O que é a filosofia?
Como nunca estudaste filosofia na
escola, talvez tenhas uma ideia vaga ou até errada sobre o assunto. Ou talvez
não tenhas ideia nenhuma. Como é natural, ficarás a saber melhor o que é a
filosofia depois de a teres estudado correctamente. Mas é conveniente dar-te já
uma ideia do que é a filosofia. Deste modo, poderás orientar-te melhor na
disciplina. É este o objectivo deste primeiro capítulo.
Provavelmente,
estás habituado a definir as ciências como a história ou física em termos de
objecto e método. Por exemplo:
- A aritmética elementar estuda as principais
propriedades da adição, da subtracção, etc. O seu método é a demonstração
matemática.
- A biologia estuda as propriedades dos organismos
vivos. O seu método é a observação e a elaboração de teorias que depois
são testadas, por vezes em laboratórios.
- A economia estuda as relações económicas. O seu
método é a análise de dados estatísticos e a tentativa de produzir modelos
explicativos das relações económicas.
Também a filosofia tem um objecto e um
método de estudo. A filosofia tem como objecto os conceitos mais básicos que
usamos nas ciências, nas artes, nas religiões e no dia-a-dia. A filosofia
estuda conceitos como os seguintes: o bem moral, a arte, o conhecimento, a
verdade, a realidade, etc. O seu método é a troca de argumentos, a discussão de
ideias.
1. A filosofia em acção: um exemplo
Imagina que no meio de uma conversa
qualquer, eu digo: “No fundo, é tudo relativo”. Talvez já tenhas ouvido esta
ideia muitas vezes. Talvez até tu próprio penses que é tudo relativo. A ideia
de que tudo é relativo surge-nos naturalmente em certas circunstâncias, quando começamos
a pensar em certos problemas. E é assim que surge a filosofia.
A
filosofia (como as ciências, as artes e as religiões) surge da nossa capacidade
natural para pensar. Não é algo que só surge quando vamos à escola ou quando
lemos livros de filósofos muito antigos. Algumas pessoas começam a fazer
perguntas de carácter filosófico por volta dos 13 ou 14 anos. Eis alguns
exemplos:
- Será que tudo é relativo?
- Será que a vida tem sentido? E se tem, qual é?
- Como se justifica a existência do estado, das
leis, e da polícia?
- Será que não faz diferença fazer sofrer os
animais?
- O que sou eu, na verdade? Será que sou apenas um
corpo? Ou tenho uma alma?
- Será que Deus existe realmente, ou será que os
ateus têm razão e os crentes estão enganados?
- E se o mundo inteiro fosse uma ilusão e nada
fosse real? Como posso ter a certeza que o mundo não é uma ilusão?
- Quando digo que uma acção é boa estou apenas a
dizer que a sociedade em que vivo aprova essa acção ou essa acção
continuaria a ser boa mesmo que a minha sociedade a desaprovasse?
Além disso, os problemas filosóficos
surgem também da nossa reflexão sobre as ciências, as religiões e as artes. Eis
alguns exemplos:
- O que é realmente a arte? E o que é a música?
- O que são realmente os números? Será que os
teoremas matemáticos são invenções dos seres humanos, ou descobertas?
- Como poderemos conciliar a existência de um Deus
bom e sumamente poderoso e sábio com tanto sofrimento no mundo?
- O que é realmente uma lei da física? E como
podemos ter a certeza que essas leis são verdadeiras?
Apesar de a filosofia ser uma reflexão
que surge naturalmente, nem toda a reflexão que surge naturalmente é
filosófica. Muitas vezes temos respostas pessoais para perguntas filosóficas como
“Qual é o sentido da vida?” ou “Será que é tudo relativo?”. Essas respostas
pessoais, contudo, ainda não são filosóficas. Podem ser o ponto de partida da
reflexão filosófica; mas não são o ponto de chegada. Isto quer dizer que podes
e deves partir das tuas convicções pessoais. Mas só começas a fazer filosofia
quando exiges a ti mesmo justificações públicas para essas convicções. E essas
justificações têm de resistir à crítica. Vamos ver o que isto quer dizer.
1.1. A filosofia é uma actividade crítica
A primeira coisa a fazer perante uma
afirmação filosófica, como “Tudo é relativo”, é tentar saber exactamente o que
estamos a dizer. “Tudo” refere-se a quê? E o que quer dizer “relativo”? No
estudo da filosofia, este trabalho de interpretação é crucial. Temos de saber
com precisão o que realmente está a ser afirmado para podermos discutir essa
afirmação. É por isso que no capítulo 2 iremos distinguir frases de
proposições, e iremos ver o que é a ambiguidade e outras armadilhas que não nos
permitem interpretar correctamente as ideias dos filósofos.
