O Banquete, de Platão
Em O banquete, Platão define o amor como a junção de duas partes que se completam, constituindo um ser andrógino que, em seu caminhar giratório, perpetua a existência humana. Esse ser, que só existe no mundo das idéias platônico, confere à sua natureza e forma uma espécie peculiar de beleza: a beleza da completude, do todo indissociável, e não uma beleza que simplesmente imita a natureza. Assim, temos em Platão, uma concepção de belo que se afasta da interferência e da participação do juízo humano, ou seja, o homem tem uma atuação passiva no que concerne ao conceito de belo: não está sob sua responsabilidade o julgamento do que é ou não é belo. A dialética de Platão aponta para duas direções: o mundo das idéias, num plano superior, do conhecimento, que é, ao mesmo tempo, absoluto e estático; a outra direção segue para o mundo das coisas, dos humanos. Este, de aparência sensível, é constituído pela imitação de um ideal concebido no mundo das idéias: portanto, num processo de cópia. Gilles Deleuze aponta para uma terceira possibilidade que quebra a dicotomia platônica: a cópia fiel e o simulacro, não mais tido como degenerescência da semelhança ao mundo das idéias, um mero fantasma. Para os gregos, o belo artístico situava-se no embate entre as boas cópias e o simulacro.
O
Banquete não pode ser considerado um diálogo;
tende muito mais para um duelo no qual os participantes pretendem fazer, cada
qual, o melhor discurso sobre a amizade. O início da obra lembra-nos outras de
Platão: alguns estão em caminho para a cidade quando são interrompidos por
outros e se colocam a discutir determinado assunto. Desta mesma forma acontece
em A República (Sócrates e Glauco estão descendo do Pireu e
terminam na casa de Céfalo) e no Fedro (Fedro, depois de ouvir
Lísias, encontra Sócrates no caminho para a cidade e se colocam a debater o
discurso retórico de Lísias). No Banquete, Apolodoro e seu
Companheiro (a obra não revela o nome dele) estão indo de casa, em Falero, para
a cidade quando são interrompidos por Glauco:
Recentemente,
quando eu subia de casa, em Falero, para a cidade, um conhecido que me tinha
visto por de trás, gritou de longe, em tom de brincadeira: Ó cidadão de Falero,
de nome Apolodoro! Por que não esperas? Então, me detive para esperá-lo. E ele:
Apolodoro, me falou, andava à tua procura, porque desejo obter informações
precisas a respeito da conversa de Agatão com Sócrates, Alcibíades e os demais
convivas do banquete dado por ele, em que proferiram vários discursos sobre o
amor. Aristodemo havia estado presente
no banquete no qual se deu a discussão a respeito da amizade. Esse contou o que
ali se passara para Apolodoro e esse, por último, se empenha em relatar o
acontecido na presença do seu Companheiro e de Glauco.
Assim como
em A República, O Banquete tem lugar certo e público identificável:
ocorreu na casa de Agatão, discípulo de Sócrates. Lá discursaram sobre o amor,
ou sobre a amizade (philia), esses dois, além de Fedro,
Pausânias, Erixímaco (o médico) e Aristófanes (o poeta).
O que
realmente se passou na casa de Agatão começa a ser relatado por Apolodoro em
174a. Sócrates chega por último, quando todos já estavam acomodados e o
banquete já havia se iniciado, estando pelo meio (cf. 175c). Frente ao
banquete, Pausânias lembra que deveriam beber com moderação: faz referência ao
dia anterior, no qual havia bebido exageradamente e ficado abalado fisicamente.
Os discursos
sobre o amor iniciam com Fedro: "iniciou o seu discurso [Fedro] declarando
que Eros era uma divindade poderosa e admirável, tanto entre os homens como
entre os deuses, por várias razões, mas, antes de tudo, pelo nascimento."
(178a) Fedro é o primeiro, e por isso pai do discurso, a falar sobre o deus
Eros: ele condena o ofício dos poetas que têm por missão cantar hinos aos
deuses mas se esquecem de Eros. Fedro, no seu discurso, faz a justificação
moral de Eros, mas não investiga a fundo sua essência e suas formas. De
qualquer forma, é devido à fala desse discípulo de Sócrates que toda a
discussão se inicia. Com o intuito de elevar Eros, Fedro encerra seu discurso
dizendo que esse é o deus mais antigo, mais respeitável e o mais
"autorizado" (cf. 180b) a levar o homem à posse das virtudes e da
felicidade, nesta vida e depois da morte!
