By João Martins |
O problema do mal
O mundo em que vivemos está repleto de
coisas más. Dor, fome, pobreza, tristeza, guerras, catástrofes e muitas outras
coisas. Faz-nos pensar “Se eu fosse Deus, acabaria com tudo isso e faria um
mundo melhor!” Dizem que Deus é criador, bom, omnipotente e omnisciente. Se
assim fosse, o mal não existiria; um ser bom e com poderes ilimitados não
criaria um mundo mau — criaria um mundo perfeito. Ao olharmos para o mundo e
para os seus habitantes somos levados a concluir que o deus descrito atrás não
existe.
Este
é o problema do mal. Como podemos compatibilizar um mundo repleto de sofrimento
com a existência de Deus? Dificilmente.
O
problema do mal pode ser encarado de duas perspectivas distintas: por um lado
temos os crentes, para quem o problema do mal é mais um desafio à fé que
professam, talvez um Mistério da Fé; por outro, os não crentes, que encaram
este problema como um argumento contra a existência de Deus.
Neste
texto, irei abordar o problema do mal do ponto de vista do não crente e
tentarei demonstrar que, contrariamente ao que o argumento nos diz, o mundo que
conhecemos é compatível com Deus.
Deus
O argumento do mal contra a existência
de Deus só se coloca quando se discute a existência de Deus tal como é
defendida pelos teístas. Deus sabe tudo, pode fazer tudo, é infinitamente bom e
criou o universo. Por saber tudo, sabe da existência do mal; por poder fazer
tudo, pode eliminar o mal; por ser bom, quererá eliminar o mal; e por ter
criado o universo é responsável pelo que fez. Se discutimos a existência de um
deus que não reúna qualquer uma destas quatro características fundamentais, o
problema do mal deixa de se colocar.
Importa
detalhar um pouco o que se entende por um ser omnipotente e bom. Enquanto,
neste contexto, a omnisciência de Deus não levanta grandes questões — Deus sabe
do mal que existe no mundo — já a omnipotência e a bondade poderão originar
alguns equívocos. Por omnipotência entende-se a capacidade de fazer tudo o que
é logicamente possível. Assim, Deus poderá criar e destruir mundos, mas não
poderá fazer um círculo quadrado ou um objecto demasiado pesado para Ele
próprio levantar, dado que isto são impossibilidades lógicas. Quando dizemos
que Deus é infinitamente bom, queremos dizer que Ele quererá fazer o melhor
mundo possível, de acordo com critérios humanos.
Uma
das maneiras de contornar o problema do mal seria afirmar que o conceito de
bondade aplicado a Deus é diferente do aplicado aos seres humanos, pelo que,
segundo os padrões de Deus, este seria o melhor mundo possível; o problema está
em que, segundo este critério, não podemos afirmar que Deus é bom, uma vez que
este conceito perde o seu significado.
Respostas possíveis
Assim, sendo Deus omnipotente,
omnisciente, infinitamente bom e criador, como conseguimos compatibilizar o
mundo que conhecemos, repleto de mal e sofrimento, com a Sua existência? Há
diversos caminhos para responder a esta questão. Podemos justificar a
existência do mal com base em bens maiores, proporcionados por esse mal. Temos
assim o argumento do livre-arbítrio, que defende ser o sofrimento no mundo
originado pela completa liberdade dos seres humanos — é um bem maior que
origina o mal no mundo; temos também o argumento dos Santos e dos Heróis, que
defende que o mal foi colocado no mundo para permitir a ocorrência de grandes
feitos e actos de fé — é o mal que origina um bem maior.
Em
qualquer uma destas explicações, e noutras da mesma natureza, faz-se uma
tentativa de justificar e explicar todo o mal e todo o sofrimento do mundo. Ao
justificar esse mal com recurso a um bem maior, deixa de ser contraditória a
existência de Deus com o mundo que conhecemos.
Este
tipo de argumento tem, quanto a mim, um problema de raiz: baseia-se numa
análise dos propósitos e intenções de Deus. Como tal, apenas fará sentido
depois de pressuposta uma determinada crença, não sendo possível contrariar a
perplexidade dos não crentes perante o mal no mundo. Existem no mundo inúmeros
factores que provocam quantidades exageradas de sofrimento — desde terramotos e
outras catástrofes naturais a guerras e acções de extermínio provocado pelos
seres humanos. Será que existe algum tipo de bem que justifique estes males?
Qual é a justificação para a ocorrência de um terramoto que provoca milhares de
mortes? Não seria possível para um ser omnipotente proporcionar esses alegados
bens sem ter de recorrer a um terramoto? Estas e outras perguntas colocam sérios
obstáculos aos argumentos de justificação do mal pela criação de bens maiores.