Se
me perguntares o que quer dizer “tudo” e “relativo” no contexto da minha
afirmação, posso responder assim:
“Tudo” refere-se a todas as verdades. O que eu defendo
é que todas as verdades são relativas. E “relativo” quer dizer que as verdades
mudam, ou variam; não são coisas fixas.
Agora já compreendemos melhor o que quer
dizer “Tudo é relativo”. Mas será então que, nesse sentido, é verdadeiro que
“Tudo é relativo”? Que razões temos para aceitar esta ideia? Por que razão não
será melhor aceitar a negação desta ideia? É porque por vezes queremos negar
ideias que no capítulo 2 irás aprender a não errar ao negar certos tipos de
afirmações.
Já
estás a ver que não basta interpretar e compreender o que eu queria dizer com a
afirmação “Tudo é relativo”. É preciso ter uma atitude crítica em relação ao
que foi dito. Será que tenho razão? Porquê? Ou será que estou enganado? E
porquê?
Quando
fazemos estas perguntas, estamos a exigir argumentos. Será que os argumentos em
que me baseio ao pensar que tudo é relativo são suficientemente fortes para
apoiar esta ideia? Ou são apenas confusos e desinteressantes? A argumentação é
o coração da filosofia e é por isso que a filosofia é uma atitude crítica. É
por isso também que no capítulo 2 vamos aprender a distinguir os bons dos maus
argumentos.
- Precisamos de argumentos para mostrar que os
problemas que estamos a estudar não são meras ilusões e confusões. Por
exemplo, será que o problema do sentido da vida faz sentido? Porquê?
- Precisamos de argumentos para avaliar as
respostas que os filósofos e nós próprios damos aos problemas da
filosofia. Por exemplo, será que a resposta que Platão dá ao problema da
imortalidade da alma é boa?
- E precisamos de saber avaliar argumentos porque
os filósofos passam grande parte do seu tempo a apresentar argumentos a
favor das suas ideias e contra as ideias que eles acham que estão erradas.
Por exemplo, será que o argumento de Santo Anselmo a favor da existência
de Deus é bom?
Porque a filosofia é uma actividade crítica,
avalia cuidadosamente os nossos preconceitos mais básicos. Isto faz da
filosofia uma actividade um pouco melindrosa. Em geral, temos tendência para
nos agarrarmos acriticamente aos nossos preconceitos, porque eles condicionam a
maneira como vemos o mundo e como vivemos a vida. A filosofia, pelo contrário,
exige abertura de espírito e disponibilidade para pensar livremente.
O
facto de a filosofia ser uma actividade crítica coloca-te numa posição muito
diferente, como estudante, daquela que te é exigida nas outras disciplinas. Em
filosofia, tens a liberdade de defender as tuas ideias. Tanto podes defender
que Deus existe como que não existe; tanto podes defender que o aborto deve ser
permitido como que não o deve ser. Até podes defender que a filosofia é uma
ilusão e um absurdo.
Nesta
disciplina, não te pedimos que te limites a repetir o que diz o teu professor.
O que pedimos é que aprendas a pensar. E pensar implica apresentar argumentos.
Tens a liberdade de defender o que quiseres, mas tens de adoptar uma atitude
crítica. Isto significa o seguinte:
- Tens de sustentar o que defendes com bons
argumentos.
- Tens de aceitar discutir os teus argumentos.
O objectivo é que sejas tu a pensar
filosoficamente; mas para poderes pensar filosoficamente terás de saber usar um
conjunto de instrumentos que te permitirão pensar de forma mais organizada e
sistemática. E terás de compreender correctamente as ideias que iremos estudar
— mesmo que aches que estão erradas. Se conseguires dizer de forma clara,
articulada e fundamentada em bons argumentos por que razão estão erradas, já
estarás a fazer filosofia.
Ser
crítico não é “dizer mal”. Ser crítico é olhar com imparcialidade para todas as
ideias — quer sejam nossas, dos nossos colegas ou de filósofos famosos. E
olhamos para elas com imparcialidade para podermos avaliar se são verdadeiras
ou não.
