Platão e a retorica
(...) Sócrates
-Vou expressar-me com mais clareza. Depois que concordámos, eu e tu, que há
algo bom e também algo agradável, e que o agradável é
diferente do bem, e que para a aquisição de cada um deles há uma espécie de
exercício e de preparação: de uma parte a caça ao agradável, de outra, ao
bem... Mas, a esse respeito, declara primeiro se estás ou não de acordo comigo.
Estás?
Cálicles — Estou.
Sócrates — Então prossigamos, e começa por declarar-me se o que eu disse há
pouco a estes aqui, te parece acertado, O que lhes disse foi que para mim a
culinária não é arte, porém simples rotina, o que não se dá com a medicina, que
é arte, firmado em que ela só trata da doença depois de estudar a sua natureza
e conhecer a maneira por que actua, e no facto de poder apresentar a razão de
ser de tudo isso, a medicina, enquanto a outra, que só visa o prazer, procede
sem arte na prossecução de sua finalidade, e não examina nem a natureza do
prazer nem a sua causa, procede pois de maneira inteiramente irracional, por
assim dizer, e sem calcular coisa alguma, só alcançando pela prática e pela rotina
uma noção vaga do que é costume fazer-se, com o que, precisamente, proporciona
prazer. Inicialmente, desafio-te a considerar se há fundamento no que eu disse
e se não existirão processos idênticos com relação à alma, alguns, de facto,
baseados em arte e preocupados em promover os mais elevados interesses da alma,
outros negligenciando de todo esses interesses e só cuidando, como no caso
anterior,do prazer da alma e de que modo possa ser alcançado, mas sem
distinguir entre os prazeres bons e os maus, com o que não se preocupam no
mínimo, pois têm em vista apenas a produção do prazer, pouco importando se é
para o bem ou para o mal. A meu ver, Cálicles, existem esses processos, que não
sei definir a não ser como adulação, tanto em relação ao corpo como à alma, ou
onde quer que sejam empregados com vistas à produção do prazer, sem
considerarem se é em proveito ou detrimento próprio. A este respeito, como te
comportas? estás de acordo com esta maneira de pensar ou rejeita-la?
Cálicles — Não, não rejeito; pelo contrário: concordo, não só para ser
agradável a Górgias, como para que chegues ao fim de tua demonstração.
Sócrates — E isto é válido só para uma alma, não o sendo para duas ou para
muitas?
Cálicles — Não; vale também para duas e para muitas.
Sócrates — Sendo assim, é possível o desejo de agradar a um grande número de
almas,
sem saber dos seus verdadeiros interesses.
Sócrates — E agora, poderás dizer-me quais são as ocupações que produzem
esse efeito?
(...)
Sócrates — Muito bem. E com relação à retórica que se dirige
ao povo ateniense e ao de outras cidades de homens livres, que diremos que
seja? És de parecer que os oradores falam sempre com a finalidade precípua do
maior bem e que só têm em mira, com seus discursos, deixar virtuosos, quanto
possível, os cidadãos? Ou, pelo contrário, só desejam agradar aos cidadãos e
descuidam, no interesse próprio, dos interesses da comunidade, além de tratarem
as multidões como a crianças, por só pensarem em lhes ser agradável, sem se
preocuparem, no mínimo, se desse modo eles virão a ficar melhores ou piores?
Cálicles — Essa pergunta não é simples. Há oradores que dizem o que dizem no
interesse dos cidadãos, e há outros como acabaste de descrever.
Sócrates — Isso basta-me. Se há, portanto, duas maneiras de falar ao povo, uma
delas é adulação e oratória da pior espécie; a outra é algo belo, porque se
preocupa com deixar boa quanto possível a alma dos cidadãos, esforçando-se para
dizer o que é melhor, quer agrade quer não agrade ao auditório. Porém nunca viste oratória dessa espécie; e se já
encontraste algum orador com semelhantes características, por que não
declaraste quem ele seja?
Cálicles — Não, por Zeus! Não conheço nenhum orador nessas condições, pelo
menos entre os modernos.
Sócrates — Como assim? E entre os antigos, poderás citar algum de quem seja
lícito afirmar que tivesse deixado melhores os atenienses, de ruins que eram
antes, depois que começara a falar para o povo? Eu, pelo menos, não sei quem
possa ser.(...)
Platão, Górgias, escrito em 380 a.c
Lola
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