domingo, 3 de agosto de 2014

Sobrinho Simões



Manuel Sobrinho Simões

 "É preciso fechar hospitais e aumentar os centros de saúde"


O governo tem uma doença psicológica. E na sua área é incompetente, displicente e amador, diz o médico
Sobrinho Simões é professor, médico e investigador. No Ipatimup - Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto faz perto de 300 diagnósticos por ano só para fora do país. O i interrompeu-lhe as férias com a família, em Vila Praia de Âncora, e pediu-lhe que fizesse um diagnóstico do governo e do país, em particular dos sectores da saúde e do ensino. Confessou-nos que não há pior derrota que falhar a patologia de um doente e diz que está a chegar uma vaga de novos-ricos que o preocupa: são os fundamentalistas antivacinação. Fala-nos do erro médico e aponta o dedo aos políticos e aos reguladores, incapazes de punir e premiar, e por isso de melhorar o Serviço Nacional de Saúde como um todo.

Viveu na Noruega. É um país pequeno, periférico, que podia servir de exemplo a Portugal?
É muito mais fácil definir os noruegueses que os portugueses. Eles são muito mais semelhantes uns aos outros, nós somos individualistas e minifundiários, cada um tem a sua folie de grandeur. Temos características engraçadíssimas e noto isso nos alunos. A nossa miudagem, a que chega à universidade, está cada vez mais infantil, mais liceal. Mas tem piada, se forem estimulados vão mais longe, são mais livres que os miúdos a quem dou aulas no centro da Europa e nos Estados Unidos.

Mais livres como?
Menos formatados. Ainda.

Porque a tendência é...?
Formatá-los. E não é só um bocadinho. E isso é péssimo e está cada vez pior. Os nossos internos, como os turcos ou os chineses, têm muito mais graça que os internos ingleses ou os holandeses, que são absolutamente previsíveis.

Porque estamos a formatá-los?
Porque passou a haver critérios objectivos de avaliação económica, de outputs, etc. Não fomos nós que os descobrimos, foram-nos impostos. O meu mundo é limitado: universidade, hospital e investigação. Mas nestes três mundos, de repente, fomos obrigados a produzir coisas mensuráveis. Não tínhamos feito a evolução dos outros países, sobretudo do Centro-Norte da Europa, que com a Revolução Industrial organizaram uma sociedade mais planificada, muito mais articulada com a produção, com os números.

É incompatível ser-se fora do comum e ao mesmo tempo organizado?
Não sei. Quando os tipos são geniais, não é. Mas também é mais difícil ser-se genial nestas áreas em particular, cada vez há mais informação, há menos lugar para descobertas. Existem guidelines. Senti muito isso na Noruega, é uma sociedade muito vigilante, muito à Orwell. Por exemplo, os nossos vizinhos vieram perguntar-me porque é que fazíamos tanto lixo. Nós tirávamos a casca das batatas e das cenouras e eles não, e claro que o nosso caixote se enchia muito mais depressa. Mas havia outras coisas. Em Portugal não era assim e não é, como se tem visto pela incapacidade de vigiar o que quer que seja, até do ponto de vista dos reguladores estatais, que são muito fracos.

Porquê?
Os noruegueses são engraçados: se passam por uma árvore de fruto que não conhecem vão lá, tiram o fruto, dão uma trincadinha... O processo da descoberta. Nós não. Nós queremos saber o nome, queremos classificar. Lá fora perguntam para saber, nós só perguntamos quando já sabemos a resposta, achamos que perguntar é ser intrusivo, malcriado. Ninguém pergunta de onde vem o dinheiro ou como chegou a este diagnóstico. Por outro lado, adoramos retórica, discursos labirínticos, achamos que isso é que nos torna interessantes. Não percebemos a ideia de que tempo é dinheiro. Uma coisa que noto nos meus alunos, entre cá dentro e lá fora, é que lá fora sabem distinguir muito bem o essencial do acessório. Aqui ir directamente ao ponto é demonstrar fragilidade.

Sendo médico, quando diagnostica percebem sempre o que diz?
A minha grande aspiração é que as pessoas percebam o que quero dizer. O que eu gostava que as pessoas percebessem é aquilo que os ingleses chamam o understand, o que está por baixo. Que nós não temos. A palavra apreender, mesmo compreender, é sempre à superfície. É engraçado, porque somos miméticos, mas a linguagem, a descrição, o que embrulha, é quase mais importante do que a coisa em si, e isso tira-nos a capacidade de ser eficientes. De resto, a política personifica isto e agora a ciência também. Devíamos estar a discutir quais são as melhores e as piores instituições, as que vamos apoiar, mas estamos a discutir a lei. Fugimos a defrontar-nos com a realidade nua e crua.