Ser
crítico não é ser extravagante. Uma pessoa pode ser perfeitamente crítica e
seguir as convicções da maioria. Ser crítico não é dizer “Não” só para marcar a
diferença. Ser crítico é dizer “Sim”, “Não”, ou até “Talvez”, mas com base em
bons argumentos.
Voltemos
agora à minha ideia de que tudo é relativo. Que argumentos tenho a seu favor?
Se me fizeres esta pergunta, posso responder assim:
Ao longo dos séculos, verificamos que o que pensamos
ser verdade vai mudando. Primeiro, pensávamos que a Terra estava no centro do
universo; depois, que não estava. Primeiro, pensávamos que o cristianismo era a
única religião verdadeira, e que o Deus cristão tinha de ser imposto pela
força. Depois, verificámos que há várias religiões e que todas têm o direito a
existir. Em suma, o que hoje pensamos que é verdade, amanhã pensamos que é
falso, e é por isso que eu digo eu é tudo relativo.
Esta resposta é uma tentativa de
justificação da ideia de que tudo é relativo. Mas será uma boa justificação? O
teu trabalho em filosofia é discutir os meus argumentos. Poderias começar por
fazer notar que esta justificação parece misturar duas coisas diferentes: o
progresso científico e a tolerância religiosa. E por isso talvez fosse
vantajoso ver cada uma dessas coisas em separado.
Poderias
começar pela primeira, perguntando se é mesmo verdade que o progresso
científico mostra que as verdades são todas relativas. Pelo contrário, poderias
dizer, se tudo fosse relativo, não haveria realmente progresso científico;
haveria apenas uma mudança de teorias científicas. As teorias antigas seriam
tão boas como as modernas. Mas se isto fosse verdade, que razões teríamos nós
para mudar de teorias?
Eu
poderia responder que somos forçados a mudar de teorias por vários motivos. Por
exemplo, quando um certo grupo de cientistas se quer destacar, pode apresentar
uma nova teoria revolucionária e fazer tudo para ver a sua teoria ser aceite.
Mas isto nada nos diz sobre o valor intrínseco da nova teoria. A nova teoria é
tão boa como a velha; são apenas diferentes.
Já
vês que a filosofia é uma actividade dialogante: consiste em trocar e discutir
ideias. A diferença entre uma discussão filosófica e uma gritaria, por exemplo,
é esta: em filosofia discutimos para chegar à verdade das coisas,
independentemente de saber quem “ganha” a discussão; numa gritaria discute-se
para “ganhar” a discussão, independentemente de saber de que lado está a
verdade.
1.2. O pensamento filosófico é consequente
Ao reflectires sobre a minha resposta às
tuas objecções poderias tentar saber até que ponto o que a minha teoria implica
é aceitável. E poderias perguntar-me: “Será que a ideia de que tudo é relativo
é também relativa?” Como é óbvio, eu teria de dizer que sim, pois acabei de
defender que todas as ideias são relativas. Mas então a minha ideia não é
realmente verdadeira; só é relativamente verdadeira. É verdadeira para umas
pessoas e falsa para outras. Mas nesse caso caio em contradição, pois tenho de
admitir que a minha ideia é falsa, de certos pontos de vista. Nomeadamente, do
teu. E tenho de admitir que tu tens tanta razão como eu.
Imagina
agora que quando fazes notar que nesse caso a minha própria opinião não pode
ser verdadeira, eu digo que não. Há algo de errado comigo.
O
que está errado comigo é que não estou a ser consequente. Ser consequente é
aceitar as consequências das nossas ideias. Não estou a ser consequente porque
não quero aceitar uma consequência da minha ideia, só porque é desagradável
para o que estou a defender. Isto é pensamento irresponsável.
O
pensamento filosófico é consequente. Isto significa que apesar de seres livre
para defenderes as posições que quiseres, terás de ser responsável pelas
consequências do que defendes. Se defenderes que toda a vida é sagrada e que
isso quer dizer que nunca devemos matar um ser vivo, não podes ao mesmo tempo
defender que se pode comer salada de alface. Se defendes que tudo é relativo e
que não há verdades, não podes defender que a tua convicção é verdadeira.
Se
quiseres pensar filosoficamente terás de ser responsável pelas consequências
das tuas ideias; e se as tuas ideias tiverem consequências falsas, improváveis,
absurdas ou de outra forma difíceis de aceitar, terás muito provavelmente de
mudar de ideias.
