Resumo: O artigo efetua uma discussão aprofundada a
respeito das características particulares que o conceito de opinião pública
confere à filosofia transcendental Kantiana e a abordagem da primeira como
fenômeno histórico.
Abstract: This is an indepth discussion of the
special role the concept of public opinion plays in the Kantian trancendental
philosophy and how the former is dealt with historical phenomenum.
Palavras-Chave: Filosofia; Opinião Pública; Racionalidade
Key Words: Philosophy; Public Opinion; Rationality
Kant nunca empregou explicitamente o
termo opinião pública ( offentliche Meinung), ao invés disso
prefere falar em uso público da razão (öffentliche
Gebrauch seiner Vernunft). No entanto, o uso público da razão
remete ao conceito de opinião pública, o qual já está plenamente
elaborado em sua obra, faltando-lhe apenas o termo. Este conceito aparece no
opúsculo de Kant Resposta à Pergunta: que é Esclarecimento? (Beantwortung
der Frage: Was ist Aufklärung?), escrito no final de 1783, sendo um dos
primeiros trabalhos no sentido de construir uma ética, sua principal
preocupação na década de 80, depois da solução do problema teórico na Crítica
da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft) e nos Prolegômenos
a Toda Metafísica Futura que Possa ser Considerada Como Ciência(Prolegomena
zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten
können).
O conceito de opinião pública
desempenha um papel sui generis na filosofia transcendental
kantiana. Ele é um conceito de origem política, e enquanto tal se
enquadraria no sistema da razão teórica como um conceito empírico, porém ao
mesmo tempo, Kant se esforça por mostrar que a razão pura não é apenas
teórica mas também prática; isso significa que se as ações humanas devem se
deixar reger pela razão, constituindo um domínio da ação racional, ou razão
prática, então o conceito empírico de opinião pública é indispensável para
que uma teoria política racional possa ser alcançada. Para seres como nós,
cuja racionalidade é apenas um dos motivos de ação entre outros e não estão
em princípio excluídos motivos de ação de ordem empírica, que Kant
denominou patológicos, não é à primeira vista claro porque deveríamos
agir racionalmente. Acontece que embora a opinião pública seja um
fato (no plano da razão teórica), Kant atribui a ela o papel notável de
esclarecer o público e explicar como podemos não só agir racionalmente, mas
também como podemos pelo menos esperar por uma ordem social racional.
Isso implica que a resposta à pergunta
de Kant sobre a possibilidade de uma razão pura prática pode ser reformulada
pela forma:podemos agir racionalmente? Contudo, a resposta a essa pergunta
coloca o próprio domínio da razão prática na dependência do plano empírico da
opinião pública. À medida que o uso público da razão permite que o
público esclareça a si próprio, ele nos permite esperar a possibilidade
da ação racional e da edificação de uma ordem institucional racional que Kant
chama de "comunidade de cidadãos do mundo" ( Weltbürgergesellschaft)1.
O caráter sui generis do
conceito de opinião pública no sistema da filosofia transcendental consiste
justamente em atribuir a um conceito empírico o papel de premissa inicial do
argumento que prova a possibilidade da ação racional entre os homens. Na verdade,
essa peculiaridade se desfaz se entendermos a estrutura do método da prova
kantiana, o que, seguindo Strawson, é conveniente chamar de "argumento
transcendental". Já na razão teórica, Kant havia tomado como premissa de
seu argumento o fato da experiência interna e externa. Embora a experiência
empírica seja um fato, para nós ela não pode ser colocada seriamente em
dúvida. A proposição "eu tenho experiência" corresponde a um fato
inquestionável para mim que tenho experiência, no momento em que a tenho.
Partindo dessa premissa, mostra-se que ela, para ser possível, deve preencher
certas condições de possibilidade. Essas condições de possibilidade são as
intuições, conceitos e juízos a priori. Isso quer dizer que os
argumentos transcendentais partem de proposições empíricas inquestionáveis
para provar que, se elas ocorrem, então os elementos a priori tem
que ser necessariamente pressupostos. Em termos lógicos, os argumentos
transcendentais partem do conseqüente para o antecedente, tendo enorme
semelhança com os argumentos de Aristóteles e Tomás de Aquino na prova da
existência de Deus, podendo-se chamá-los de argumentos a posterioricontrapondo-se
aos argumentos a priori de Agostinho, Anselmo, Descartes e
outros que partem do conceito para provar sua existência.