Fiquei com a frase sobre os reguladores serem muito fracos...
Porque em Portugal há outro problema grave, que é o contexto: somos todos da mesma família. A classe dominante eram 5% ou 10% e fomos casando uns com os outros. Isto também torna a regulação difícil, porque há uma promiscuidade muito grande. Não temos treino a fazer as perguntas certas e, se porventura houver escândalo ou corrupção envolvida, temos medo. Fazemos uma torta de camadas. Lá está, temos uma língua extraordinária; não dizemos quero, dizemos gostaria. Gostaria que soubessem isto... Quando falo com os meus internos costumo acrescentar que, se não souberem, "dou cabo de vocês" [risos]. Porque durante muito tempo acontecia que eu dizia as coisas assim, perifrasticamente, e isso dava-lhes uma oportunidade para não cumprir. Nós somos assim, circulares, porque nunca precisámos de mostrar eficiência.

Uma vez mais, somos tão bons a mimetizar, porque não fazemos copy/paste da Noruega?
Porque isso exigiria que tivéssemos regras e que as cumpríssemos Enquanto não foi preciso produzir riqueza, nós, como organização social, que não era boa, aguentámos uma guerra em África - bem sei que durante uma ditadura. Há muito poucos países no mundo que tivessem aguentado tantos anos uma guerra com tantas frentes de isolamento internacional. Há aqui um elemento nosso notável de despacho e de capacidade, como deve ter existido nos Descobrimentos. O que falta é organização e saber avaliar, uma vez mais porque somos todos primos de primos e não introduzimos mecanismos de recompensa-castigo.

Disse que a sociedade norueguesa, e não só, é vigilante. E a portuguesa?
Nós somos invejosos, não somos vigilantes. E cuspimos na rua e deitamos papéis para o chão. No Hospital de São João, no Porto, tenho vergonha de levar um estrangeiro à casa de banho porque os homens não puxam o autoclismo. Se fossemos vigilantes isso não acontecia.

O que é que o irrita na sua área, o que o deixa zangado em Portugal?
A destruição das instituições. Tivemos de nos adaptar a um novo nível de vida, tudo bem. Temos de introduzir mecanismos de poupança e de reorientação estratégica de gastos, muito bem. Mas acho indecente que isso esteja a ser feito de uma forma cega e esteja a pôr em risco coisas que funcionavam apesar de tudo muito melhor que a média. Estou a pensar na saúde, na ciência e de certa maneira no ensino superior. Se é preciso fazer cortes de 40%, vamos reforçar o que tem qualidade e fechar ou reformular o que não tem, e não cortar em todos por igual.

E é fácil saber o que tem e o que não tem qualidade?
É muito fácil, toda a gente sabe isso.

Porque acha que não se faz?
Primeiro, porque temos uma partidocracia que vive enclausurada em si mesma. O poder político não tem nesta altura nenhuma capacidade de exercer de uma forma séria - e isto é verdade para todos os partidos - e classificar ou recompensar/punir as instituições. Temos a tal coisa da vitimização. Sempre que há qualquer intenção de fechar o que quer que seja vem logo um coro de vozes e eles perdem votos. O nosso sistema partidário é uma tragédia. O segundo defeito é que nós próprios, como somos muito individualistas e invejosos, temos uma extrema dificuldade em nos associar e manter algumas destas instituições de bom nível reforçadas. Isso exigiria que os actores se unissem e encontrassem soluções entre si. Não con- seguimos.

O que é que estamos a fazer ao Sistema Nacional de Saúde?
Estamos dar cabo, por exemplo, do Serviço Nacional de Saúde, que tem de ser reformulado, toda a gente sabe. Vamos ver se aguentamos, porque num país pobre, se dermos cabo do SNS, vamos introduzir assuntos de uma gravidade indecente para as pessoas mais frágeis, para os idosos, para as pessoas doentes, para os desempregados. Era preciso que os médicos, os enfermeiros, todos os actores percebessem isto e estivessem dispostos a introduzir alguma racionalidade. Não estão. E depois era preciso que o poder político tivesse capacidade para introduzir os tais mecanismos de regulação de recompensa/castigo, que não tem.

Há comprimidos para isso?
Não. Mas isso é o que o português gosta. Aliás, não é de comprimidos nem de solução intravenosa: prefere pingos. Quando muda o partido no poder, os hospitais mudam as direcções. Não faz sentido. O grande problema em Portugal é que a promiscuidade nos partidos é tão grande que têm a chefiar muitas estruturas públicas gente que é posta lá não pela sua competência mas porque pertence à concelhia ou à distrital. Aqueles a quem chamamos a rapaziada das concelhias, gente horrorosa na maior parte dos casos. De certeza que há alguns bons, mas são raríssimos.

Este governo está doente?
Eu acho que sim.

