Médicos
ou pais… quem tem a última palavra no tratamento de uma criança?
Os pais de Ashya e de Safira
cruzaram-se com os médicos numa zona cinzenta. Quando não há acordo sobre os
tratamentos de uma criança, a quem cabe a última palavra? Especialistas ouvidos
pelo PÚBLICO dizem que as polémicas são pouco comuns e que devem ser analisadas
caso a caso. Mas a legislação nem sempre dá resposta.
·
Ashya King tem cinco anos, um tumor cerebral e vive no Reino Unido. Safira
Mateus tinha quatro quando em 2010 lhe foi diagnosticado um cancro renal, e foi
encaminhada para o Instituto Português de Oncologia de Lisboa. Além dos tumores
em idade pediátrica, estas duas crianças têm também em comum uma decisão
polémica: em ambos os casos os pais procuraram tratamentos alternativos,
tiveram dificuldade em que conseguir a chamada “alta contra parecer médico”,
por estarem em causa menores e não adultos, mas acabaram por ultrapassar os
obstáculos judiciais. O principal problema da legislação está nas chamadas
“zonas cinzentas”, defendem os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO.
A alta contra a vontade do médico está prevista na legislação portuguesa e
mesmo em termos da codificação interna dos hospitais, que têm de referir as
razões e destino após a alta – esta é uma das hipóteses. A própria Carta
dos Direitos do Doente Internado refere, num ponto intitulado “O doente internado
tem direito à sua liberdade individual”, que o doente “pode, a qualquer
momento, deixar o estabelecimento”, isto desde que tenha sido “informado dos
eventuais riscos que corre”.
“Este exercício de liberdade individual requer, no entanto, algumas
formalidades. O doente tem de ser informado dos riscos decorrentes da sua
decisão e terá de assinar um termo de responsabilidade pela sua alta”, lê-se no
documento. Há excepções, mas sobretudo relacionadas com doenças infecciosas e
mentais. Numa carta semelhante, mas sobre as crianças e adolescentes até aos 16
anos, nada é referido sobre este ponto em concreto.
O problema é que a questão é mais linear no caso dos adultos. “No caso das
crianças, regra geral, a decisão compete aos pais, mas a lei protege o
interesse dos menores e essa alta só existe se não colocar no imediato a vida
em risco, mas não há uma regra clara. É visto caso a caso. A meu ver e bem,
costuma imperar a vontade dos pais desde que não haja risco no momento”,
salienta ao PÚBLICO o presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências
da Vida (CNECV), Miguel Oliveira da Silva, que ressalva que as regras
existentes estão sobretudo pensadas para os casos de recusa de qualquer
tratamento e não para quando os responsáveis legais querem antes um protocolo
distinto – as “zonas cinzentas”.
O tema das altas das crianças voltou a ser discutido quando o caso
de Ashya se mediatizou na última semana, depois de os pais do menino terem optado
por retirá-lo do hospital onde estava internado no Reino Unido, mesmo sem terem
tido luz-verde dos médicos. A ideia era levá-lo para Praga, na República Checa,
para submeter a criança a um tratamento com raios de protões que não era
disponibilizado no Serviço Nacional de Saúde inglês, o NHS. Do lado do hospital
os médicos diziam que a eficácia do tratamento não estava demonstrada no tumor
do menino, os progenitores garantiam ter dados contrários.
Os pais de Ashya pensaram encaminhar-se primeiro para França, mas acabaram
a fugir para Espanha. As autoridades inglesas solicitaram a sua detenção e
extradição. Mas, depois de várias intervenções, nomeadamente com o
primeiro-ministro, David Cameron, a mostrar-se solidário com os pais, as
acusações por suspeita de maus tratos foram retiradas e o casal acabou por ser
libertado. A guarda da criança foi temporariamente retirada aos pais, mas esta
segunda-feira as autoridades judiciais de Portsmouth decidiram numa audiência
autorizar que seguissem para Praga.