Kant não tem a menor dúvida de
atribuir ao conceito de opinião pública uma origem empírica, isso porque o
próprio domínio da opinião pública tem para ele o seu ato histórico de
surgimento. Kant compreende a peculiaridade de seu tempo não como uma época
esclarecida, mas como uma época de esclarecimento (Zeitalter der
Aufklärung)2.
O esclarecimento consiste em
fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro. Kant não demonstra
neste opúsculo nem a possibilidade da liberdade, nem a autonomia da vontade o
que só ocorrerá no texto da Fundamentação da Metafísica dos Costumes(Grundlegung
zur Metaphysik der Sitten) de 1785, porém ele aceita esses conceitos como
pressupostos da argumentação. Nesse caso assume-se a imputabilidade do homem
a tal ponto que ele é culpado por não fazer uso de sua razão sem a direção de
outro, o que consiste na menoridade (Unmündigkeit).
Sabe-se do contexto da Grundlegung que
a liberdade e a autonomia da vontade só podem ocorrer onde o motivo da ação
for racional, mesmo que não o sejam as conseqüências da ação. A profunda
influência do agostinismo sobre Kant coloca a intencionalidade do sujeito
como o motivo básico da ação 3. Mas se for assim, liberdade e
autonomia pressupõem a racionalidade do mesmo modo que esta pressupõe
aquelas.
Para isso, o homem como sujeito
imputável é culpado por não agir de acordo com sua imputabilidade. A culpa é
uma condenação moral a todos aqueles que a natureza possibilitou o uso do
entendimento4.
Kant atribui a três causas a
menoridade. Em primeiro lugar, existem os fatores subjetivos, a preguiça (Faulheit)
e a covardia (Feigheit) de fazer uso de seu entendimento sem a direção
de outro, pois é cômodo ser menor quando alguém pode pensar por nós. Mas Kant
alerta também para as causas institucionais e introduz o conceito de tutores
da grande massa (Vormündern des grossen Haufens). Os tutores são
aqueles que pensam pelos outros e pertencem às instituições da esfera
cultural, constituindo elementos formadores da opinião pública. Kant cita o
livro, o diretor espiritual e o médico como aqueles que podem pensar pelos
outros. Deste modo ele tem plena compreensão de que essa esfera formadora de
opinião pública desempenha um papel na manutenção da menoridade entre os
homens5.
De qualquer forma, todas essas
causas seriam móveis empíricos constituindo o que Kant chamará na Grundlegung de
interesses patológicos, porém ele mesmo acentua que a própria razão pode
conviver com a heteronomia quando é usada mecanicamente através de preceitos
e fórmulas, antecipando uma forma de racionalidade mecânica a qual, longe de
gerar a liberdade e a autonomia do sujeito, chega a originar um amor pela
dominação, a ponto de se constituir como uma segunda natureza. Esse conceito
de boa dominação em Kant é claramente o resultado da racionalidade empregada
mecanicamente 6 .
Essas três causas da menoridade
mostram que a imputabilidade do sujeito em Kant é uma idéia transcendental,
mas não um conceito a priori. Como conceito a priori, a
imputabilidade deveria ordenar a experiência empírica, só que em lugar disso,
a imputabi-lidade do sujeito pode ser negada pela experiência concreta dos
homens e essa tem sido a regra na sociedade humana, mas mesmo quando há dominação,
só é possível admitir sua existências porque se deve pressupor que o sujeito
seja essencialmente livre. É por isso que Kant pode acreditar que o
esclarecimento seja inevitável quando os fatores patológicos deixarem de
intervir sobre o homem 7.
Contudo, Kant não acredita na
revolução, pois a grande massa acostumada com a menoridade acaba se voltando
contra aqueles que subitamente lhe retiram os grilhões e elas mesmas
introduzem novos preconceitos. Kant parece vislumbrar a Revolução
Francesa que vai ocorrer em 17898 . De qualquer forma,
o público só pode sclarecer a si próprio a muito custo com um trabalho livre
e autônomo da razão e nunca orientado por novos tutores.
