segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Opinião pública em Kant




O CONCEITO DE OPINIÃO PÚBLICA EM KANT
AYLTON BARBIERI DURÃO

Resumo: O artigo efetua uma discussão aprofundada a respeito das características particulares que o conceito de opinião pública confere à filosofia transcendental Kantiana e a abordagem da primeira como fenômeno histórico.

Abstract: This is an indepth discussion of the special role the concept of public opinion plays in the Kantian trancendental philosophy and how the former is dealt with historical phenomenum.

Palavras-Chave: Filosofia; Opinião Pública; Racionalidade

Key Words: Philosophy; Public Opinion; Rationality


          Kant nunca empregou explicitamente o termo opinião pública ( offentliche Meinung), ao invés disso prefere falar em uso público da razão (öffentliche Gebrauch seiner Vernunft). No entanto, o uso público da razão remete ao conceito de opinião pública, o qual já está plenamente elaborado em sua obra, faltando-lhe apenas o termo. Este conceito aparece no opúsculo de Kant Resposta à Pergunta: que é Esclarecimento? (Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?), escrito no final de 1783, sendo um dos primeiros trabalhos no sentido de construir uma ética, sua principal preocupação na década de 80, depois da solução do problema teórico na Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft) e nos Prolegômenos a Toda Metafísica Futura que Possa ser Considerada Como Ciência(Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten können).
          O conceito de opinião pública desempenha um papel sui generis na filosofia transcendental kantiana. Ele é um conceito de origem política, e enquanto tal se enquadraria no sistema da razão teórica como um conceito empírico, porém ao mesmo tempo, Kant se esforça por mostrar que a razão pura não é apenas teórica mas também prática; isso significa que se as ações humanas devem se deixar reger pela razão, constituindo um domínio da ação racional, ou razão prática, então o conceito empírico de opinião pública é indispensável para que uma teoria política racional possa ser alcançada. Para seres como nós, cuja racionalidade é apenas um dos motivos de ação entre outros e não estão em princípio excluídos motivos de ação de ordem empírica, que Kant denominou  patológicos, não é à primeira vista claro porque deveríamos agir racionalmente. Acontece que embora a opinião pública seja um fato (no plano da razão teórica), Kant atribui a ela o papel notável de esclarecer o público e explicar como podemos não só agir racionalmente, mas também como podemos pelo menos esperar por uma ordem social racional.
          Isso implica que a resposta à pergunta de Kant sobre a possibilidade de uma razão pura prática pode ser reformulada pela forma:podemos agir racionalmente? Contudo, a resposta a essa pergunta coloca o próprio domínio da razão prática na dependência do plano empírico da opinião pública. À medida que o uso público da razão permite que o público  esclareça a si próprio, ele nos permite esperar a possibilidade da ação racional e da edificação de uma ordem institucional racional que Kant chama de "comunidade de cidadãos do mundo" ( Weltbürgergesellschaft)1.
          O caráter sui generis do conceito de opinião pública no sistema da filosofia transcendental consiste justamente em atribuir a um conceito empírico o papel de premissa inicial do argumento que prova a possibilidade da ação racional entre os homens. Na verdade, essa peculiaridade se desfaz se entendermos a estrutura do método da prova kantiana, o que, seguindo Strawson, é conveniente chamar de "argumento transcendental". Já na razão teórica, Kant havia tomado como premissa de seu argumento o fato da experiência interna e externa. Embora a experiência empírica seja um fato, para nós ela não pode ser colocada seriamente em dúvida. A proposição "eu tenho experiência" corresponde a um fato inquestionável para mim que tenho experiência, no momento em que a tenho. Partindo dessa premissa, mostra-se que ela, para ser possível, deve preencher certas condições de possibilidade. Essas condições de possibilidade são as intuições, conceitos e juízos a priori. Isso quer dizer que os argumentos transcendentais partem de proposições empíricas inquestionáveis para provar que, se elas ocorrem, então os elementos a priori tem que ser necessariamente pressupostos. Em termos lógicos, os argumentos transcendentais partem do conseqüente para o antecedente, tendo enorme semelhança com os argumentos de Aristóteles e Tomás de Aquino na prova da existência de Deus, podendo-se chamá-los de argumentos a posterioricontrapondo-se aos argumentos a priori de Agostinho, Anselmo, Descartes e outros que partem do conceito para provar sua existência.
          Kant não tem a menor dúvida de atribuir ao conceito de opinião pública uma origem empírica, isso porque o próprio domínio da opinião pública tem para ele o seu ato histórico de surgimento. Kant compreende a peculiaridade de seu tempo não como uma época esclarecida, mas como uma época de esclarecimento (Zeitalter der Aufklärung)2.
