Utilitarismo e pandemia: uma resposta ao dilema do
trem
Michael Sandel,
professor, filósofo, escritor e autor de uma das mais importantes obras do
século XX, que dialogando com os problemas modernos acerca da ética, elabora em
seu livro ‘’Justiça: O que é Fazer a Coisa Certa’’ uma atualização do dilema
moral da Philippa Foot conhecido como ‘’dilema do trem’’, no qual se põe a
trabalhar os limites da moral e da ética, dialogando a todo o momento com
implicações utilitaristas, herdadas pelas teorias elaboradas por nomes como
John Stuart Mill.
O dilema consiste em
colocar o leitor na situação do agulheiro de um trem desgovernado na qual
está em uma velocidade de 100 km/h. À frente dos trilhos estão cinco operários
trabalhando. Você, agulheiro, tenta parar, porém não consegue, pois os freios
estão quebrados. Ocorre que a esta altura o leitor sabe que, se não fizer nada,
o trem seguirá seu destino e os operários morrerão. Contudo há um desvio à
direita, cujos trilhos estão ocupados por somente um operário.
Matando o operário que
está à direita, você salva cinco vidas. Não fazendo nada, você sacrifica cinco
vidas. Eis o dilema: é ética a ideia de matar um para salvar cinco? Ou melhor:
é legítimo assassinar um indivíduo inocente?
Dilemas morais são
caricatos, pois ilustram sempre situações reais das quais não há saída
confortável do ponto de vista da razoabilidade prática. Um exemplo ilustrativo
se encontra na atual crise do Coronavírus. O Sistema Único de Saúde está para
se tornar o novo dilema do trem. Devemos deixar à mera discricionariedade
médica a decisão de que deve alguém morrer para que outro sobreviva? Como
lidaremos com a escassez de leitos e respiradouros? Devemos ponderar
sobre quem ‘merece viver’ nessa situação não mais hipotética?
O medico agora tem em
suas mãos exatamente o destino da vida de cada pessoa, assim como o motorneiro.
Sua ação ou omissão decretará o destino dessas vidas. Poderíamos julgar um
médico que escolhe salvar a vida de um paciente jovem ao invés de um idoso?
Talvez a resposta tenha sido intuitiva, afinal, é fácil virar à direita e
salvar cinco pelo preço de uma. Mas será que esse mesmo raciocínio se manterá
sabendo que as cinco vítimas sejam prisioneiros condenados por homicídio? Será
que, sabendo disso, ainda viraríamos à direita?
Com a liberdade do
anacronismo, a melhor resposta para este dilema foi dada pelo gigante de
Köenigsberg, Immanuel Kant, que postumamente debate as implicações
contemporâneas do dilema do trem.
Kant explica da
seguinte forma: ‘’A natureza racional existe como fim em si mesmo’’. E chega a
conclusão de que os seres ontologicamente racionais estão em um plano moral
chamado ‘’reino dos fins’’.
Para Kant, todos os
seres racionais devem sempre agir considerando a humanidade, tanto própria,
quanto alheia, sempre e ao mesmo tempo como fim, nunca como meio, e isso impede
qualquer ação ou tentativa ética de privação ou mera deliberação acerca da vida
dos indivíduos igualmente ontologicamente racionais.
A ética é o campo
normativo que serve como fonte de legitimidade das normas. Em Kant, podemos
deduzir todo o estudo da ética através de um raciocínio trabalhado na obra
‘’Metafísica dos Costumes’’, que foi traduzido no que chamamos de ‘imperativo
categórico’.
Em Kant, deduzimos
critérios que são características intrínsecas à própria imanência da
norma-ética, a saber: (I) aplicabilidade, (II) objetividade e (III)
temporalidade. Desta forma, a norma precisa ser absoluta (incondicionalmente
válida), objetiva (cuja validade é irredutível à vontade e desejos dos
indivíduos) e atemporal (uma vez válida, não pode ter sido revogada ou deixar
de ter sido vigente em X recorte temporal específico).
Ocorre que a ‘ética’
utilitarista não se sustenta do ponto de vista deontológico, e é completamente
inútil para resolução deste dilema justamente por conter falhas em sua
estrutura. Aplicar uma decisão utilitária implica em aplicar uma decisão
antiética. Aqui o problema transcende a esfera prática, e faz-nos entrar na
esfera deontológica.
A decisão cunhada no
utilitarismo jamais poderia alcançar o status da ética
justamente porque a aplicação dessa decisão na realidade prática geraria
conflitos, e desprovida de universalidade normativa, deixaria de ser ética.
Ignorar este fato implicaria num colapso, pois seria uma decisão meramente
arbitrária, fruto da vontade do agente, o que figura como o extremo oposto do
cenário ético ideal.
Simplesmente não há
resposta ética senão a omissiva. Qualquer que seja a resposta dada a esta questão,
senão a omissão será ipso facto utilitária, e por isto deve
ser tratada como antiética.
O critério a ser usado
na situação em que um médico se encontre no papel de decidir quem vai receber
tratamento em detrimento de outro que não receberá, deve ser casuisticamente
isolado, sob um critério objetivamente neutro.
Relembrando os dizeres
do nobilíssimo professor Lênio Streck: ‘’não há hierarquia entre vidas’’.
Fazendo lembrar os dizeres do Kant: ‘’ A natureza racional existe como fim em
si mesmo’’. Qualquer que seja a resposta que se conduza à contramão desta deve ser
ignorada para fins da ação humana.
Se o mundo perdeu a
estabilidade, que não deixemos perder, também, a sanidade. A vida dos
indivíduos não está em jogo. Não está à mercê da vontade alheia. Não cabe ao
poder público determinar quem vive e quem morre.
Pensamos que, uma vez
perdida a ética, pouco nos restará, afinal, se hoje decidimos sem nenhum critério objetivo quem
deve viver e quem deve morrer, não estamos mais tão distantes de tudo aquilo
que lutamos para repelir. Não podemos deixar a crise corromper os nossos
valores enquanto cidadãos. O barco afunda somente quando a água o adentra, não
quando está ao seu redor. Assim devemos permanecer, altivos, incorruptíveis,
para não deixarmos a realidade exterior afetar o nosso interior.
Estamos juntos
enquanto sociedade. É um problema público, social, intransferível. Certo esteve
o G. K. Chesterton, ao afirmar as seguintes frases imortais: ‘’Estamos todos no
mesmo barco, em um mar tempestuoso, devemos uns aos outros uma terrível
lealdade’’.
REFERÊNCIAS
SANDEL, Michael J.
Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012.
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