terça-feira, 12 de dezembro de 2023

David Hume: textos acerca de....



David Hume: 

textos acerca de .....


 "Não há razão alguma para se estudar filosofia — afirma Hume — salvo a de que, para certos temperamentos, é esta uma maneira agradável de passar o tempo. «Em todos os incidentes da vida, deveríamos, não obstante, conservar o nosso ceticismo. Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca, isto é só porque nos dá muito trabalho pensar de outra maneira. Mais ainda: se somos filósofos, deveríamos sê-lo baseados unicamente nestes princípios céticos, e pela inclinação que sentimos no sentido de dedicar-nos a isso.» Se ele abandonasse a especulação, «sinto que eu sairia perdendo quanto ao prazer; e nisto está a origem de minha filosofia». 

A filosofia de Hume, verdadeira ou falsa, é a falência da racionalidade do século XVIII. Como Locke, começa com a intenção de ser sensorial e empírico, sem confiar em nada, mas procurando toda o conhecimento que lhe fosse possível obter por experiência e observação. Mas, possuidor de um intelecto melhor que o de Locke, um poder mais agudo de análise e uma menor capacidade em aceitar inconsistências cómodas, chega à desastrosa conclusão de que experiência e a observação nada ensinam. A crença racional não existe: «Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca, isto é só porque nos custa muito trabalho pensar de outra maneira.» Não podemos deixar de crer, mas nenhuma crença pode basear-se na razão. Tampouco uma linha de conduta pode ser mais razoável que outra, já que todas elas são, igualmente, baseadas em convicções irracionais. (…)

Era inevitável que tal refutação da racionalidade fosse seguida de uma grande erupção de fé irracional. A disputa entre Hume e Rousseau é simbólica: Rousseau era louco, mas influente; Hume era são, mas não tinha adeptos. Os empiristas britânicos rejeitaram-lhe o ceticismo sem refutá-lo; Rousseau e seus adeptos concordavam com Hume em que nenhuma crença se baseia na razão, mas consideravam o coração superior à razão permitindo que este os levasse a convicções muito diferentes das que Hume conservava na prática. Os filósofos alemães, de Kant a Hegel, não assimilaram os argumentos de Hume. Digo-o deliberadamente, apesar da crença que muitos filósofos partilham com Kant, de que a sua Crítica da Razão Pura era uma resposta a Hume. Na verdade, estes filósofos — pelo menos Kant e Hegel — representam um tipo de racionalismo “pré-humeano” e podem ser refutados com argumentos “humeanos”. Os filósofos que não podem ser refutados desta maneira são aqueles que não pretendem ser racionais, tais como Rousseau, Schopenhauer e Nietzsche. O desenvolvimento do irracional durante o século XIX e o que passou para o século XX é uma consequência natural da destruição, por Hume, do empirismo.

 É importante, por conseguinte, descobrir se há alguma resposta a Hume dentro de uma filosofia que é total ou principalmente empírica. Se não, não há diferença intelectual alguma entre a sanidade e a loucura. O lunático que se julga um ovo escaldado será condenado unicamente por estar em minoria, ou antes — já que não devemos ter como certa a democracia — por o governo não concordar com ele. Este é um ponto de vista desesperado, e devemos esperar que haja algum meio de nos  livrarmos dele".

 

Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental 
(1946), Lx, Relógio D'Água (2017), p.550,551
(O sublinhado é nosso)