Sucede Fedro
no discurso em defesa de Eros outro discípulo, agora Pausânias: censura a falta
de precisão do discurso anterior e tenta uma definição concreta. Para ele,
existem dois tipos de Eros para os homens, um vulgar e repudiável, outro sendo
uma força educadora.
O Eros usual
e corrente, o instinto e irrefletido e vulgar, é vil e repudiável, porque tende
à mera satisfação dos apetites sensuais; em contrapartida, o outro é de origem
divina e o impulsiona o zelo de servir ao verdadeiro bem e à perfeição do
amado. Este segundo Eros pretende ser uma força educadora, não só no sentido
negativo de desviar os amantes das ações vis, o que o discurso de Fedro realça,
mas também em toda a sua essência, como força que serve ao amigo e o ajuda a
expandir a sua personalidade. (JAEGER, 2001, p. 727) O amor para Pausânias é
sinônimo de liberdade para o homem. O amante faz coisas para o amado que
escravo algum aceitaria fazer, tal como se jogar no chão ou se deitar na porta
da moradia do amado. O amor é louvável, que denota a liberdade do indivíduo em
fazer ou não determinadas coisas e, segundo Pausânias, é ratificado pelas leis,
como ele mesmo nos diz:
O amante faz
tudo isso [serviços para o amado] com certa graça, o que lhe é permitido pela
liberdade de nossos costumes, sem incidir na menor censura de ninguém, como se
se tratasse de um ato louvabilíssimo. E o mais de admirar é que, no dizer do
povo, somente o amante obtém perdão dos deuses, em caso de perjuro. Não há
juras de amor, dizem. Desse modo, tanto os deuses como os homens concedem plena
liberdade a quem ama, o que nossas leis confirmam. As atitudes de quem ama não o faz parecer ridículo e, se em agressão
aos deuses, é logo perdoado pela sua condição de amante. O amor aproxima o
sujeito das virtudes.
Assim finda
Pausânias e, de acordo com a disposição dos homens no banquete e da forma
organizada que ia seguindo a discussão, seria a vez de Aristófanes. Mas esse se
encontrava em soluços e passou a palavra para o próximo, Erixímaco. Em seguida,
a vez de discursar voltaria para Aristófanes.
O médico
Erixímaco propõe ao amigo em soluço três "remédios" para o problema:
1. Que prenda
a respiração por um momento;
2. Se não
resolver, que gargareje um pouco de água;
3. Se mesmo
assim não resolver, que cheire algo que irrite o nariz. Assim, repetindo essa
etapa por duas vezes, Erixímaco garante que o soluço, por mais forte que seja,
passará.
É
interessante observar a aplicação da medicina na época de Sócrates e de se
perceber o interesse de um médico pela filosofia e pelas idéias de Sócrates.
O discurso de
Erixímaco é aquele que transpassa o homem e atinge a natureza. Com a visão de
um médico, visão naturalista, Eros aparece aqui como um deus poderoso,
princípio e devir de todo o físico, "como potência criadora daquele amor
primogênito que tudo anima e penetra, com o seu ritmo periódico de pleno e de
vazio." (JAEGER, 2001, p. 730)
Erixímaco vê
a existência de um Eros bom e um ruim. É o Eros bom que promove o bem-estar e a
harmonia, estando em todas as esferas do cosmo e das artes humanas. Ele compara
a medicina e a música: a primeira deve fazer existir a harmonia entre as forças
físicas antagônicas e segunda deve combinar tons altos e baixos para formar uma
sinfonia. A idéia de harmonia, tão presente em A República, aparece aqui
novamente, até mesmo quando o médico grego diz que o homem deve sim consentir o
prazer, mas não deve se deixar corromper por esse.
Findada a
fala do médico Erixímaco, Aristófanes já tem por cessado o seu soluço e começa
a expor o que tem a falar sobre o amor.
O discurso do
poeta Aristófanes é menos extenso que o do Erixímaco, mas maior que o de Fedro.
