terça-feira, 30 de setembro de 2014

Detesto Filosofia

     





Um dos mais belos textos que li , ao longo da vida!
Um dos melhores professores que tive na Faculdade de Letras da Universidade do Porto!
Saudades das suas aulas, Prof. Levi!


DETESTO FILOSOFIA!



Detesto Filosofia! São horas e horas dum lado para o outro, ninguém se entende, não sabemos em que é que ficamos e ainda por cima conta para a média, a gente nem foi ouvida nem achada, "aquilo" devia era ser de "opção" e só para aqueles que querem seguir "isso", o que quer que seja essa desgraça que nos caiu em cima a partir do 10º ano...

     A relação entre professores e alunos de Filosofia é como aqueles casamentos de há muito tempo, "arranjados" à nascença para os mais diversos fins mas que não passavam, pela certa, pela paixão dos "noivos"! Condenados a coabitar num T1, mobilado à pressa (há quem lhe chame Sala de Aula), como Egas Moniz, com corda ao pescoço, lá entram arrastando a alma os actores da tragicomédia da Filosofia. Estudantes na expectativa, professores que têm de "motivar" a ver se "aquilo" chega a algum sítio, uma enorme sensação de mal-estar, quantas vezes, lá no íntimo, amaldiçoando-se mutuamente, uns pensando que esta "cambada" está insuportável, outros remoendo sobre que mal teriam feito para "gramar" este «gajo/gaja»!
     E, de certo modo, todos têm boas e indiscutíveis razões, pois a Filosofia continua a fazer de conta que é uma "disciplina" como as outras e arranjou com isso um belo sarilho. Pergunta-se "o que é a Filosofia" e caem em cima umas dúzias de respostas e "o cliente" que escolha como se fosse um catálogo da "La Redoute", com a desvantagem para a Filosofia que o "comprador" deve justificar criticamente a resposta, enquanto que na outra hipótese basta passar cheque ou indicar o número do Cartão Visa.
     Ora a Filosofia não é uma "disciplina", vive entalada entre as Religiões e as Ciências, chegando ao cúmulo de andar sempre a pedir desculpa por estar a incomodar. E é que incomoda mesmo, começando desde logo, em brilhante jogada estratégica, por incomodar-se a si própria, andando de chapéu na mão ou de nariz empinado, conforme o pobre professor se sentir o mais desgraçado dos mortais ou o mais incompreendido dos Profetas.
     Oito e meia, nove e meia, as horas não passam, nunca mais toca a campainha e ainda tenho de lhes dizer que o Imperativo Categórico de Kant é muito importante ou que a "dúvida hiperbólica" de Descartes era o diabo se não fosse a existência de Deus. Que vida a minha que bem precisava que o Deus de Descartes, de Abraão e Jacob me tirasse daqui e me levasse para longe, me aliviasse das resmas de fotocópias todas sublinhadas, dos esquemas de Hegel e da última circular do Ministério cheia de carimbos e assinaturas, é preciso dar parecer urgente e eu que ainda tenho de ir ao supermercado e buscar os miúdos ao infantário.
     Ali à frente, a Turma, se estiver em bom dia lá vai ouvindo o sermão. tirando um apontamento ou divagando pelos antípodas enquanto não chega o Natal, ou a Páscoa ou seja lá o que fôr que acabe com isto. Se a Filosofia nas escolas tivesse as potencialidades da TvCabo, garanto-vos que já a audiência tinha mudado de canal...
     A verdade é que o filosofar e a filosofia estão desajustados dos bio-ritmos efémeros dos nossos dias, da vertigem MTV, "placards", promoções, "sites", CNN's que martelam os miolos dum pobre mortal até ao enjoo. Sepultados no bairro-de-lata da informação, comemos imagens e acabamos por ficar como "elas", bonitinhos mas "planos"! Isto é, se olhar "para trás" ou "para dentro" não está nada, falta-nos fundo, terra, densidade, mistério.
     A Filosofia precisa que os seus ouvintes vão antes a uma cura de águas, que fujam da CRIL dos IP'S ou das VCI'S, que desliguem o motor e que estejam quietos e calados para ver se ainda distinguem o dia da noite, se escutam o respirar do mundo e se alguma coisa ainda os espanta!
     Professores e alunos de Filosofia estão metidos no caldeirão da História e os seus destinos cruzam-se, a maioria das vezes, sem sequer se tocarem a não ser, aqui e além e por razões que nada têm a ver com "programas", pedagogias e estratégias de aprendizagem.
     Ao "querer ser" uma disciplina a Filosofia só terá hipótese de sobreviver se "lá dentro" não se comportar como tal. Assuma que não tem "objecto" nem "método", a não ser "à força" e aceite antes que é espaço duma vocação para Perguntar só porque "não sabemos".
     Perguntem até onde vão as Estrelas, de que falam as baleias, por que não cai a Lua, por que temos medo do escuro, porque nos comovemos quando uma velha árvore é sacrificada ao asfalto. E deixem que dessas perguntas nasçam outras, e mais outras e depois outras ainda!
     Acreditem que, se não formos frenéticos, quero já, quero já, temos com que nos divertir para o resto da Vida.


Porto, Novembro de 2000



[ Nota: este pequeno texto foi pensado para publicar numa colectânea organizada por professores do "Grupo de Filosofia" do Colégio de S. Gonçalo - Amarante. Mas tinha em mente estudantes que chegam à Filosofia no 10ª ano e professores deste "estranho território". O que aqui digo, penso-o para todos, estudantes e docentes, qualquer que seja o patamar em que a Filosofia é ensinada/aprendida. Só que, naturalmente, os desajustamentos podem tornar-se mais intensos em situações em que os estudantes "têm de frequentar Filosofia", quer gostem, quer não gostem... 
Presume-se que, em percentagem significativa, quem vem ao encontro da Filosofia numa Universidade, escolheu o curso como 1ª opção.]




In "Os herdeiros de Sócrates"
Prof. Levi Malho

Eu escolhi o curso de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto como 1ª e única opção e ...continuo orgulhosa da minha opção!


Acerca da sua obra:



http://repositorio-aberto.up.pt/browse type=author&value=Malho%2C+Levi+Ant%C3%B3nio+Duarte























Lola



1 comentário:

  1. Muito bom reencontrar o professor Levi e por acréscimo relembrar o Francisco Sardo e Maria Manuel Araújo Jorge

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