O
argumento do mal é extremamente simples e, talvez por isso, muito forte;
eventualmente mais forte do que qualquer justificação ou explicação do mal que
consigamos arranjar. Se começamos por tentar explicar ou justificar a
existência do sofrimento antes de conseguirmos demonstrar a sua compatibilidade
com Deus, nunca conseguiremos ultrapassar o argumento do mal; a nossa
argumentação ficará apoiada numa base muito fraca, de nada servindo contra a
solidez do problema do mal.
O
que eu defendo neste texto é que só conseguiremos ultrapassar o problema do
mal, mesmo para aqueles que não crêem em Deus, se conseguirmos provar que a
existência de um mundo sem mal é uma impossibilidade lógica. Se tal for
conseguido, segue-se que nem a omnipotência nem a bondade de Deus são postas em
causa pela existência do mal no mundo.
O argumento
Quando afirmamos que a quantidade de mal
existente no mundo é incompatível com a existência de Deus estamos a afirmar
duas coisas simultaneamente:
1.
Há demasiado mal no mundo.
2.
É possível a existência de um mundo
melhor.
Caso 2 seja falsa, Deus, mesmo sendo
omnipotente, terá criado o melhor dos mundos, pelo que o argumento do mal perde
a sua força.
Não
vou contestar 1, uma vez que me parece óbvia, mas irei desenvolver um pouco
mais 2 com vista a provar a sua falsidade.
Quando
dizemos que existe demasiado mal no mundo, estamos a basear-nos nas nossas
próprias observações. É o ser humano, o ser que sofre, que diz que o mundo tem
demasiado sofrimento; não poderia nunca ser de outro modo. O sofrimento, quando
se trata de abordar o problema do mal, será sempre avaliado pelos humanos.
Assim, as proposições 1 e 2 serão equivalentes, respectivamente, a:
1'. Quanto a nós, habitantes do mundo,
existe demasiado mal no mundo
2'. É possível que exista um mundo que
os seus habitantes considerem suficientemente bom.
O que eu defendo é que 2' é uma
impossibilidade lógica, ou seja, que por muito pouco que seja o sofrimento ou
mal existente num determinado mundo, este será sempre considerado exagerado
pelos seus habitantes. Assim, o facto de nós considerarmos que o nosso mundo
tem demasiado sofrimento não implica que seja um mundo mau; mesmo que o
sofrimento existente fosse apenas uma ínfima parte do que agora conhecemos,
continuaríamos a achar, com a mesma convicção, que o mundo era demasiado mau.
Verifica-se assim, se 2' for falsa, que o mundo em que vivermos pode ser o
melhor mundo possível, independentemente de nós concordarmos ou não. Note-se
que esta afirmação é diferente de dizer que o conceito de bondade de Deus é
diferente do conceito de bondade dos homens; o que se diz aqui é que os seres
humanos não são observadores isentos e imparciais no que respeita a avaliar o
mal do mundo.
A defesa do argumento
Vou agora apresentar argumentos que
defendem que 2' é falsa — que não é possível que exista um mundo que os seus
habitantes considerem suficientemente bom.
Analisemos
antes de mais nada aquilo a que chamamos “sofrimento”. Quanto a mim, todo o
sofrimento resulta de uma Necessidade por satisfazer. Temos as necessidades
físicas, que são necessidades no verdadeiro sentido da palavra — se não forem
satisfeitas resultarão em sofrimento físico e eventualmente em morte. Temos as
necessidades psicológicas, que habitualmente designamos por “desejos” — aquilo
que queremos; se não conseguirmos ter aquilo que queremos, sofremos. Note-se
que o termo “necessidade” é utilizado com dois significados distintos: aquilo
que precisamos e aquilo que queremos. Ao longo do texto utilizarei
“Necessidade” para designar o conjunto daquilo que precisamos e daquilo que queremos
e “necessidade” para designar apenas aquilo que precisamos.
Conseguimos
enquadrar na fórmula das Necessidades por satisfazer todo o tipo de sofrimento:
dor (necessidade de bem-estar), fome (necessidade de alimento), doença
(necessidade de saúde e bem estar), saudade (necessidade de alguém de que
gostamos), tristeza (necessidade de algo/alguém que não temos), etc.
