David Hume: textos
De David Hume...
"Embora o nosso
pensamento pareça possuir uma liberdade irrestrita, veremos (…) que se encontra
realmente confinado a limites muito estreitos e que todo este poder criador da
mente nada mais vem a ser do que a faculdade de compor, transpor, aumentar ou
diminuir os materiais que nos são fornecidos pelos sentidos e pela experiência.
Quando pensamos numa montanha de oiro, juntamos unicamente duas ideias
consistentes, oiro e montanha, com as quais já estávamos familiarizados. (…) Em
suma, todos os materiais do pensamento são derivados da sensibilidade (sentiment) externa ou interna: a
mistura e composição destes pertencem apenas à mente e à vontade. Ora, para me
expressar em linguagem filosófica, todas as nossas ideias, ou percepções mais
fracas, são cópias das nossas impressões ou [percepções] mais intensas.
Os dois argumentos seguintes serão, espero,
suficientes para provar isto. Primeiro, ao analisarmos os nossos
pensamentos ou ideias, por muito compostas e sublimes que sejam, sempre
descobrimos que elas se resolvem em ideias tão simples como se fossem copiadas
de uma sensação ou sentimento precedente. Mesmo as ideias que, à primeira
vista, parecem afastadas desta origem, descobre-se, após um escrutínio mais
minucioso, serem dela derivadas. A ideia de Deus. Enquanto significa um Ser
infinitamente inteligente, sábio e bom, promana da reflexão sobre as operações
da nossa própria mente, e eleva sem limite essas qualidades da bondade e
sabedoria. Podemos prosseguir esta inquirição até ao ponto que nos agradar, onde
sempre descobriremos que toda a ideia que examinamos é copiada de uma impressão
similar. (…)
Segundo, se acontecer que um homem, em virtude de um defeito dos órgãos,
não é susceptível de qualquer espécie de sensação, vemos sempre que ele é
igualmente pouco susceptível das ideias correspondentes. Um homem cego não pode
formar nenhuma noção das cores, e um surdo, dos sons".
David
Hume, Investigação sobre o entendimento humano,
tr. Artur Morão,
Ed. 70, pp. 24, 25
"Todos admitirão prontamente que existe uma diferença considerável entre as percepções da mente, quando um homem sente a dor de um calor excessivo ou o prazer de um ardor moderado, e quando ele depois traz à memória a sua sensação ou a antecipa mediante a sua imaginação. Estas faculdades podem mimar ou copiar as percepções dos sentidos, mas nunca podem inteiramente atingir a força e a vivacidade do sentimento original. O máximo que delas afirmamos, mesmo quando actuam com o maior vigor, é que representam o objecto de uma maneira tão viva que poderíamos quase dizer que o sentimos ou vemos. Mas a não ser que a mente esteja desarranjada pela doença ou pela loucura, elas nunca podem chegar a tal nível de vivacidade que tornem totalmente indistinguíveis as percepções. Todas as cores da poesia, por esplêndidas que sejam, jamais podem pintar os objectos naturais de uma maneira tal que levem a descrição a ser tomada por uma paisagem real. O mais vivo pensamento é ainda inferior à mais baça sensação. (...)
“Existe uma espécie de
ceticismo, anterior a qualquer estudo ou filosofia, muito recomendado por
Descartes e outros como sendo a soberana salvaguarda contra os erros e os
juízos precipitados. Este cepticismo recomenda uma dúvida universal, não apenas
quanto aos nossos princípios e opiniões anteriores, mas também quanto às nossas
próprias faculdades, de cuja veracidade, diz ele, devemos nos assegurar por
meio de uma cadeia argumentativa deduzida de algum princípio original que seja
totalmente impossível tornar-se enganador ou falacioso. Mas nem existe qualquer
princípio original como esse, dotado de qualquer prerrogativa sobre outros que
são evidentes e convincentes; nem, se existisse, poderíamos avançar um passo
além dele, a não ser pelo uso daquelas mesmas faculdades das quais se supõe que
já suspeitamos. A dúvida cartesiana, portanto, se jamais fosse capaz de ser
alcançada por qualquer criatura humana (o que claramente não é), seria
totalmente incurável, e nenhum raciocínio poderia alguma vez nos levar a um
estado de segurança e convicção acerca de qualquer assunto.