Percebe-se que a discussão vai avançando e se aproximando de definições mais
claras para o que seria o amor, ou a amizade, ou Eros. Para Aristófanes, Eros é
um anseio, uma busca metafísica do homem por uma totalidade do Ser, inacessível
sempre à natureza do indivíduo. Uma das coisas que revela isso é a saudade dos
amantes que desejam não se separar em tempo algum: não se trata somente de algo
corporal, mas de algo que une as suas almas ou, dizendo de outra forma,
complemento que uma alma busca na outra. Diz-nos Aristófanes:
Quando
acontece encontrar alguém a sua metade verdadeira, de um ou de outro sexo,
ficam ambos tomados de um sentimento maravilhoso de confiança, intimidade e
amor, sem que se decidam a separar-se, por assim dizer, um só momento. Essas
pessoas, que passam juntas a vida, são, precisamente, as que não sabem dizer o
que uma espera da outra. [...] E a razão disso é que primitivamente era
homogêneo. A saudade desse todo e o empenho de restabelecê-lo é o que
denominamos amor. Não se deve esquecer que
Aristófanes é poeta e apresenta uma visão mais romantizada da definição de
Eros, de amor e amizade. Ele quer deixar evidente que não se trata de apenas
uma conexão corporal, muito mais de essência e de complementaridade.
Não é,
evidentemente, a união física que faz com que um sinta um prazer tão grande com
a presença do outro e a ela aspire com tanta força, mas é indubitavelmente uma
coisa diferente o que a alma de ambos quer, uma coisa que ela não pode exprimir
e que só palpita nela como obscura intuição do que é a solução do enigma da sua
vida.
Aristófanes
termina seu discurso sobre o amor de forma belíssima, profetizando que o homem
só terá uma vida feliz se tomado por Eros:
Falo em tese,
tanto do homem como da mulher, para afirmar que nossa espécie só poderá ser
feliz quando realizarmos plenamente a finalidade do amor e cada um de nós
encontrar o seu verdadeiro amado, retornando, assim, à sua primeira natureza. Terminado Aristófanes, o leitor tem pela frente dois discursos: o de
Agatão e Sócrates. Esses dois começam a discutir para saber quem vai falar
primeiro. Sócrates não perde a oportunidade para lançar sua ironia: diz ter uma
posição temerosa, falar sobre o amor depois do belo discurso que provavelmente
Agatão proferirá. Fedro reorganiza o banquete (a ordem dos discursos) e coloca
Agatão para discursar.
Diz ele ser
necessário tratar primeiro da natureza do deus e para depois tratar de seus
benefícios; Eros é o deus mais bem-aventurado, o mais belo e melhor. O discurso
de Agatão é o menos psicológico, o menos relacionado com a alma. Ele limita-se
a descrever Eros e suas características. Jaeger muito bem resume o discurso de
Agatão sobre Eros:
Conforme
Ágaton o descreve, Eros é o mais feliz, o mais formoso e o melhor de todos os
deuses. É jovem, fino e delicado, e só mora em locais floridos e perfumados.
Sobre ele nunca põe as mãos a coação, pois o seu reino é o da vontade pura e
livre. Possui todas as virtudes: a justiça, a prudência, a bravura e a
sabedoria. É um grande poeta e ensina os outros a sê-lo. Desde que Eros pisou o
Olimpo, o trono dos deuses passou de terrífico a belo. Foi ele quem ensinou à
maioria dos imortais as suas artes. E o entusiasta adorador do deus de Eros,
hino capaz de competir com qualquer hino em verso, tanto pelo equilíbrio
harmônico da composição como pela sonoridade musical.
O grande
momento do Banquete, e talvez o mais esperado, é quando Sócrates passa a
discursar sobre o amor. Para ele, ao contrário de Agatão, Eros não é o próprio
belo, mas aspira-o, tem o desejo de possuir algo. Lembra que quem ama deseja
possuir aquilo que ama.