Se
pensarmos bem nos vários tipos de sofrimento que conhecemos, verificamos que
todos se enquadram neste conceito. Verificamos também que a maioria dos
sofrimentos que consideramos mais graves, aqueles que dizemos incompatíveis com
Deus, dão-se quando a Necessidade por satisfazer é do tipo desejo — falta-nos
aquilo que queremos, não aquilo que precisamos. No topo da escala está a morte.
Considero que a morte é sofrimento na medida em que queremos viver, não que
precisamos de viver, pelo que será um sofrimento psicológico; a dor
eventualmente associada à morte é que será um sofrimento físico.
Em
suma: temos necessidades e vontades que, quando não são satisfeitas, resultam
em sofrimento.
Para
demonstrar que, independentemente da quantidade de mal existente num dado
mundo, este será sempre considerado demasiado mau pelos seus habitantes temos
que provar os seguintes pontos:
3.
Um mundo sem qualquer tipo de mal não é
um mundo bom.
4. Um mundo com menos mal do que o nosso,
por muito pouco que seja, será considerado demasiado mau pelos seus habitantes.
Imaginemos um mundo sem sofrimento. Um
mundo sem sofrimento é um mundo em que os seus habitantes não têm Necessidades
por satisfazer. Isto pode ser conseguido de duas formas: ou não têm
Necessidades ou todas elas estão satisfeitas. Num mundo sem mal estas duas
situações são equivalentes. Se todas as Necessidades estão satisfeitas, é o
mesmo que não haver Necessidades. Poder-se-á dizer que nós, no nosso mundo,
precisamos de água para beber, mas que por vezes essa Necessidade está
satisfeita. No entanto, num mundo sem mal, essa Necessidade nunca esteve ou
estará por satisfazer, pelo que os seus habitantes nunca tomaram consciência
dela; para eles, será como se não tivessem Necessidade alguma. Um mundo sem
qualquer tipo de Necessidade é um mundo sem emoções, sem sentimentos, sem
movimento. Se não queremos nada nem precisamos de nada, por que razão fazer
seja o que for? Se pensarmos cuidadosamente verificamos que um mundo sem
qualquer tipo de Necessidade por satisfazer não é um mundo bom; com efeito, é
um mundo que dificilmente conseguimos conceber.
Muito
bem, diremos nós, um mundo sem mal não é um mundo bom. De qualquer modo, o
sofrimento existente no nosso mundo é manifestamente exagerado. Podemos
perfeitamente admitir um mundo em que possa haver sede, fome, alguns desejos
não realizados e outras coisas mais, mas daí às guerras, terramotos e sabe-se
lá mais o quê, vai um grande salto. Não temos dúvidas em afirmar que o
sofrimento existente no nosso mundo é excessivo, sendo incompatível com a
existência de Deus.
Isto
leva-nos a 4, que diz que se existe sofrimento num determinado mundo, por muito
pouco que seja, este será considerado demasiado pelos seus habitantes.
Um
mundo com menos sofrimento do que o nosso, mas mesmo assim com algum
sofrimento, será um mundo em que existem algumas, eventualmente poucas,
Necessidades por satisfazer, que originam sofrimento.
Quanto
a mim, cada indivíduo tem uma escala pessoal de sofrimento, que está
relacionada com uma escala pessoal de Necessidades: uns resistem melhor à dor,
outros são mais sensíveis, uns são mais fortes emocionalmente, outros choram
por tudo e por nada. Situações semelhantes provocam em cada um de nós emoções
diferentes e, se for o caso, sofrimentos diferentes. Isto deve-se a cada um de
nós ter uma escala pessoal de Necessidades, dando uns mais valor a umas coisas
do que a outras, precisando uns mais de umas coisas do que de outras. Todos
precisamos ou desejamos diferentes coisas; e mesmo quando Necessitamos das
mesmas coisas, a intensidade dessa Necessidade varia.
Podemos
classificar as Necessidades da seguinte forma:
- Necessidades latentes: São aquelas que ainda não foram
consciencializadas por nós. Há coisas que queremos ou que precisamos mas
que ainda não sabemos. Quando nascemos não sabemos que o ar nos faz falta.
A necessidade do ar, nessa fase, é uma Necessidade latente. À medida que
vamos crescendo o número de Necessidades latentes vai diminuindo, apesar
de nunca desaparecerem por completo. Uma Necessidade latente deixa de o
ser no momento em que se torna uma Necessidade por satisfazer, passando a
ser uma Necessidade activa.
- Necessidades activa: São aquelas que já conhecemos e que estão
presentes no nosso pensamento. Uma Necessidade pode estar satisfeita, mas
ser uma Necessidade activa. É o caso da necessidade do ar que respiramos —
podemos não estar a sofrer com falta de ar, mas sabemos constantemente que
nos é imprescindível. Uma Necessidade activa pode passar a Necessidade
adormecida quando se afasta demasiado do nosso consciente. Todas as
Necessidades por satisfazer são Necessidades activas.