Deve-se todavia confessar
que o ceticismo, quando é mais moderado, pode ser entendido num sentido muito
razoável, e constitui uma preparação para o estudo da filosofia, preservando
uma adequada imparcialidade nos nossos juízos e libertando-nos o espírito de
todos os preconceitos de que possamos ter sido impregnados pela educação ou por
opiniões precipitadas.”
David Hume, Tratados I: Investigação sobre o
Entendimento Humano, tradução de João Paulo Monteiro, Lisboa, INCM,
2002, pp. 161-162.
"Quando lanço um
pedaço de madeira seca numa lareira, o meu espírito é imediatamente levado a
conceber que ele vai aumentar as chamas, não que as vai extinguir. Esta
transição de pensamento da causa para o efeito não procede da razão […]. E como
parte inicialmente de um objeto presente aos sentidos, ela torna a ideia ou
conceção da chama mais forte e viva do que o faria qualquer devaneio solto e
flutuante da imaginação."
“(...) por muito
que se pense no arrefecimento da água, nunca deduziremos a sua congelação e
aquele que nunca tiver visto gelo, achará absurdo que a água ao arrefecer se
torne dura e sólida”.
David Hume, «Investigação sobre o
Entendimento Humano», in Tratados Filosóficos I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 2002.
No entanto, para nos convencermos de que, sem exceção, todas as leis da natureza e todas as operações dos corpos são conhecidas apenas pela experiência, as reflexões que seguem são sem dúvida suficientes. Se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fôssemos solicitados a pronunciar-nos sobre o efeito que resultará dele, sem consultar observações anteriores; de que maneira, eu vos indago, deve o espírito proceder nesta operação? Terá de inventar ou imaginar algum evento que considera como efeito do objeto; e é claro que esta invenção deve ser inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela. O movimento na segunda bola de bilhar é um evento bem distinto do movimento na primeira, já que não há na primeira o menor indício da outra. Uma pedra ou um pedaço de metal levantados no ar e deixados sem nenhum suporte caem imediatamente. Mas, se consideramos o assunto a priori, descobrimos algo nesta situação que nos pode dar origem à idéia de um movimento descendente, em vez de ascendente, ou de qualquer outro movimento na pedra ou no metal?
Do mesmo modo que a imaginação inicial ou invenção de um efeito particular é, em todas as operações naturais, arbitrária se não consultamos a experiência, devemos igualmente supor como tal o laço ou a conexão entre a causa e o efeito, que une um ao outro e faz com que seja impossível que qualquer outro efeito possa resultar da operação desta causa. Quando vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direção de outra, mesmo se suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugerido como o resultado de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam igualmente resultar desta causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda em qualquer linha ou direção? Todas estas suposições são compatíveis e concebíveis. Por que, então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível que o resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento para esta preferência.
Em uma palavra: todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori. E mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a conjunção do efeito com sua causa deve parecer igualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razão devem parecer igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação e da experiência.
David Hume, Investigação acerca do entendimento Humano
Portanto, se quisermos satisfazer-nos a respeito da natureza desta evidência que nos dá segurança acerca dos factos, deveremos investigar como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito.
Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite excepção, que o conhecimento desta relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori, porém nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos particulares estão constantemente conjugados entre si. Apresente-se um objecto a um homem dotado, por natureza, de razão e habilidades tão fortes quanto possível; se o objecto lhe é completamente novo, não será capaz, pelo exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir nenhuma de suas causas ou dos seus efeitos. Mesmo supondo que as faculdades racionais de Adão fossem inteiramente perfeitas desde o primeiro momento, ele não poderia ter inferido da fluidez e da transparência da água que ela o afogaria, ou da luz e do calor do fogo, que este o consumiria. Nenhum objecto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgirão dele; nem pode a nossa razão, sem o auxílio da experiência, jamais tirar uma inferência acerca da existência real de um facto.