          O esclarecimento consiste em fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro. Kant não demonstra neste opúsculo nem a possibilidade da liberdade, nem a autonomia da vontade o que só ocorrerá no texto da Fundamentação da Metafísica dos Costumes(Grundlegung zur Metaphysik der Sitten) de 1785, porém ele aceita esses conceitos como pressupostos da argumentação. Nesse caso assume-se a imputabilidade do homem a tal ponto que ele é culpado por não fazer uso de sua razão sem a direção de outro, o que consiste na menoridade (Unmündigkeit).
          Sabe-se do contexto da Grundlegung que a liberdade e a autonomia da vontade só podem ocorrer onde o motivo da ação for racional, mesmo que não o sejam as conseqüências da ação. A profunda influência do agostinismo sobre Kant coloca a intencionalidade do sujeito como o motivo básico da ação 3. Mas se for assim, liberdade e autonomia pressupõem a racionalidade do mesmo modo que esta pressupõe aquelas.
          Para isso, o homem como sujeito imputável é culpado por não agir de acordo com sua imputabilidade. A culpa é uma condenação moral a todos aqueles que a natureza possibilitou o uso do entendimento4.
          Kant atribui a três causas a menoridade. Em primeiro lugar, existem os fatores subjetivos, a preguiça (Faulheit) e a covardia (Feigheit) de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro, pois é cômodo ser menor quando alguém pode pensar por nós. Mas Kant alerta também para as causas institucionais e introduz o conceito de tutores da grande massa (Vormündern des grossen Haufens). Os tutores são aqueles que pensam pelos outros e pertencem às instituições da esfera cultural, constituindo elementos formadores da opinião pública. Kant cita o livro, o diretor espiritual e o médico como aqueles que podem pensar pelos outros. Deste modo ele tem plena compreensão de que essa esfera formadora de opinião pública desempenha um papel na manutenção da menoridade entre os homens5.
          De qualquer forma, todas essas causas seriam móveis empíricos constituindo o que Kant chamará na Grundlegung de interesses patológicos, porém ele mesmo acentua que a própria razão pode conviver com a heteronomia quando é usada mecanicamente através de preceitos e fórmulas, antecipando uma forma de racionalidade mecânica a qual, longe de gerar a liberdade e a autonomia do sujeito, chega a originar um amor pela dominação, a ponto de se constituir como uma segunda natureza. Esse conceito de boa dominação em Kant é claramente o resultado da racionalidade empregada mecanicamente .
          Essas três causas da menoridade mostram que a imputabilidade do sujeito em Kant é uma idéia transcendental, mas não um conceito a priori. Como conceito a priori, a imputabilidade deveria ordenar a experiência empírica, só que em lugar disso, a imputabi-lidade do sujeito pode ser negada pela experiência concreta dos homens e essa tem sido a regra na sociedade humana, mas mesmo quando há dominação, só é possível admitir sua existências porque se deve pressupor que o sujeito seja essencialmente livre. É por isso que Kant pode acreditar que o esclarecimento seja inevitável quando os fatores patológicos deixarem de intervir sobre o homem 7.
          Contudo, Kant não acredita na revolução, pois a grande massa acostumada com a menoridade acaba se voltando contra aqueles que subitamente lhe retiram os grilhões e elas mesmas introduzem novos preconceitos.  Kant parece vislumbrar a Revolução Francesa que vai ocorrer em 17898 .  De qualquer forma, o público só pode sclarecer a si próprio a muito custo com um trabalho livre e autônomo da razão e nunca orientado por novos tutores.
          Kant mostra que a opinião pública é um fenômeno histórico específico de sua época de esclarecimento e que cabe a ela alargar a dimensão do esclarecimento, abarcando os sujeitos e as instituições sociais. A opinião pública pertence à esfera da ação política. Mas Kant também não se ilude com a opinião pública, percebendo que ela pode, por outro lado, ampliar a heteronomia do sujeito arrastando-o cada vez mais para a menoridade, explicando de certa forma a aporia dos meios de comunicação de massa que já se alastravam em seu tempo. Kant percebe a fragilidade da esfera da opinião pública ameaçada pelo arbítrio e insiste no valor dos governantes que respeitam a liberdade de expressão de seus súditos.
          Deste modo, poder-se-ia enunciar a máxima "eu posso expressar meu pensamento", como um juízo empírico próprio da época de esclarecimento, mas o que Kant visava era transformá-lo em regra moral passando pelo processo de universalização do imperativo categórico, embora ele não houvesse ainda sido explicitamente formulado. De qualquer forma, o que Kant pretendia era transformar a máxima, possível de ser enunciada na frágil esfera da opinião pública, na lei moral "eu devo expressar livremente o meu pensamento". A expressão do pensamento passa do plano da possibilidade empírica para o dever moral.  Kant consolida então a necessidade de que a política, que precisa ser exercida na esfera empírica da opinião pública se deixe fundamentar pela teoria moral. A ação política só é legítima quando é fundamentada moralmente. Muitos censuraram Kant por submeter a política à moral, tentando esvaziar o caráter político da ação humana e procedendo ideologicamente. Contudo, as recentes experiências políticas fazem ressurgir, ao nível da opinião pública, a tese kantiana de que a ação política legítima deve ser fundamentada moralmente.