- Necessidades adormecidas: São aquelas que já conhecemos mas que, de
momento, estão longe do nosso pensamento. Uma Necessidade adormecida é,
basicamente, uma Necessidade activa que se foi afastando do nosso
consciente. Se partimos uma perna, vivemos uma Necessidade por satisfazer
aguda — a Necessidade que a perna fique boa. Mesmo depois de curar a perna
conhecemos uma Necessidade activa, apesar de não estar por satisfazer, que
a perna se mantenha boa. Ao fim de alguns meses ou anos deixamos de sentir
essa Necessidade, passando esta a ser uma Necessidade adormecida — não
pensamos mais na perna partida, será apenas uma vaga recordação.
A escala pessoal de Necessidades de cada
um de nós, que está intimamente ligada com uma escala pessoal de sofrimento, é
determinada pelo conjunto de Necessidades activas que vivemos no momento. Essa
escala não é constante, varia ao longo do tempo em função dos inúmeros factores
que determinam as nossas Necessidades.
Quando
vivemos uma situação de Necessidade por satisfazer, o sofrimento por ela
provocado será função da posição dessa Necessidade na nossa escala pessoal. Se
a Necessidade não satisfeita está no topo da escala, sofremos muito, se está na
base, sofremos pouco.
Se
me telefonam a meio da noite a dizer que alguém que me é querido teve um
acidente e faleceu, sofrerei imenso. No momento em que recebo o telefonema
estou longe de imaginar que tal vai acontecer — a Necessidade que tenho dessa
pessoa é uma Necessidade adormecida ou então activa mas distante da minha
consciência. Como tal, a situação que estou a viver é de uma Necessidade por
satisfazer elevadíssima, nesse momento é o topo da minha escala, não estou
consciente de mais Necessidades que possam surgir naquele momento. Sofro
imenso.
Por
outro lado, imaginemos que houve um terramoto, com milhares de vítimas, num
lugar onde diversas pessoas que me são queridas estão a passar férias; as
notícias que tenho apontam para que ninguém tenha sobrevivido. Depois, recebo a
notícia de que afinal apenas uma pessoa faleceu; o sofrimento que sinto será
certamente elevado, mas inferior ao do exemplo anterior. As notícias
precedentes aumentaram consideravelmente a minha escala de Necessidades
activas. A morte de “apenas” uma pessoa já não está no topo da escala, passou a
estar num nível mais abaixo.
Quantas
vezes, ao viver uma situação de tristeza, não tentamos inconscientemente
aumentar a nossa escala de Necessidades activa, para diminuir o sofrimento que
sentimos. Pensamos naqueles que estão pior do que nós, tentamos imaginar que
poderia ser pior; em suma, tentamos alargar a nossa escala de Necessidades
activas, de modo a que a Necessidade por satisfazer que causa o nosso
sofrimento desça um pouco de nível, diminuindo com isso o sofrimento que
sentimos.
Voltemos
agora ao mundo ideal, com algum sofrimento mas em menor quantidade do que o nosso.
Para que este mundo tenha menos sofrimento temos duas hipóteses: ou existem
menos Necessidades ou o seu grau de satisfação é maior. Qualquer uma destas
situações resulta numa escala de Necessidades activas de menor amplitude — a
quantidade de Necessidades por satisfazer é menor. No entanto, depois do que
foi dito anteriormente, facilmente se verifica que qualquer criatura desse
mundo que viva uma Necessidade por satisfazer do topo da sua escala, seja ela
qual for, estará a sofrer intensamente. Mesmo que esse sofrimento seja
provocado por uma unha encravada, se for o topo da escala de Necessidades
activas, será um sofrimento atroz. Vemos situações destas todos os dias,
especialmente com as crianças. Uma criança que viva numa família estável, com
um nível de vida médio ou elevado, vive num mundo semelhante ao mundo que
dizemos ideal, com pouco sofrimento. Com efeito, esta criança não conhece
nenhum tipo de sofrimento que nós, adultos, dizemos ser elevado: não conhece a
fome, a morte, a pobreza, a guerra nem nenhuma outra das desgraças do mundo. No
entanto não podemos dizer que essa criança não sofre; quando quer algo que não
pode ter o seu sofrimento será extremamente elevado, essa Necessidade por
satisfazer está no topo da sua escala pessoal. Os pais dirão que é apenas uma
birra, o sofrimento que o filho está a sentir não é nada comparado com o que
existe à sua volta. Na escala de Necessidades dos pais, que já conhecem muitos
outros tipos de sofrimento, a falta desse brinquedo está no nível mais baixo,
se é que chega a figurar nela.