Kant mostra que a opinião
pública é um fenômeno histórico específico de sua época de esclarecimento e
que cabe a ela alargar a dimensão do esclarecimento, abarcando os sujeitos e
as instituições sociais. A opinião pública pertence à esfera da ação
política. Mas Kant também não se ilude com a opinião pública, percebendo que
ela pode, por outro lado, ampliar a heteronomia do sujeito arrastando-o cada
vez mais para a menoridade, explicando de certa forma a aporia dos meios de
comunicação de massa que já se alastravam em seu tempo. Kant percebe a
fragilidade da esfera da opinião pública ameaçada pelo arbítrio e insiste no
valor dos governantes que respeitam a liberdade de expressão de seus súditos.
Deste modo, poder-se-ia enunciar
a máxima "eu posso expressar meu pensamento", como um juízo
empírico próprio da época de esclarecimento, mas o que Kant visava era
transformá-lo em regra moral passando pelo processo de universalização do
imperativo categórico, embora ele não houvesse ainda sido explicitamente
formulado. De qualquer forma, o que Kant pretendia era transformar a máxima,
possível de ser enunciada na frágil esfera da opinião pública, na lei moral
"eu devo expressar livremente o meu pensamento". A expressão do
pensamento passa do plano da possibilidade empírica para o dever moral.
Kant consolida então a necessidade de que a política, que precisa ser
exercida na esfera empírica da opinião pública se deixe fundamentar pela
teoria moral. A ação política só é legítima quando é fundamentada
moralmente. Muitos censuraram Kant por submeter a política à moral,
tentando esvaziar o caráter político da ação humana e procedendo
ideologicamente. Contudo, as recentes experiências políticas fazem
ressurgir, ao nível da opinião pública, a tese kantiana de que a ação
política legítima deve ser fundamentada moralmente.
Para uma fundamentação moral da
política, é preciso provar que "eu devo expressar livremente meu
pensamento" não é apenas uma regra de ação política, mas é ela própria
uma regra moral, e isto exige a sua fundamentação por meio do imperativo categórico.
A demonstração deve seguir a orientação da Grundlegung. Toda
máxima pode ser universalizada segundo o imperativo categórico, algumas
máximas, entretanto, só podem ocorrer quando não o são, porque se forem
universalizadas tornam impossível a própria possibilidade de sua ocorrência.
Máximas imorais, quando universalizadas, cometem uma contradição. Kant não
especifica a natureza dessa contradição, mas sem dúvida não é uma
contradição lógica. Pode-se compreendê-la melhor através do exemplo da máxima
que me permite mentir sempre que eu desejar ou necessitar. Como um
procedimento individual, a mentira é uma ocorrência sempre possível,
mas se tentarmos universalizá-la com base na primeira formulação do
imperativo categórico ("Age de tal forma que sua máxima de ação
sirva como lei universal")9 (Handle nur nach
derjenigen Maxime, durch die du zugleich wollen kannst, daß sie ein
allgemeines Gesetz werde) deparamo-nos imediatamente com problemas. Se a
mentira se transformasse em um direito universal, então nunca poderíamos
acreditar no outro, a nossa atitude natural seria de desconfiança, isso
evidentemente poria em jogo a própria identidade social, mas com certeza
tornaria a mentira impossível, pois ela só tem sentido quando a maioria fala
a verdade e uns poucos se beneficiam com a mentira, se eu já espero que o
outro esteja mentindo a sua mentira não tem qualquer efeito; a
universalização da mentira nega a sua própria possibilidade de realização.
Trata-se, conseqüentemente, de uma contradição pragmática.
Pode-se aplicar esse método sobre
o juízo "eu devo expressar livremente meu pensamento" e verificar
se é um juízo moral. Se for, a sua universalização não implica em contradição
pragmática. Como esperamos que se trate de um juízo moral devemos tentar aplicar
o imperativo categórico no juízo que o nega, ou seja, precisamos provar que
"eu não devo expressar livremente meu pensamento", ao ser
universalizado, comete uma contradição pragmática. Ora, como uma máxima
individual podemos aceitar que devemos nos calar em questões importantes, mas
ao ser universalizado ocorre a contradição pragmática. Isso porque se todos
se considerassem no dever de não expressar livremente seu pensamento a
própria possibilidade de expressar o pensamento estaria eliminada pois, nesse
caso, o indivíduo sequer teria o direito de se expressar contra a expressão
livre do pensamento. Então, "eu devo expressar livremente meu
pensamento" é um juízo moral, mas ele nada mais é que o princípio da
liberdade de expressão do pensamento, que era uma das grandes lutas
do homem no século XVIII, então não inteiramente conquistado. Esse
princípio é justamente a base da legitimidade da opinião pública livre,
autônoma e conseqüentemente racional, confirmando a tese kantiana de que a
política deve se deixar reger pela moralidade.