A
nossa pequena discussão sobre o relativismo já permitiu ver que há três
elementos na filosofia:
- Problemas
- Teorias
- Argumentos
O problema, no nosso caso, era saber
qual é a natureza da verdade. Eu estava a defender a teoria ou a posição de que
a verdade é relativa. E apresentei alguns argumentos a seu favor. Depois tu
respondeste a esses argumentos, o que me levou a apresentar outros argumentos,
aos quais tu respondeste — e assim por diante. Os filósofos, ao longo dos
séculos, têm proposto teorias que tentam resolver os problemas filosóficos.
Essas teorias apoiam-se em argumentos.
O
teu papel perante os problemas, as teorias e os argumentos da filosofia é
duplo:
- Saber formulá-los claramente.
- Saber discuti-los com rigor.
1.3. A filosofia é um estudo a priori
Quando começamos a discutir a ideia de
que tudo é relativo, percebemos que ela tem uma característica especial: nada
há na experiência empírica que nos permite resolver o problema. Só pelo
pensamento podemos tentar resolver o problema. É porque isto acontece com os
problemas filosóficos que dizemos que a filosofia não é um estudo empírico; é
um estudo a priori. A melhor maneira de perceber o que isto
quer dizer é com um exemplo.
Imagina
que queres saber se há vida em Marte. Não é possível resolver este problema
unicamente através do pensamento. É preciso dispor dos dados enviados pelas
sondas que foram para Marte, fazer observações e medições, etc. Todas essas
coisas fazem parte da experiência empírica: são maneiras de recolher informação
acerca do mundo.
Mas
os problemas da filosofia não se resolvem olhando para o mundo para recolher
informação. Não podemos decidir se é tudo relativo ou se a vida faz sentido
recolhendo informação do mundo. É por isso que dizemos que a filosofia é um
estudo a priori. Queremos dizer que a filosofia se faz
unicamente com o pensamento.
Todavia,
isto não significa que não podemos usar informação sobre o mundo. Na verdade,
sempre que isso é relevante, temos de usar informação sobre o mundo. O estudo
filosófico é a priori, mas temos de ter informações sobre tudo
o que for importante para a solução dos problemas que estamos a tratar. Muitas
vezes essa informação é fornecida pelas ciências, pelas artes ou pelas
religiões. Não podemos discutir filosofia da religião sem nada saber de
religião. Nem podemos discutir filosofia da arte sem nada saber de arte.
Quando
chegamos a este ponto podes pensar que o relativismo, como todas as outras
ideias filosóficas, não passa de uma confusão e que nada há para discutir —
precisamente porque é algo que não podemos decidir recorrendo à experiência.
Todavia, é curioso que esta é também uma posição filosófica — e uma posição que
não se apoia na experiência. Como poderemos decidir se é mesmo verdade que o
relativismo e a filosofia são uma perda de tempo porque nunca se pode chegar a
lado nenhum? Como podemos saber que não podemos chegar a lado nenhum?
Quando
começamos a pensar nas razões que nos levam a pensar que em filosofia nunca se
chega a lado nenhum começamos a fazer filosofia. É por isso que a filosofia é
inevitável. É inevitável porque não é mais do que a procura sistemática de
justificações sensatas para as nossas ideias mais básicas — mesmo as nossas
ideias acerca da própria filosofia. É neste sentido que a filosofia se opõe ao
dogmatismo: nenhuma ideia tem o direito de suplantar quaisquer outras ideias,
enquanto não mostrar que é realmente melhor do que as outras.
1.4. A filosofia é diferente da história
Como é óbvio, muitos filósofos
defenderam a ideia de que tudo é relativo. O primeiro a defendê-lo parece ter
sido Protágoras de Abdera (cerca de 490–420 a.C.), na Grécia antiga. Muitos
outros filósofos e pensadores defenderam diferentes versões desta ideia,
incluindo no século XX e hoje em dia.
Quando
discutimos uma ideia filosófica verificamos muitas vezes que essa ideia tem uma
história; houve outras pessoas que a defenderam ou atacaram. É por isso
importante saber o que os grandes filósofos pensaram. Nada há de extraordinário
nisto. Se estás preocupado em saber se o relativismo é ou não aceitável, é uma
boa ideia tentar saber o que as outras pessoas pensaram sobre isso. Afinal,
pode ser que o que elas pensaram te ajude a pensar melhor — quer concordes,
quer discordes delas.
