamente que não é preciso
ter boas provas. A esperança sem provas é, em alguns casos, um obstáculo a uma
vida humana bem vivida, porque priva a pessoa de procurar a vida melhor que
conseguiria ter, enquanto espera pela vida imaginária que nunca terá.
Uma
maneira de reformular a aposta de Pascal para resolver as dificuldades
anteriores é a seguinte: elimine-se a ideia de infinito e ponha-se em seu lugar
a ideia de uma vida humana bem-sucedida, como crente religioso. A ideia então é
que é preferível ser crente do que não o ser, mas não devido à promessa do
infinito; é preferível sê-lo simplesmente porque teremos uma vida melhor.
É
muitíssimo duvidoso que Pascal aceitasse esta reformulação, mas tem certamente
a vantagem de resolver as dificuldades anteriores. Contudo, enfrenta uma
dificuldade diferente: é que são precisas provas para sustentar a ideia de que
uma vida de crente é realmente melhor do que a de uma pessoa que não é crente.
Muitas pessoas crentes tiveram vidas maravilhosas e inspiradoras, com actos de
grande altruísmo, criando valor e beleza; mas muitas outras têm vidas
mesquinhas e desinteressantes, ou até positivamente repugnantes. E o mesmo
acontece com a vida de muitos descrentes: alguns são escritores e músicos
maravilhosos, generosos e altruístas, dando importantes contribuições para um
mundo melhor, e outros têm vidas mesquinhas e desinteressantes.
Sem
provas adequadas, não se sabe se uma vida de crente é realmente melhor do que a
de uma pessoa que não é crente, desde que tudo o resto seja igual. E, por isso,
a aposta reformulada de Pascal não oferece uma maneira de escolher
apropriadamente ser crente na ausência de provas. É verdade que não precisamos
de provas de que Deus existe; mas precisamos de provas de que a nossa vida será
melhor se formos crentes do que se não o formos.
por Desidério Murcho
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