A situação de Ashya tem desencadeado algumas discussões em termos do
direito da saúde e da bioética. A quem cabe a última palavra no tratamento de
uma criança? Aos pais ou aos médicos? As opiniões nem sempre coincidem, e a
resposta mais consensual é “depende” – pois deve ser sempre o interesse da
criança a prevalecer. Ao jornal ABC, Arthur Caplan, especialista em bioética da
Universidade de Nova Iorque, defende que este caso foge à situação mais comum,
em que “há um tratamento comprovadamente eficaz que os pais recusam” colocando
em risco a vida da criança. Caplan salienta que os progenitores apenas
defendiam outro protocolo, acrescentando que, não sendo uma mera recusa de
tratamento, os pais devem poder optar por seguir para Praga.
O caso português de Safira
Miguel Oliveira da Silva recorda o caso de Safira, a menina portuguesa a quem em 2010 foi diagnosticado um cancro renal, um tumor de Wilms, como inédito nesta “zona cinzenta”. A criança foi operada no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa depois de ser submetida a vários ciclos de quimioterapia. Depois da cirurgia os médicos propuseram que Safira fizesse mais tratamentos adjuvantes, isto é, só para prevenir que o cancro regressasse. Só que os pais da menina encontraram na Alemanha uma resposta que consideraram mais promissora para esta etapa final do tratamento de Safira: as células dendríticas.
Miguel Oliveira da Silva recorda o caso de Safira, a menina portuguesa a quem em 2010 foi diagnosticado um cancro renal, um tumor de Wilms, como inédito nesta “zona cinzenta”. A criança foi operada no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa depois de ser submetida a vários ciclos de quimioterapia. Depois da cirurgia os médicos propuseram que Safira fizesse mais tratamentos adjuvantes, isto é, só para prevenir que o cancro regressasse. Só que os pais da menina encontraram na Alemanha uma resposta que consideraram mais promissora para esta etapa final do tratamento de Safira: as células dendríticas.
O problema, explica ao PÚBLICO Gabriel Mateus, pai de Safira, agora a fazer
nove anos e livre do tumor, é que o IPO tinha outro entendimento e
desencadeou-se uma batalha legal, com o tribunal a decidir entregar a guarda da
menina ao hospital. “Nós queríamos apenas procurar outras formas de obter o
mesmo fim mas sem os mesmos efeitos secundários. O procedimento do IPO e do
tribunal foi bastante lamentável, não por terem outra posição mas porque nem
fomos ouvidos no processo”, relata Gabriel Mateus, que lamenta ainda “a colagem
que se tentou fazer de que a nossa preocupação não era racional mas sim
subjectiva e do foro religioso ou filosófico”.
Para Paula Lobato de Faria, professora da Escola Nacional de Saúde Pública
da Universidade Nova de Lisboa, as lacunas legais estão na origem de casos como
o de Safira. De acordo com a especialista em Direito da Saúde e Bioética, a
legislação que deveria estabelecer as regras sobre menores carece de
regulamentação. Em Março, foi publicada a Lei
n.º 15/2014, sobre os direitos e deveres dos utentes dos serviços de saúde e que
actualizou matérias que não eram revistas desde a Lei de Bases da Saúde de
1990. No Artigo 11.º, sobre menores e incapazes, diz-se que podem “recursar
assistência, com observância dos princípios constitucionais” mas a sua
concretização é deixada para uma fase posterior.
Ainda assim, Paula Lobato de Faria recorda um parecer “fundamental”
da Procuradoria-Geral da República, feito em 1991, na sequência de dúvidas
levantadas pelo Hospital de Guimarães. Nas conclusões do parecer, é defendido
que o poder parental deve ser sempre “exercido altruisticamente no interesse do
filho, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objectivo
primacial de protecção e salvaguarda dos seus interesses”. Desta forma, pode
ser decidida uma “inibição do poder parental” ou uma limitação do mesmo sempre
que a “segurança, a saúde, a formação moral ou a educação de um menor se
encontre em perigo”.