Esse domínio da moralidade não
tem existência concreta, na verdade ele não pode nem mesmo ser conhecido pois
é uma idéia transcendental, a qual deve guiar nossas ações mesmo que nunca
venham a ocorrer realmente. Porém, a possibilidade da opinião pública demanda
não só a antecipação da idéia de moralidade, mas exige a antecipação desta
idéia transcendental revestida de um caráter mais especificamente político.
Se temos o dever de expressar livremente nosso pensamento, precisamos antecipar
uma forma de organização social que contemple o princípio da liberdade de
expressão; essa sociedade é o que Kant denomina "comunidade de cidadãos
do mundo" (Weltbürgergesellschaft). Como uma idéia transcendental
não podemos nos iludir acreditando em sua realização, pois ela não é
cognitiva, mas precisa regular nossas ações, de tal modo que devemos nos
considerar cidadãos do mundo mesmo presos a nossa sociedade concreta. Isso é
o que consiste no uso público da razão. Como cidadãos do mundo não podemos
pensar e expressar nosso pensamento apenas limitados à instituição a que
pertencemos no uso privado da razão (Privatgebrauch der seiner Vernunft),
mas precisamos assumir a posição de sábios (Gelehrter ) que
julgam as ações e princípios livremente10. A opinião
pública é um fato, porém ela emana da própria necessidade da razão que nesse
caso não apenas ordena o material sensível mas o constitui como um
fato-da-razão (faktum de Vernunft).
À medida que nos consideramos membros
da comunidade de cidadãos do mundo também não podemos aceitar que um contrato
(Kontrakt), por mais justo que pareça ou por envolver o maior número
possível de contraentes, seja válido indefinidamente, não podendo nunca ser
colocado em discussão. Kant questiona a validade das teorias contratualistas,
pois um contrato é sempre realizado concretamente por um grupo limitado
espácio-temporalmente. Enquanto nos consideramos cidadãos do mundo, o
público a que nos dirigimos é infinito espácio-temporalmente de modo que
precisamos admitir um salutar falibilismo de nossa razão11. Mais
importante que um mau contrato é a boa possibilidade de revê-lo
continuamente. Só a opinião pública livre, autônoma e racional pode permitir
a renovação contínua do contrato social que elimine as arbitrariedades e a
injustiça entre os homens.NOTAS
1 KANT, I. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?
Berlim, Bruno Cassirer, 1922. (IMMANUEL KANTS WERKE, dir. Ernest
Cassirer,4) p.171
2 Ibid., p. 174
3 Id., Gundlegug zur Metaphysik der Sitten. (IMMANUEL
KANTS WERKE,dir. Ernest Cassirer, 4) p. 249-62
4 Id., Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärug?
p.169
5 Ibid., p. 169-70
6 Ibid., p. 170
7 Ibid., p. 170
8 Ibid., p. 170
9 Id., Grundlegung , p. 279
10 Id., Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?
p. 171-2
11 Ibid., p. 172-4.
BIBLIOGRAFIA
KANT, I. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung
? Berlin :
B. Cassirer, 1922. p. 167-76. (IMMANUEL KANTS
WERKE, dir. Ernest Cassirer, 4).
______. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. p.
241-324. (IMMANUEL KANTS WERKE, dir. Ernest Cassirer, 4).
______. Idee zu einer allgemeinen Geschichte in
weltbürgerlicher Absicht. p. 149-66. (IMMANUEL KANTS
WERKE, dir.
Ernest Cassirer, 4).
______. Kritik der praktischen Vernunft .
Berlin : Bruno Cassirer, 1922. p. 2-160. (IMMANUEL KANTS
WERKE, dir.
Ernest Cassirer, 5).
______. Kritik der reinen Vernunft. 675 p.
(IMMANUEL KANTS WERKE, dir. Ernest Cassirer, 3).______. Rezensionen
von Herders Ideen zur Philosophie
der Geschichte der Menschheit. p. 177-200.
(IMMANUEL KANTS WERKE, dir. Ernest Cassirer, 4)..P65F
Lola
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