(...) Apresentai dois pedaços de mármore polido a um homem sem nenhum conhecimento de filosofia natural; ele jamais descobrirá que eles aderirão de tal maneira que se requer grande força para separá-los em linha recta, embora ofereçam menor resistência à pressão lateral. Considera-se também indiscutível que o conhecimento dos eventos que têm pouca analogia com o curso corrente da natureza se obtém por meio da experiência; assim, ninguém imagina que se teria descoberto a explosão da pólvora ou a atração da pedra-ímã por argumentos a priori. Da mesma maneira, quando se supõe que um efeito depende de um mecanismo complicado ou de elementos de estrutura desconhecida, não temos dificuldade em atribuir todo o nosso conhecimento à experiência. Quem será capaz de afirmar que pode dar a razão última por que o leite e o pão são alimentos apropriados ao homem e não a um leão ou a um tigre?
David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Sessão IV
Acerca de David Hume
Hume utiliza o termo ‘perceção’ para
referir quaisquer conteúdos da mente (…). As perceções ocorrem quando o
indivíduo observa, sente, recorda, sente, recorda, imagina, e assim por diante,
sendo que o uso atual da palavra cobre um leque muito menos vasto de atividades
mentais. Para Hume, existem dois tipos básicos de perceções: impressões e
ideias.
As impressões constituem as
experiências obtidas quando o indivíduo observa, sente, ama, odeia, deseja ou
tem vontade de algo. Hume descreve este tipo de perceções como sendo mais
‘vívido’ do que as ideias, termo com que o filósofo parece querer afirmar que
as impressões são mais claras e mais pormenorizadas do que as ideias. As
ideias, por sua vez, são cópias das impressões. Trata-se dos objetos do
pensamento humano quando os indivíduos recordam a sua experiência ou exercitam
a sua imaginação. [Como se verá, no primeiro caso são ideias simples e no
segundo são ideias complexas.]
Assim sendo, neste preciso momento,
por exemplo, tenho uma impressão da minha caneta a movimentar-se pela página e
de ouvir alguém a virar as páginas de um livro, atrás de mim, na biblioteca.
Tenho, ainda, uma impressão da textura do papel a tocar na minha mão. Estas
experiências sensoriais são vívidas (…). Mais tarde, enquanto estiver a
escrever estas linhas no meu computador, lembrar-me-ei, sem dúvida, deste
momento e recordarei as minhas impressões. Nessa altura, estarei a ter ideias e
não impressões, ideias que não serão marcadas pela mesma vividez (ou
vivacidade) que caracteriza as impressões que estou a sentir neste momento e
das quais as ideias serão cópias.
(…) Segundo Hume, não existem ideias
inatas, todas as ideias humanas são cópias de impressões. Por outras palavras,
é impossível aos seres humanos ter uma ideia de algo que não tenham primeiro
experimentado enquanto impressão.
Como lidaria, então, Hume com a
capacidade de um indivíduo imaginar uma montanha dourada [ou uma sereia] embora
nunca tenha visto uma e, logo, nunca tenha tido a impressão de uma? A resposta
baseia-se numa distinção entre ideias simples e ideias complexas. As ideias
simples derivam [diretamente] das impressões. (…) As ideias
complexas são combinações de ideias simples. Deste modo, a ideia de uma
montanha dourada nada mais é do que uma ideia complexa composta pelas ideias
mais simples de ‘montanha’ e de ‘dourado’. E estas ideias simples derivam, em
última análise, da experiência tida pelo indivíduo de montanhas e de objetos
dourados.”
Nigel Warburton, Grandes livros de filosofia
"(…) a minha experiência
de regularidades no passado é tomada como justificação de crenças acerca de
coisas de que não tenho experiência. É importante notar que este tipo de
raciocínio é apresentado muitas vezes como relativo apenas ao nosso
conhecimento do futuro, o que não é correto. Os argumentos indutivos dizem
respeito ao futuro, ao presente e ao passado (…)
É importante que
estejamos cientes da natureza radical da tese de Hume. Ele argumenta que todo o
raciocínio indutivo é inválido: não temos razões a priori ou
empíricas para aceitar crenças baseadas em inferências indutivas.
