quinta-feira, 24 de abril de 2014

Abril



25 de Abril - O envelope

O meu pai Zé tem cerca de oitenta e cinco anos e é reformado da Polícia de Segurança Pública do Porto.


Aparador antigo




A minha meninice pré-liberdade continua marcada por um acontecimento, na altura, incompreensivel mas que ganhou todo o sentido com o fim da ditadura!

Antes do 25 de Abril, na casa dos meus pais, no Porto, e em determinados dias que eu desconhecia o porquê,  o meu pai,  trazia de véspera, para casa, um pequeno envelope branco que colocava, com muito jeitinho, em cima da cristaleira - móvel que juntamente com o aparador, decorava quase todas as salas de jantar da época.

Eu que era uma criança curiosa e sempre atenta a algo de diferente que viesse para casa, ficava admirada de ver ali algo de novo e aproximava-me, em bicos de pés, para lhe tocar, desejo este prontamente reprimido pela minha mãe que, num tom imperativo,  dizia:

- Não se pode mexer, é o voto do pai!


Cristaleira antiga

E o meu pai, no dia seguinte, levava o envelope que eu jà sentia familiar embora intocavel  por ficar tão bem encostadinho à parte superior da cristaleira ou do aparador e muito afastado do alcance das duas crianças là de casa!

O meu pai sempre votou!

A imagem do envelope ficou sempre registada nas minhas memorias de infância ingénua e modesta mas muito, muito tranquila!

Hoje, em momentos de eleições os meus filhos perguntam-me, com uma certa frequência, quando estão frente à televisão a ver os resultados:

 “Em quem votaste? Quem queres que ganhe?”

Efectivamente, eu, hoje, escolho livremente em quem votar e, se entender,  nem sequer vou votar.

O meu pai Zé também votava, ou melhor, era obrigado a votar, mas não conhecia o conteúdo do envelope porque, e ao contrário da imagem, o envelope que o meu pai Zé ía colocar na urna de voto chegava e partia de casa já fechado e o meu pai tinha de o levar exactamente como lhe foi entregue - misteriosamente  fechado.

O meu pai votava mas não escolhia...

...isto num tempo da República ...mas também de ditadura!








    Lola 

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