Todavia,
é preciso distinguir claramente o estudo da filosofia do estudo da história da
filosofia. Em história da filosofia estudamos o que os filósofos dizem só para
saber o que eles dizem. Na filosofia estudamos o que os filósofos dizem para
discutir as suas ideias. Mas é claro que só podemos discutir as suas ideias se
as soubermos formular bem. Estudar filosofia é como estudar música e estudar
história da filosofia é como estudar história da música. Num caso, aprendemos a
tocar um instrumento ou a compor peças musicais; no outro, aprendemos apenas a
apreciar a música do passado. Num caso, aprendemos a discutir ideias e a propor
ideias e a defendê-las; no outro, aprendemos apenas a formular as ideias dos
outros.
2. Para que serve a filosofia?
A filosofia responde a problemas que
surgem da nossa capacidade natural para pensar. O mesmo acontece com a ciência,
a religião e a arte. Portanto, em grande medida, a filosofia serve para o mesmo
que serve a ciência, a religião e a arte: serve para compreender melhor o
mundo, os outros e nós mesmos.
Mas
será que só serve para isso? Afinal, nas artes, nas religiões e nas ciências,
fazem-se coisas úteis — não nos limitamos a compreender melhor o mundo. Por
exemplo:
- A ciência alarga a nossa compreensão do universo;
mas também permite curar a tuberculose.
- A religião alarga a nossa compreensão do nosso
lugar no universo; mas também oferece conforto e orientação espiritual aos
crentes.
- A arte, como a literatura, por exemplo, alarga a
nossa compreensão da condição humana; mas também produz obras de grande
valor artístico, que nos inspiram e maravilham.
Também a filosofia não se limita a
alargar a nossa compreensão. A compreensão que a filosofia nos oferece do
mundo, de nós e dos outros ajuda-nos a mudar a nossa vida. Vejamos dois
exemplos.
Em
1869 um importante filósofo inglês chamado John Stuart Mill publicou um livro
intitulado A Submissão das Mulheres. Neste livro, Mill
defendia, com argumentos filosóficos, a igualdade política e social das
mulheres. Hoje, parece-nos óbvio que as mulheres não devem ser discriminadas em
nenhum aspecto da vida social. A filosofia pode mudar as nossas vidas porque
pode mudar as nossas convicções.
Em
1975, Peter Singer, um importante filósofo contemporâneo, publicou um livro com
o título Libertação Animal. Nesse livro, Singer procura
mostrar que o modo como tratamos os animais na indústria pecuária e na ciência
é moralmente indefensável; os animais não podem ser tratados como se fossem
meros objectos. Em resultado do seu estudo, os movimentos de libertação animal
ganharam legitimidade. Hoje, muitas das maiores empresas deixaram de testar os
seus produtos em animais. A filosofia pode mudar as nossas vidas porque pode
mudar as nossas convicções.
Os
seres humanos entregam-se a diferentes actividades. A religião, a ciência, a
arte e a filosofia têm cada uma a sua utilidade.
- A religião é útil porque fornece orientação e
conforto espiritual aos seus crentes. A filosofia fornece orientação a
qualquer pessoa, independentemente de ser ou não crente. E mostra que
muitas das respostas que acriticamente estaríamos dispostos a aceitar são
insatisfatórias.
- A ciência é útil porque nos ensina a curar a
tuberculose, por exemplo. A filosofia ensina-nos a enfrentar os problemas
morais levantados pela ciência, como a eutanásia ou o aborto.
- As artes são úteis porque produzem obras que nos
inspiram e maravilham. A filosofia produz ideias e argumentos que nos
inspiram e maravilham, e põe a descoberto problemas que nos convidam a dar
o nosso melhor para tentar resolvê-los. E isso faz de nós seres humanos
melhores, seres humanos mais completos.
Em suma: as razões pelas quais a
filosofia serve para alguma coisa são a razões pelas quais as artes, as
ciências e as religiões servem para alguma coisa.
Todavia,
é verdadeiro que muitos dos problemas, teorias e argumentos da filosofia não
têm qualquer utilidade prática. Mas também a maior parte do que constitui as
religiões, as artes e as ciências não tem qualquer utilidade prática. Mas,
mesmo assim, essas coisas podem ter valor.
As
coisas sem utilidade prática podem ter valor porque o conhecimento é algo suficientemente
importante para ter um valor próprio. Nada ganhamos em conhecer a anatomia dos
dinossáurios que se extinguiram há 65 milhões de anos, nada ganhamos em saber
como aconteceu o Big Bang. Mas desconhecer todas essas coisas é viver uma vida
mais pobre e mais provinciana. É por isso que há pessoas que gostam de alargar
o conhecimento e a compreensão, independentemente de isso servir ou não para
alguma coisa. E isto é algo que não acontece apenas aos filósofos; acontece aos
físicos, aos biólogos, aos músicos, aos escritores, etc.