Qual é o seu diagnóstico? De que doença padece?
Eu penso que a pior doença é a incapacidade de perceber a sociedade e a realidade. Uma doença de isolamento ideológico, que torna os membros do governo insensíveis à realidade exterior. No limite, é uma doença do foro psicológico. Não estão doentes com uma doença crónica, não têm uma doença cancerosa, mas estão doentes com uma doença psicológica que eu acho muito grave, que é a incapacidade de perceber o que os rodeia. Mas não lhe chamaria alienação. Parte deste governo também está enquistado, diz coisas que não fazem sentido. Na minha área acho-os incompetentes, mas também os acho displicentes e amadores. Dizem coisas que não têm a ver com a realidade, há uma dissociação entre a realidade e a percepção da realidade.

Isto é de propósito ou é pouca sorte?
Não sei. Mas há um problema de percepção da realidade que, de resto, tem expressões como aquela de que "o país está melhor, as pessoas é que estão pior". Acho que o governo tem uma doença psicológica. E se a perturbação psicológica é uma deriva ideológica, há de certeza também, aqui para nós, e disso não têm a culpa, um enquadramento europeu e internacional que não é favorável. Ou seja, parte das coisas que este governo está a fazer, qualquer outro governo teria de fazer. O que acho é que outro governo poderia ter mais atenção às pessoas.

Os médicos portugueses são hoje mais ou menos conceituados que há uns anos?
Os médicos tinham grande prestígio e estão a perdê-lo por sua culpa. Há uma mistura muito grande entre actividades públicas e privadas, entre actividades claramente oficiais e semioficiais. Mas é uma profissão que foi proletarizada - estão a pagar oito euros por hora aos médicos, os miúdos fazem noite por meia dúzia de euros por hora. As elites não estão a desaparecer só na classe política. Deixou de ser compensador ser muito bom, muito sério e muito trabalhador. Pior: é quase estúpido. Os smart kids ingleses já não vão para Medicina, nem para Engenharia, vão para a política. Ou para a banca. Estamos a dar cabo das profissões.

Não conseguimos encontrar um apoio na União Europeia?
Não sei. O que sei é que trabalho muito com a República Checa, a Polónia e a Eslovénia e eles são mais educados que nós. Se se puser um problema de competição, eles ganham. A Europa de Leste passou a ser mais um factor de pressão sobre Portugal e agora estamos a competir com a Lituânia, a Letónia, a Estónia e a Bulgária.

Voltando aos cortes... O que cortaria?
No ensino superior temos um exagero de instituições, um disparate e duplicações monstruosas. A primeira coisa seria articular a universidade com os politécnicos, mantendo-os separados mas criando sinergias. Aí poupava imenso. O problema é que teria um desequilíbrio e o interior ia chiar. Mas não tenho alternativa. Não podemos manter artificialmente pólos de ensino superior com a ideia de que esses pólos vão ser o motor do desenvolvimento local. Fica caríssimo e não é verdade.

E na saúde?
É preciso fechar hospitais e aumentar os centros de saúde. Sei que quando escrever isto vai haver gente com vontade de me matar, mas conheço dezenas de cidades do Interior que têm hospitais que não deviam ter para as características que têm. Deviam ter centros de saúde muito bons, centros de saúde capazes de resolver os problemas até certo nível, e depois passar para os hospitais terciários. Depois devíamos ter cuidados paliativos e continuados. Os nossos hospitais deviam ser poucos mas muito bons e só para coisas muito especializadas. Por exemplo, há hospitais que só operam dois ou três cancros por ano e o que sei é que as pessoas que são operadas nesses hospitais são muito menos bem tratadas do que se fossem tratadas num hospital que tem dez ou quinze vezes mais operações. É claro que tem o peso da deslocação, mas vale a pena. As pessoas acham que é uma coisa economicista, mas não é, também tem a ver com a qualidade.

O utente sabe isso?
Não. O utente do que gosta é de ter uma unidade ao pé da porta. Como se fosse possível. E a grande aspiração do político é um tipo de bata branca em cada esquina. Mas não pode ser.

Onde teríamos a ganhar?
Em tudo o que fossem economias por aumento da capacidade de gerir a nossa educação, a nossa saúde, a nossa justiça. Diminuiríamos muito os gastos do sistema de saúde se fossemos mais educados, mais bem comportados do ponto de vista social, se tivéssemos melhores hábitos. Faríamos economias pelo lado da prevenção.