Sócrates faz
uso do mito de Diotima: segundo ele, em determinado tempo, havia perguntado à
profetisa Diotima, de Mantinéia, coisas sobre Eros. Isso revela que o discurso
de Sócrates aparece não como uma sabedoria dele, mas como uma verdade que ele
desvendou. De acordo com esse mito, Eros é filho de Poros (riqueza) e de Penia
(Pobreza). Isso coloca Eros em uma posição intermediária: ele não é nem feio e
nem belo, nem participa da bem-aventurança, característica essencial da
divindade. Eros é um ser duplo, herdado da diferença de seus pais, o que o
coloca numa posição intermediária.
O Eros de Platão
revelado por Sócrates no Banquete é o próprio filósofo: está na posição
intermediária, entre o saber e a ignorância, é aquele que aspira algo. O Eros
em Platão é a aspiração do ser humano ao bem.
O Eros
socrático é o anseio de quem se sabe imperfeito por se formar espiritualmente a
si próprio, com os olhos sempre fitos na Idéia. É, em rigor, o que Platão
entende por "filosofia": a aspiração de conseguir modelar dentro do
homem o verdadeiro Homem.
O discurso de
Diotima, na fala de Sócrates, está na tradição grega e coloca na idéia de Eros
toda a atividade de criação espiritual. Eros é um poder educador e que matem
unido todo o cosmo espiritual, isso porque ele é a aspiração comum a todo homem
de buscar e se apossar por completo do belo.
Recordemos
que Diotima definia acima a essência do Eros como a aspiração a apropriar-se
'para sempre' do Bem. [...] o Bem constitui o amor humano de si próprio, no seu
mais alto sentido, então é evidente que o objeto sobre o qual ele recai, o
eternamente belo e bom, não pode ser senão a substância deste mesmo eu.
Banquete
encerra com a chegada de Alcibíades e seu bando: todos bêbados. Alcibíades põe
fim aos louvores a Eros e inicia elogios a Sócrates. A passagem final de
Banquete pode ser despercebida em uma leitura corrente, mas é de grande
significado. Com o encerramento das honrarias a Eros e o início dos elogios a
Sócrates, esse encarna o próprio Eros, ou seja, encarna a filosofia. Se não
bastasse, Alcibíades anuncia ter grande amor por Sócrates: como pode um jovem de
beleza exuberante fazer elogios e anunciar o seu amor (philia) a um velho tão
desfeito como Sócrates? Insere-se aí a valoração da filosofia e um novo valor:
a beleza interior superior à beleza exterior, perecível.
O Banquete trata da amizade, do amor e é um dos diálogos de Platão da categoria
política. Mas como a discussão sobre a amizade pode inserir essa obra na
problemática política?
Para Platão,
a amizade é uma força educadora e nexo que mantém o Estado. A amizade é
"forma fundamental de toda comunidade humana que não seja puramente
natural, mas sim uma comunidade espiritual e ética. " Não é possível
existir uma comunidade que não seja baseada na amizade, pois essa tende para
aquilo que é o bem e este une os homens. O bem é aquilo que é supremo, está impresso
na alma, é o primeiro amado, aquilo que permite a admiração pelas demais
coisas, em outras palavras, antes de tudo vem o bem, para o qual o ser humano
deve voltar-se, aquilo que tudo une, ente unificador.
Depois de
tantas exposições a respeito de Eros no Banquete, começando por Fedro, depois
Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Agatão, Sócrates bem o caracteriza, como
compêndio da aspiração humana ao bem.
Ao contrário
do que diziam seus discípulos, a amizade (ou amor, representado pelo deus Eros)
não é o próprio belo e próprio bem. Eros é originado de duas oposições, filho
da riqueza e da beleza. Isso o coloca numa situação intermediária, não fazendo
estar de nenhum lado oposto e extremo. A posição intermediária de Eros
atribui-lhe movimento, sendo o mesmo movimento do homem em busca do bem
supremo.
O bem é o que
há de mais supremo, é o divino, como Platão expressa literalmente em A
República e no próprio Banquete. É a forma unificadora, é o que harmoniza e
unifica o cosmos e o homem; é o que todo ser humano deve buscar.
Toda forma de
sociedade deve se voltar também para o bem e essa busca do bem, do supremo e
divino, Platão a caracteriza como amizade, como Eros.
Por isso
dizemos que Eros (philia, amor e amizade) é movimento, a busca incessante do
homem pelo bem e que tanto o homem quanto a sociedade não pode existir sem esse
movimento em direção ao que o bom e belo.
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