Por outro lado, “ao médico cumpre o dever de esclarecer os pais - e o
menor, em função da sua idade e capacidade de discernimento -, prestando-lhes a
gama de informações que os habilite a uma tomada de decisão consciente, no
interesse do filho”, lia-se no parecer, que dizia claramente que deve dar-se
“prevalência à decisão médica” se houver “perigo para a vida ou grave dano para
a saúde do menor”.
Um problema de comunicação
No caso de Safira, com a publicitação da situação, a família acabou por conseguir avançar para o procedimento que queria, mas acabou por criar oProjecto Safira, dedicado às escolhas informadas no tratamento do cancro e que pretende ainda conseguir que o enquadramento legal seja revisto para que os pais exerçam o “direito de participar na escolha do tratamento a seguir”.
No caso de Safira, com a publicitação da situação, a família acabou por conseguir avançar para o procedimento que queria, mas acabou por criar oProjecto Safira, dedicado às escolhas informadas no tratamento do cancro e que pretende ainda conseguir que o enquadramento legal seja revisto para que os pais exerçam o “direito de participar na escolha do tratamento a seguir”.
Até agora, Gabriel diz que não tiveram conhecimentos de mais casos como o
de Safira ou de Ashya. Mas alerta para a importância de se trabalhar a
comunicação na área da saúde para “contrariar o modelo social” em que “a
participação do doente é incómoda, seja em adultos ou em crianças”. “É absurdo
assistirmos a uma mobilização policial para prender os pais de Ashya como se
estivessem a capturar criminosos. No fundo estão a ir atrás de um indivíduo que
está a ser pai, a escolher o que acha melhor para o filho”, justifica o pai de
Safira.
Apesar da polémica, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética
acredita que “estas zonas cinzentas são raras, uma excepção”. “Em Portugal o
enquadramento ético e jurídico é relativamente claro, mas é natural que no
futuro surjam evoluções com a dimensão social que vem dos meios anglo-saxónicos”,
explica Rui Nunes. Até porque, sublinha, muitas das normas foram criadas para
dar resposta a situações como as recusas de transfusões de sangue por motivos
religiosos, como é o caso das Testemunhas de Jeová, e agora a evolução da
medicina traz outros desafios.
O também médico lembra que a protecção vigora até aos 16 anos, fazendo-se
uma distinção entre crianças e adolescentes, “ainda que sempre que o doente
tenha discernimento isso seja considerado” e possa alterar o curso do
tratamento. “Em qualquer caso a preocupação é defender o melhor interesse da
criança e os médicos repousam no bom-senso e esclarecimento dos pais, sendo que
há uma cultura de autonomia familiar. Quando há problemas, ou seja, quando não
é defendido o melhor interesse, tanto os médicos como o hospital podem recorrer
aos tribunais”, acrescenta Rui Nunes, que assegura que na avaliação dos casos
impera o “bom-senso”, pelo que “o estabelecimento de uma relação empática com
os doentes e a família é fundamental, o que no actual clima adversativo com
consultas de seis ou sete minutos não é possível e pode levar a casos de
litígio desnecessários”.
“O caso de Ashya acabou por entrar no campo do direito criminal por ter
sido tirado à força do hospital, o que levantou dúvidas sobre as verdadeiras
intenções dos pais. Mas sempre que seja para seguir outro tratamento credível
deve imperar a vontade dos pais, sendo que são questões complexas que surgem
muitas vezes ex novo, isto é, não se previram”, completa Paula
Lobato de Faria. Sobre a realidade portuguesa, a professora aponta como
problema o facto de “não sermos bem informados da consequência da recusa do
tratamento ou mesmo dos benefícios de o fazer”, pelo que considera que esse
campo pode ser melhorado.
Haverá sempre espaço para "zonas cinzentas"
neste tipo de questões complexas mas há coisas simples que podiam estar preto
no branco.
In Publico
09/09/2014 -
07:59
Pais de criança com tumor cerebral libertados em
Madrid
Ashya poderá vir a receber um
tratamento com protões na República Checa, depois de regressar ao Reino Unido.