Hoje estamos também a assistir a um novo fundamentalismo...
Que é gravíssimo e tem um toque de novo-riquismo. Uma moda monstruosa, de uma classe média-alta, de pais contra a vacinação. Duplamente estúpido: arriscam-se a ter doenças por não estar vacinados e o argumento de que são doenças já pouco prevalentes é falso porque deixando de vacinar elas reaparecem, como está a acontece com a poliomielite [paralisia infantil]. Outra coisa que me assusta são os partos em casa, na água. É um retrocesso ao século xix. De vez em quando dá chatices e as crianças ficam com paralisias. Tem sido horrível. Se acontecer num hospital, safam--se. Se acontecer num regato, em casa ou num spa, morrem ou ficam parvos. Há um novo-riquismo em relação à saúde e à alimentação que é a ausência da ligação à terra, e isto não acontece num país dito desenvolvido.

Falou em punição. Cada vez mais há erros médicos, mas continuam difíceis de punir. Porquê?
Inaceitável. Mas temos de distinguir o erro negligente, que tem de ser punido de forma exemplar, e o erro médico por pouca sorte. Mas, de novo, é preciso ter mecanismos de avaliação que não sejam corporativos, e isso é que é difícil. Não podem ser os pares, numa sociedade com muito pouca tradição de avaliação e com muitos pouca independência.

A saúde devia ser privada ou pública?
Deve haver pública e deve haver privada. Mas tenho a certeza que quem está na pública e é director de serviço deve ser proibido de fazer privado. Admito que haja pessoas em part-time que podem estar num lado e noutro desde que não tenham funções de chefia. Quer uma, quer outra têm de ter mecanismos de gestão que nos permitam comparar. Isto é: acho indecente que o Estado, que tem, apesar de tudo, um serviço fora de série, não dê autonomia de gestão às suas unidades e depois as responsabilize. Mas acho obsceno que um médico esteja de manhã num hospital com listas de espera sem ver um paciente e vá vê-lo à tarde na sua clínica. Isso era cadeia.

Escreveu recentemente um livro sobre o cancro. Não existem afinal muitas estatísticas sobre a doença em Portugal. Porquê?
Porque não é compensador e não é pago. Isto foi resolvido pelos países do Norte. Toda a gente que tem cancro na Noruega vai ao instituto do cancro. Eles investiram de cima para baixo, porque queriam conhecer essa realidade e não dependem da boa vontade dos agentes. Lá está a hierarquia. Portugal consegue usar essas estatísticas extrapolando. Do ponto de vista da incidência isso é seguro, temos hábitos mais ou menos iguais na Europa.

O cancro é uma doença muito menos hereditária do que as pessoas julgam...
A hereditariedade conta muito pouco: 5%. 95% é comportamento puro e duro. Depois, se a pessoa tiver tido um cancro, a possibilidade de voltar a ter é maior do que a de quem nunca teve nenhum mas, de novo, já se sabe que ou se deixou engordar, ou fumou, ou fez disparates alimentares... Não tenhamos dúvidas sobre isto.
Depois há outra coisa que não é comportamental, é que estamos a ficar muito mais velhinhos. E isto é uma mistura explosiva. Temos comportamentos que são uma selvajaria e vivemos muito mais tempo. Mas a prevenção justifica que as pessoas que a fazem são as que quando têm um diagnóstico positivo numa fase mais precoce vencem o cancro com mais facilidade.

Qual a taxa média de cura do cancro?
É de 60%. Curam ou ficam com a doença controlada. E há pessoas que vêm a morrer de outra coisa mas morrem com o seu cancro.

Quais são os cancros mais difíceis?
O cancro do pâncreas, que não conseguimos prevenir, o do sistema nervoso central, que não sabemos quem tem ou porque tem, e que são cancros muito mortais, o cancro do fígado e o cancro do estômago. A cura é inferior a 5%. Há um elemento de pouca sorte, que é a pessoa fazer tudo como manda o figurino e ter um tumor cerebral. Está tramada. Mesmo assim, 60% a 70% de cura para o cancro da mama, para o cólon, para a próstata, de mais de 90% para os cancros do testículo ou da tiróide, já é muito bom.

Sobre a decisão de mexer ou não, de tratar ou deixar ficar...
Não sei. A cirurgia, a radioterapia cura sempre numa fase inicial. Depois temos uma fase intermédia em que não há certeza, mas tratamos por excesso. Aí os doentes devem ser estimulados a querer ser tratados, just in case. Depois há os casos, 30% a 40%, em que temos quase a certeza que a coisa não vai correr bem. Então vai depender da idade do doente, de ser homem ou mulher, de o cancro ser numa área em que a pessoa vai ter uma vida desgraçada do ponto de vista da sobrevivência. Aí não sei como se resolve, tem de ser a própria pessoa a decidir. O doente tem de estar informado, o médico tem de dizer a verdade e dar toda a informação e o doente tem de poder pedir uma segunda opinião.
Isto é assim quer o médico goste quer não goste. Tem de se aguentar.



Isabel Tavares
In ionline de 2 de Agosto de 2014



                                            Lola


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