"Se procurarmos a origem da ideia de causa, diz Hume, descobriremos que ela não pode ser uma qualidade particular inerente aos objetos; porque objetos dos mais variados tipos podem ser causas e efeitos. O que temos de procurar são relações entre objetos. De facto, descobrimos que as causas e os efeitos têm de ser contíguos entre si, e que as causas têm de ser anteriores aos seus efeitos. Mas isto não é suficiente; achamos ainda que tem de haver uma conexão necessária entre causa e efeito, embora a natureza desta conexão seja difícil de estabelecer.  Hume nega que tenha de haver uma causa para a existência de tudo aquilo que começa a existir.   Sendo todas as ideias distintas separáveis umas das outras, e sendo as ideias de causa e efeito evidentemente distintas, é fácil concebermos um objeto como não existente neste momento, e existente no momento seguinte, sem lhe juntarmos a ideia distinta de uma causa ou de um princípio produtivo.   É evidente que «causa» e «efeito» são termos correlativos, como o são «marido» e «mulher», e que todo o efeito tem de ter uma causa, da mesma maneira que todo o marido tem de ter uma mulher. Mas isto não prova que todos os acontecimentos tenham de ter uma causa, da mesma maneira que, do facto de todos os maridos terem de ter uma mulher, não se segue que todos os homens tenham de ter uma mulher. Tanto quanto sabemos, pode haver acontecimentos sem causas, tal como existem homens que não têm mulher.  Se não há qualquer absurdo em conceber que algo venha à existência ou seja sujeito a alterações sem uma causa, não há, a fortiori, qualquer absurdo em conceber que um acontecimento ocorra sem um tipo particular de causa. Sendo logicamente concebível que muitos efeitos diferentes resultem de uma causa particular, só a experiência pode levar-nos a esperar o efeito real. Mas com base em quê?  O que acontece, afirma Hume, é que observamos que indivíduos pertencentes a uma espécie são constantemente acompanhados por indivíduos pertencentes a outra. «A contiguidade e a sucessão não são suficientes para nos levarem a declarar que quaisquer dois objetos são causa e efeito, a não ser que observemos que estas duas relações são preservadas em diversos exemplos». Mas de que forma nos faz isto progredir? Se a relação causal não pode ser detetada num só exemplo, como pode ela ser detetada em diversos exemplos, se todos os exemplos semelhantes são independentes uns dos outros e não se influenciam uns aos outros?  A resposta de Hume é que a observação da semelhança produz uma nova impressão na mente. Tendo nós observado que um número suficiente de casos de B se seguem a A, sentimos uma determinação da mente em passar de A para B. É aqui que descobrimos a origem da ideia de conexão necessária. A necessidade «mais não é do que uma impressão interna da mente, ou uma determinação para levarmos os nossos pensamentos de um objeto para outro». A impressão da qual deriva a ideia de conexão necessária é a expectativa do efeito quando a causa se apresenta, expectativa essa que constitui uma impressão produzida pela conjunção habitual de ambos.  Por muito paradoxal que possa parecer, não é a nossa inferência que depende da conexão necessária entre causa e efeito, mas é a conexão necessária que depende da inferência que retiramos de uma para a outra. Hume oferece-nos, não uma, mas duas definições de causalidade. A primeira é a seguinte: uma causa é «um objeto precedente e contíguo a outro, sendo todos os objetos semelhantes ao primeiro colocados numa relação de semelhança e contiguidade com os objetos que se assemelham ao segundo». Nesta definição, nada se diz acerca da conexão necessária, e não é feita qualquer referência à atividade da mente. Assim sendo, é-nos apresentada uma segunda definição, mais filosófica que a primeira. Uma causa é «um objeto precedente e contíguo a outro, e de tal maneira unido a ele na imaginação que a ideia de um determina a mente a formar a ideia do outro, e a impressão de um outro.”

Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental,

REVISÃO CIENTÍFICA Desidério Murcho,  

Sociedade Portuguesa de Filosofia



"Quando por conseguinte temos alguma suspeita de que um termo filosófico é empregue sem nenhum significado ou ideia (como é muito frequente), basta-nos perguntar sobre a impressão de que a ideia supostamente deriva. E se for impossível encontrar alguma, isto servirá para confirmar a nossa suspeita. Ao clarificar assim as ideias, podemos razoavelmente esperar que possam ser removidos todos os conflitos que possam surgir sobre a sua natureza e realidade.
As consequências destas linhas são estonteantes.
Consideremos a ideia de um eu durável, algo de substancial que persiste por detrás das muitas mudanças que experimentamos ao vivermos a vida. Suponho, por exemplo, que esta manhã sou essencialmente o mesmo eu que era quando me fui deitar a noite passada. Não só isso, acho também que sou o mesmo eu que era na juventude que desaproveitei. Acho que serei o mesmo eu enquanto viver. Sem dúvida, algumas coisas mudaram: cresci, ganhei algumas cicatrizes, o meu cabelo está a tornar-se um pouco grisalho. Contudo, parece haver algo de essencial, o meu verdadeiro eu, que persiste em todas estas alterações acidentais.
Se concordarmos com o princípio de Hume sobre a relação entre ideias e impressões, e se estivermos convencidos de que o seu método de remover ideias fictícias é o caminho certo, temos apenas que perguntar: «De que impressão é a minha ideia derivada?» Ao olhar para dentro de mim, afirma Hume, não encontro nada, excepto uma série de impressões fugazes – ódio, amor, calor, dor, imagens, sons, cheiros e coisas do género –, mas nada permanente, nada que persista em todas as alterações. Em suma, nenhuma impressão corresponde à nossa ideia de eu. A ideia presente na palavra «eu» pode juntar-se a «unicórnio»: «eu» é uma palavra que expressa uma ideia ilusória, uma ficção da imaginação.
Mas as coisas tornam-se muito piores. A abordagem que Hume faz da natureza do entendimento humano começa com uma distinção entre dois tipos de «objectos da razão humana»: relações de ideias e matérias de facto. As relações de ideias podem ser descobertas apenas pela razão. Podemos saber que os solteiros são homens não casados ou que duas vezes cinco é metade de vinte pensando apenas sobre as relações entre as ideias em causa. As matérias de facto, porém, podem apenas ser descobertas pela experiência. Podemos meditar o tempo que quisermos sobre a proposição de que o sol está a brilhar, mas só saberemos se ela é verdadeira olhando pela janela. Há outra diferença entre estes dois tipos de proposição. O contrário de uma matéria de facto é possível, mas se negarmos uma relação entre ideias verdadeira, incorremos numa contradição. O sol pode não ser brilhante, mas não se pode estar mais longe da verdade do que quando alegamos que os solteiros são casados".