Não temos justificação para acreditar que o Sol vai nascer amanhã. O ponto
crucial é este: se eu afirmar que o Sol vai nascer amanhã e o meu amigo afirmar
que ele se vai transformar num ovo estrelado gigante, a minha crença não é, de
acordo com Hume, mais justificada do que a do meu amigo.
Claro que eu não tenho
amigo algum que acredite nisso, e Hume tem uma explicação para esse facto.
Devido ao “costume” ou ao “hábito”, todos pensamos em termos indutivos.
Contudo, este tipo de pensamentos não é justificado; resulta apenas de certas
disposições psicológicas que criaturas como nós possuem: “não é, portanto, a
razão que é o guia da vida, mas sim o costume” (…). No seu Tratado de 1739,
Hume sustenta esta tese fornecendo uma explicação causal rudimentar para o
facto de termos as crenças que temos (…). Os animais também têm essas
disposições: são guiados pelo costume e esperam que as regularidades que
experienciaram continuem. Contudo, como observa Russell (1912), a galinha a que
o agricultor dá de comer todos os dias pode ser degolada amanhã. A nossa
posição é análoga à da galinha: esperamos que o Sol nasça todas as manhãs tal
como a galinha espera o seu alimento, mas nenhum de nós tem qualquer justificação
para as nossas crenças ou comportamento.
Uma resposta comum a esta
posição céptica é que sabemos que o Sol irá nascer amanhã porque temos uma
explicação científica para que tal aconteça, descrevendo o movimento da Terra
em relação ao Sol. Aqui, no entanto, podemos ver todo o alcance do argumento de
Hume. Chegámos à nossa narrativa através de sucessivas observações
astronómicas. A nossa explicação do nascer do Sol é, portanto, indutiva, pelo
que está igualmente sujeita ao argumento de Hume. De acordo com Hume, o
cientista não pode justificar a sua crença de que a gravidade continuará a
manter os corpos celestes nas órbitas que até agora temos observado.»
Dan O´ Brien, Introdução à teoria do conhecimento,
Gradiva Editora, Lisboa: 2013, págs. 227-28.
“Todos os nossos
raciocínios relativos a questões de facto, defende Hume, se baseiam na relação
de causa e efeito. Mas como chegamos ao nosso conhecimento das relações
causais? (…) Ao olhar apenas para a pólvora, nunca poderíamos descobrir que é
explosiva; é preciso experiência para saber que o fogo queima as coisas. Mesmo
as mais simples regularidades da natureza não podem ser estabelecidas a
priori porque uma causa e um efeito são dois acontecimentos totalmente
diferentes e um não pode ser inferido do outro. Vemos uma bola de bilhar a
mover-se na direcção de outra e esperamos que transmita movimento à outra. Mas
porquê?
A resposta, obviamente, é
que descobrirmos as regularidades da natureza através da experiência. Mas Hume
leva a sua indagação mais além. Mesmo depois de termos a experiência das
operações de causa e de efeito, pergunta, que bases existem na razão para
inferir conclusões dessa experiência? A experiência apenas nos dá informação
sobre ocorrências passadas: porque haveria de ser alargada a objectos futuros,
que, tanto como sabemos, só se assemelham aos objectos passados na aparência? O
pão alimentou-me no passado, mas que razões tenho para acreditar que o irá
fazer no futuro?"
Anthony Kenny, Ascenção da
Filosofia moderna, Edições Gradiva, Lisboa 2011, págs. 170-171.
Qual a diferença entre impressões e ideias? Para Hume essa diferença está na sua respectiva «força» ou «vividez». A impressão é recebida através dos sentidos e é vívida e forte no momento da sua recepção. A ideia é o que fica depois, quando a vividez e a força diminuem. No entanto, Hume descreve também as ideias como «cópias», «representações» e «imagens» de impressões: são as «imagens enfraquecidas [das impressões] no pensamento e no raciocínio».
Roger Scruton, Uma Breve História da Filosofia Moderna. De Descartes a Wittgenstein. Tradução Carlos Marques.
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