Alternativamente,
podemos imaginar um mundo em que a escala de Necessidades activas seja bastante
alargada, mas em que os seus habitantes apenas vivam situações “a meio da
escala”. O problema desta hipótese está em que para a escala das Necessidades
activas ser alargada será necessária uma tomada de consciência das Necessidades
que a compõem, caso contrário estas passarão a Necessidades adormecidas ou
então nunca deixarão de ser Necessidades latentes. Para uma Necessidade ser activa
temos que tomar algum tipo de contacto com ela, seja porque foi uma Necessidade
por satisfazer, mesmo que temporariamente, ou porque sabemos de alguém que a
sofreu. Se o conhecimento que temos dessa Necessidade é muito afastado, não
será uma Necessidade activa. Para qualquer um de nós, a necessidade que temos
de um sistema solar estável é algo que está longe dos nossos pensamentos, é uma
Necessidade latente muito reduzida; no entanto, se imaginarmos que o planeta
Terra estará habitado pelos nossos descendentes daqui a alguns milhões de anos,
quando se prevê que o Sol se expanda consumindo todo o sistema solar interior,
esta Necessidade será fortíssima, estará certamente no topo da escala.
Eventualmente dirão: “Um terramoto ou uma guerra mundial até seria compatível
com Deus, agora um conjunto de planetas consumido por uma bola de fogo? Nunca!”
Em
jeito de resumo podemos dizer que qualquer situação de Necessidade por
satisfazer próxima do topo da escala de Necessidades activas será insuportável
para quem a vive. Por outro lado, a escala pessoal de Necessidades activas, que
condiciona o sofrimento, é definida pelo sofrimento máximo que conhecemos.
Assim, num mundo em que haja sofrimento, por muito pouco que este seja, haverá
necessariamente situações de sofrimento insuportável, do topo da escala do
sofrimento, que serão consideradas por quem as vive como incompatíveis com
Deus.
Conclusão
Prova-se assim que a existência de um
mundo considerado bom pelos seus habitantes é logicamente impossível, pelo que
um mundo considerado mau pelos seus habitantes não se torna incompatível com
Deus. O nosso mundo é considerado mau pelos seus habitantes; mas daí não se
segue que é incompatível com Deus.
Faço
notar, para finalizar, que o argumento que defendo apenas nos diz que o mundo
que conhecemos é compatível com a existência de Deus. Não podemos daqui inferir
que Deus é bom, que Deus existe ou sequer que se Deus existisse, seria bom; não
podemos a partir deste argumento justificar o mal que há no mundo, nem sequer
concluir que o mundo é bom. O argumento apenas nos diz que não podemos retirar
do problema do mal, tal como enunciado no início, que Deus não existe. A partir
daqui podemos avançar para uma tentativa de justificar o sofrimento existente
no mundo e, eventualmente, provar que este é o melhor mundo possível. Este
caminho será, mesmo com base no argumento exposto, extremamente difícil; apesar
de termos demonstrado que o problema do mal não é conclusivo quanto à
existência de Deus, este continua a ser extremamente forte.
Aquele
que coloca o problema do mal poderá sempre dizer que, no mundo em que vivemos,
as situações de sofrimento do topo da escala média dos humanos são muito mais
frequentes do que o necessário. Seria suficiente um terramoto de vinte em vinte
anos para “alargar” a nossa escala de sofrimento, resultando isso num
sofrimento médio mais reduzido. Por outro lado, o crente poderá dizer que não é
bem assim, que nos parece a nós que o sofrimento é todo do topo da escala
porque, em face de situações de sofrimento elevado, temos tendência para
esquecer o sofrimento mais reduzido.
Podemos
agora dizer, seguramente, que um mundo com mal é compatível com Deus; mas será
que podemos dizer que o nosso mundo, com o mal que nele existe, também o é?
Fica
a pergunta, faltam as respostas.
Jaime Quintas
Leituras
·
Richard Swinburne, “Por que Razão Deus
Permite o Mal” in Será que Deus Existe?, Cap. 6 (Gradiva, 1998)
·
Brian Davies, “God and Evil” in An
Introduction to the Philosophy of Religion, cap. 3 (Oxford University
Press, 1993)
·
J.L. Mackie, The Miracle of
Theism (Oxford, 1982)
In
Critica
By Fernando Brito |
Lola
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