          Para uma fundamentação moral da política, é preciso provar que "eu devo expressar livremente meu pensamento" não é apenas uma regra de ação política, mas é ela própria uma regra moral, e isto exige a sua fundamentação por meio do imperativo categórico. A demonstração deve seguir a orientação da GrundlegungToda máxima pode ser universalizada segundo o imperativo categórico, algumas máximas, entretanto, só podem ocorrer quando não o são, porque se forem universalizadas tornam impossível a própria possibilidade de sua ocorrência. Máximas imorais, quando universalizadas, cometem uma contradição. Kant não especifica a natureza dessa contradição, mas sem dúvida não é uma contradição lógica. Pode-se compreendê-la melhor através do exemplo da máxima que me permite mentir sempre que eu desejar ou necessitar. Como um procedimento individual, a mentira é uma ocorrência sempre possível, mas se tentarmos universalizá-la com base na primeira formulação do imperativo categórico ("Age de tal forma que sua máxima de ação sirva como lei universal")9 (Handle nur nach derjenigen Maxime, durch die du zugleich wollen kannst, daß sie ein allgemeines Gesetz werde) deparamo-nos imediatamente com problemas. Se a mentira se transformasse em um direito universal, então nunca poderíamos acreditar no outro, a nossa atitude natural seria de desconfiança, isso evidentemente poria em jogo a própria identidade social, mas com certeza tornaria a mentira impossível, pois ela só tem sentido quando a maioria fala a verdade e uns poucos se beneficiam com a mentira, se eu já espero que o outro esteja mentindo a sua mentira não tem qualquer efeito; a universalização da mentira nega a sua própria possibilidade de realização. Trata-se, conseqüentemente, de uma contradição pragmática.
          Pode-se aplicar esse método sobre o juízo "eu devo expressar livremente meu pensamento" e verificar se é um juízo moral. Se for, a sua universalização não implica em contradição pragmática. Como esperamos que se trate de um juízo moral devemos tentar aplicar o imperativo categórico no juízo que o nega, ou seja, precisamos provar que "eu não devo expressar livremente meu pensamento", ao ser universalizado, comete uma contradição pragmática. Ora, como uma máxima individual podemos aceitar que devemos nos calar em questões importantes, mas ao ser universalizado ocorre a contradição pragmática. Isso porque se todos se considerassem no dever de não expressar livremente seu pensamento a própria possibilidade de expressar o pensamento estaria eliminada pois, nesse caso, o indivíduo sequer teria o direito de se expressar contra a expressão livre do pensamento. Então, "eu devo expressar livremente meu pensamento" é um juízo moral, mas ele nada mais é que o princípio da liberdade de expressão do pensamento, que era uma das grandes lutas do homem no século XVIII, então não inteiramente conquistado. Esse princípio é justamente a base da legitimidade da opinião pública livre, autônoma e conseqüentemente racional, confirmando a tese kantiana de que a política deve se deixar reger pela moralidade.
          Esse domínio da moralidade não tem existência concreta, na verdade ele não pode nem mesmo ser conhecido pois é uma idéia transcendental, a qual deve guiar nossas ações mesmo que nunca venham a ocorrer realmente. Porém, a possibilidade da opinião pública demanda não só a antecipação da idéia de moralidade, mas exige a antecipação desta idéia transcendental revestida de um caráter mais especificamente político. Se temos o dever de expressar livremente nosso pensamento, precisamos antecipar uma forma de organização social que contemple o princípio da liberdade de expressão; essa sociedade é o que Kant denomina "comunidade de cidadãos do mundo" (Weltbürgergesellschaft). Como uma idéia transcendental não podemos nos iludir acreditando em sua realização, pois ela não é cognitiva, mas precisa regular nossas ações, de tal modo que devemos nos considerar cidadãos do mundo mesmo presos a nossa sociedade concreta. Isso é o que consiste no uso público da razão. Como cidadãos do mundo não podemos pensar e expressar nosso pensamento apenas limitados à instituição a que pertencemos no uso privado da razão (Privatgebrauch der seiner Vernunft), mas precisamos assumir a posição de sábios (Gelehrter ) que julgam as ações e princípios livremente10A opinião pública é um fato, porém ela emana da própria necessidade da razão que nesse caso não apenas ordena o material sensível mas o constitui como um fato-da-razão (faktum de Vernunft).
          À medida que nos consideramos membros da comunidade de cidadãos do mundo também não podemos aceitar que um contrato (Kontrakt), por mais justo que pareça ou por envolver o maior número possível de contraentes, seja válido indefinidamente, não podendo nunca ser colocado em discussão. Kant questiona a validade das teorias contratualistas, pois um contrato é sempre realizado concretamente por um grupo limitado espácio-temporalmente. Enquanto nos consideramos cidadãos do mundo, o público a que nos dirigimos é infinito espácio-temporalmente de modo que precisamos admitir um salutar falibilismo de nossa razão11. Mais importante que um mau contrato é a boa possibilidade de revê-lo continuamente. Só a opinião pública livre, autônoma e racional pode permitir a renovação contínua do contrato social que elimine as arbitrariedades e a injustiça entre os homens.NOTAS