James Garvey, The Twenty Greatest Philosophy Books

 (London, 2006, págs. 66-68). Trad. Maria Miguel Pires

 (rev. científica Logosferas).



«Talvez um exemplo concreto possa ajudar a compreender o modo como David Hume abordou o problema da causalidade.
Imagine um bebé a quem os pais sempre tenham dado brinquedos macios e moles para se entreter. Esse bebé atira frequentemente os brinquedos para fora do berço, e eles caem no chão com um baque surdo. Um dia, o tio dá-lhe uma bola de borracha. O bebé examina-a de todos os ângulos, cheira-a, mete-a na boca, apalpa-a, depois deixa-a cair. Não obstante o exame cuidadoso a que submeteu a bola, o menino não tem maneira de saber que, em vez de cair suavemente no chão como os outros brinquedos, ela salta. Só pelo exame de uma coisa, diz-nos Hume constantemente, não poderemos dizer quais os efeitos que ela pode produzir. Só podemos determinar as suas consequências em resultado da experiência.
Imagine agora que o tio do menino ficou à espera de ver como brincaria ele com o seu presente. Quando o tio vê a bola cair, espera que ela salte. Se você lhe perguntar o que fez a bola saltar, ele responderá: ‘O meu sobrinho deixou-a cair’; ou ainda: ´Há uma conexão necessária entre deixar cair uma bola e ela saltar’.
Mas Hume faz uma pergunta mais profunda. Qual é a experiência que o tio tem e que falta à criança? O tio faz uso de conceitos como ´causa’ e ‘conexão necessária’. Se não se tratar apenas de palavras vazias, têm de se reportar de algum modo à experiência. Mas qual é, no caso presente, a experiência? A experiência do tio difere da experiência do sobrinho em quê?
A diferença consiste, para Hume, num facto simples. Ao contrário do sobrinho, o tio pôde observar, num grande número de casos, primeiro uma bola de borracha cair ao chão e, depois, o salto que ela dá. Na verdade, nunca na sua experiência houve um só caso em que uma bola de borracha tenha sido deixada cair numa superfície dura sem saltar, ou uma bola de borracha tenha começado a saltar sem primeiro ter caído ou ter sido atirada. Segundo Hume, há uma ‘conjunção constante’ entre a queda da bola e o salto que dá.
Mas como é que essa diferença de experiências entre o tio e o sobrinho engendra conceitos como ´causa’ e ‘conexão necessária’? O tio viu uma bola de borracha cair ao chão e saltar em muitas ocasiões, enquanto o sobrinho só viu isso acontecer uma vez. Todavia, o tio não viu nada que o sobrinho não tivesse visto também, apenas teve mais vezes a mesma sequência de experiências. Ambos observam que uma bola cai e depois salta – nada mais. O tio, porém, acredita que há uma conexão necessária entre a bola cair e saltar. E isto não é alguma coisa que ele encontre na sua experiência; a sua experiência é a mesma que a do sobrinho, só que se repetiu muitas vezes. Então, donde vem a ideia de uma conexão necessária, de uma ligação causal, se nunca foi directamente observada?
A ideia de que existem conexões causais entre os acontecimentos tem um papel importante no modo como compreendemos o mundo. Mas, quando vamos atrás desta ideia com seriedade , descobrimos que a conexão causal não é uma coisa que tenhamos alguma vez observado concretamente. Podemos dizer que o acontecimento A causa o acontecimento B , mas, quando examinamos a situação, descobrimos que é o acontecimento A seguido do acontecimento B aquilo que de facto observámos. Não existe uma terceira entidade, uma ligação causal, que também seja observada. Donde vem então essa ideia?»
 
Adapatado a partir de: Bryan Magee, 
Os grandes filósofos, Editorial Presença, Lisboa, 1989, pp. 141-143.


LOLA

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