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Os King receiam que os tratamentos que o filho recebeu ou venha a receber em Inglaterra piorem o
seu estado de saúde MARCELO DEL POZO/REUTERS |
Foram libertados os pais da criança britânica de cinco anos que tem um
tumor cerebral e que tinham sido detidos esta semana em Espanha após terem
retirado, sem autorização médica, o filho de um hospital em Inglaterra. A
libertação ocorreu depois de as autoridades britânicas terem anunciado que o
pedido da extradição do casal para o Reino Unido foi retirado.
Na última quinta-feira, Brett e Naghemeh King retiraram o filho Ashya do
hospital de Southampton, onde a criança se encontrava internada, sem que
tivessem permissão clínica para o fazer. Inicialmente a família tinha pensado
seguir para França, mas acabou por se dirigir para Espanha. No Reino Unido era
lançada uma campanha pela polícia para encontrar os King devido à preocupação
com o estado de saúde de Ashya.
O casal, que se encontrava alojado num hotel em Benajarafe, Málaga, com os
seus seis filhos, acabou por ser detido no domingo.
Ashya foi hospitalizado em Málaga, onde permanece até hoje.
Um dia depois um juiz da Audiência Nacional espanhola decidiu que os King
deveriam permanecer em
detenção judicial por período máximo de 72 horas. Na noite desta terça-feira, o casal
foi libertado, depois de a justiça britânica ter retirado as acusações contra
os King de suspeita de maus-tratos a um menor de 16 anos e um pedido de
extradição.
A intervenção do primeiro-ministro britânico, David Cameron, que desde
início manifestou apoio aos pais, terá exercido a pressão necessária para este
desfecho. Cameron defendeu que o casal deveria reunir-se com o filho o mais
rapidamente possível e que a criança receba o melhor tratamento, “seja no Reino
Unido ou noutro lugar”.
A retirada do hospital de Ashya na semana passada tinha como objectivo
levar a criança até Praga, na República Checa, para ser submetida a um
tratamento com raios de protões. À saída do estabelecimento prisional de Soto
del Real, em Madrid, os King explicaram que o tratamento previsto para Ashya no
Reino Unido irá levar o filho a um “estado vegetativo”.
“Os médicos sabiam que queríamos sair [do hospital] mas não quiseram
ajudar-nos”, disse Brett King aos jornalistas. Danny King, um dos seis filhos
do casal, indicou à Rádio BBC que, neste momento, “todas as opções estão em
aberto”. “Penso que os meus pais vão continuar a querer ir para Praga”,
acrescentou.
Na unidade de tratamento checa, o médico Jiri Kubes, citado pela imprensa
britânica, adiantou que a pode ser criado um tratamento adaptado a Ashya, mas
que antes da criança poder vir a ser submetida a qualquer terapia esta deverá
voltar a ser internada num hospital em Inglaterra, onde é esperado que seja
submetida a um tratamento de quimioterapia durante algumas semanas.
Naghemeh King disse emocionada após a sua libertação que apenas quer voltar
a tratar do filho, como fazia em Southampton. “Apenas quero humedecer-lhe a
boca porque ele não consegue beber, quero lavar-lhe os dentes, quero virá-lo a
cada 15 minutos porque não se pode mexer”. Esta tarde, os King estiveram com o
filho no hospital espanhol.
A guarda de Shya foi retirada aos seus pais depois de estes terem sido
detidos. Nenhuma decisão relativa à criança pode ser tomada sem a ordem das
autoridades judiciais de Portsmouth. Na próxima segunda-feira haverá lugar a uma audiência em que os
King poderão expor os seus argumentos para que o filho possa receber tratamento
em Praga.
Notícia actualizada às 16h59: Acrescenta que King foram autorizados a visitar o
filho no hospital de Málaga.
In Publico,
03/09/2014 - 12:23
(actualizado às 16:59)
Uma questão ética profundamente reflexiva a abrir para vàrias questões filosoficas!
Quais?
Lola
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