Em
suma, a filosofia tem valor, mesmo que na sua maior parte não tenha qualquer
utilidade prática, porque o conhecimento é um valor em si.
Por
outro lado, nunca podemos saber quando uma ideia aparentemente inútil pode vir
a ser útil. A lógica, por exemplo, parecia uma área do conhecimento
completamente inútil. Mas hoje temos computadores graças aos estudos levados a
cabo pelos especialistas em lógica. Logo, mesmo que só as coisas úteis tivessem
valor, nunca poderíamos saber à partida quais das nossas ideias se viriam a
revelar úteis.
Acresce
que a filosofia consiste, em grande parte, em discutir ideias com argumentos
rigorosos. Isto dá-lhe uma utilidade muito importante: quem for capaz de
discutir filosofia claramente, será capaz de discutir claramente qualquer
assunto (desde que disponha da informação relevante). A filosofia é útil para a
vida pública de um país porque nos ensina a pensar melhor.
A
filosofia exercita as nossas capacidades argumentativas. Ficamos com uma
capacidade acrescida para avaliar e discutir ideias, argumentos e problemas. Do
mesmo modo que quem estuda pintura fica com um olhar mais sensível às cores e
formas, quem estuda filosofia fica mais sensível ao modo como fundamentamos as
nossas convicções e decisões.
Quem
sabe argumentar bem toma melhores decisões, porque as decisões que tomamos são
baseadas em argumentos. E esses argumentos podem ser melhores ou piores. Todos
queremos melhores decisões (e portanto melhores argumentos) quando essas
decisões afectam a nossa vida. A filosofia pode ajudar-nos a tomar fazer isso.
Desidério Murcho
Questões de revisão
- O que é um preconceito? Dá alguns exemplos,
explicando por que razão são preconceitos.
- Para que fins precisamos de argumentos na
filosofia?
- O que precisas de aceitar para poderes ter uma
atitude crítica?
- Qual é a diferença entre justificar as nossas
respostas pessoais e ter uma atitude crítica?
- O que significa dizer que o pensamento filosófico
é consequente? Dá um exemplo.
- Dá um exemplo de uma convicção inconsequente.
- O que significa dizer que a filosofia é um
estudo a priori?
- “Uma vez que a filosofia é a priori, não
precisamos de informação empírica para fazer filosofia”. Concordas?
Porquê?
- Dá dois exemplos de problemas a priori e
dois exemplos de problemas empíricos.
- Por que razão a filosofia se opõe ao dogmatismo?
- “A filosofia é inevitável”. Concordas? Porquê?
- Será que a filosofia se limita a alargar a nossa
compreensão do mundo?
- Em que aspectos a filosofia pode ser útil?
- “Para uma actividade ter valor não precisa de ser útil”. Concordas? Porquê?
Problemas
- “Não há qualquer interesse em estudar filosofia,
porque cada qual tem a sua filosofia pessoal”. Concordas? Porquê?
- “A atitude crítica é apenas dizer mal dos
outros”. Concordas? Porquê?
- “Desde que uma pessoa seja extravagante, é
crítica”. Concordas? Porquê?
- “O que uma pessoa diz com o cérebro, nega na sua
vida concreta”. Concordas? Porquê?
- Qual é a relação entre os problemas, as teorias e
os argumentos da filosofia?
- “Dado que tanto a filosofia como a matemática
são a priori, não há diferença entre as duas”. Concordas?
Porquê?
- “A filosofia é inútil porque é tudo subjectivo e
nunca se chega a lado nenhum”. Concordas? Porquê?
- “A filosofia é inútil porque é tudo subjectivo e
nunca se chega a lado nenhum”. Achas que esta afirmação é objectiva ou
subjectiva? Porquê?
- “A filosofia não serve para nada”. Concordas?
Porquê?
- “Nenhuma filosofia do mundo pode mudar a nossa
vida”. Concordas? Porquê?
- “A filosofia responde à nossa curiosidade natural
e não precisa de ser útil”. Concordas? Porquê?
- “Mesmo que só as coisas úteis tivessem valor,
teríamos de fazer as coisas aparentemente inúteis, porque nunca podemos
saber quando podem vir a ser úteis”. Concordas? Porquê?
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