 1 KANT, I.  Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?  Berlim, Bruno Cassirer, 1922. (IMMANUEL KANTS WERKE, dir. Ernest Cassirer,4)  p.171
 2 Ibid., p. 174
 3 Id., Gundlegug zur Metaphysik der Sitten. (IMMANUEL KANTS WERKE,dir. Ernest Cassirer, 4)  p. 249-62
 4 Id., Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärug?  p.169
 5 Ibid., p. 169-70
 6 Ibid., p. 170
 7 Ibid., p. 170
 8 Ibid., p. 170
 9 Id., Grundlegung , p. 279
 10 Id., Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?  p. 171-2
 11 Ibid., p. 172-4.


BIBLIOGRAFIA

KANT, I. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung ?  Berlin : B. Cassirer, 1922.  p. 167-76. (IMMANUEL KANTS
     WERKE, dir. Ernest Cassirer, 4).
______.   Grundlegung zur Metaphysik  der  Sitten.  p. 241-324.  (IMMANUEL KANTS WERKE, dir. Ernest Cassirer, 4).
______.  Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht. p. 149-66.  (IMMANUEL KANTS WERKE, dir.
     Ernest Cassirer, 4).
______.  Kritik der praktischen Vernunft .  Berlin :  Bruno Cassirer, 1922.  p. 2-160.  (IMMANUEL KANTS WERKE, dir.
     Ernest Cassirer, 5).
______.  Kritik der reinen Vernunft.  675 p.  (IMMANUEL KANTS WERKE, dir. Ernest Cassirer, 3).______.  Rezensionen  von  Herders  Ideen  zur  Philosophie   der   Geschichte der Menschheit.   p. 177-200.  (IMMANUEL KANTS WERKE, dir. Ernest Cassirer, 4)..P65F 

Lola










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