O problema do livre arbítrio
Qual é
a diferença entre uma mera decisão ou selecção e uma escolha, isto é, uma
decisão livremente realizada?
Eis uma ideia vulgar: uma escolha livre é uma
decisão tal que, até ao momento em que foi realizada, outra decisão poderia ter
sido feita. A ideia por detrás desta sugestão é que a diferença entre as tuas
decisões que são escolhas, isto é, livremente realizadas, e aquelas que o não
são, é que o modo como fazes as que são livres depende de ti. A
única coisa que te causou ao tomares a decisão foste tu; nada te forçou a
fazê-lo de um modo ou de outro.
Combinemos estas duas ideias:
1) Uma
escolha (isto é, uma escolha livre) é uma decisão tal que até ao
momento em que foi tomada, outra decisão poderia ter sido tomada e a decisão
tomada depende da pessoa que a fez.
[…]
O tema
do livre-arbítrio tem estado entre nós de uma forma ou de outra desde o tempo
dos filósofos gregos. Está no coração de muitas das partes mais importantes da
nossa vida social e pessoal. Se não tivermos livre-arbítrio, então é difícil
compreender como poderíamos possivelmente ser responsáveis por aquilo que
fazemos: que justificação poderia haver para nos censurarem quando algo corre
mal, elogiarem-nos e recompensarem-nos quando nos esforçamos muito e/ou as
coisas correm bem?
O seguinte princípio de possibilidades alternativas parece
encontrar-se na base da nossa noção de responsabilidade:
2) Princípio
de possibilidades alternativas — Se uma pessoa não poderia ter
decidido de outro modo, então essa pessoa não é responsável por aquilo que ela
faz.
Se não
temos livre-arbítrio, então quase por definição não poderíamos ter decidido de
outro modo. E tendo em conta 2, se não poderíamos ter decidido de outro modo,
então não somos responsáveis pelas decisões que fazemos ou pelo que vamos
fazer. […]
Para
lidar com a questão 2, a primeira coisa a fazer é distinguir entre liberdade
de decisão e liberdade de acção. Esta distinção tem sido
completamente confundida recentemente, mas é fundamentalmente importante
mantê-la assim. Já definimos liberdade de decisão em 1; é simplesmente ter
escolha.
Podemos definir liberdade de acção assim:
3) Liberdade
de acção — Ser capaz de fazer aquilo que escolhemos fazer.
[…]
A
diferença fundamental entre liberdade de decisão, isto é, escolha, e liberdade
de acção é a seguinte: A liberdade de decisão é acerca de decisões, a liberdade
de acção é acerca de acções. Podes ter uma sem ter a outra. Por um lado, podes
ter completa liberdade, o poder para dizer e fazer o que queres, e não ter
poder para escolher aquilo que queres e o modo como vais agir. Isto seria ter
liberdade, liberdade de acção, sem escolha livre. Por outro lado, se tens o
poder de fazer escolhas, na maior parte dos casos não o perdes ao perder a
liberdade, a liberdade de acção. Supõe que estavas preso numa cadeia. Isso
tirar-te-ia a tua liberdade, o teu poder de fazer o que querias. Mas
tirar-te-ia o poder de fazeres escolhas? Bem, parcialmente ficarias, pelo
menos, com uma grande parte desses poder: não perderias a capacidade para
escolher aquilo em que vais acreditar, para decidir aquilo que farias se
pudesses, etc. Tudo o que perderias na cadeia é a capacidade para agir com base
nessas decisões, isto é, a tua liberdade de acção. (É isso que em grande parte
torna a prisão horrível: uma pessoa numa prisão mantém total liberdade de
decidir o que gostaria de fazer, mas perde o poder de agir com base nisso.)
[…]
As
condições de ter liberdade, liberdade de expressão e autonomia pessoal; a
extensão e os limites justificáveis da liberdade; a relação entre a liberdade
de cada um e a igualdade para todos; e muitas outras questões acerca de
liberdade de acção são intensivamente estudadas e merecem atenção. Contudo,
focaremos o outro lado da moeda: a liberdade de escolha [livre-arbítrio], o que
é e se temos tal coisa.
[…]
Há
três grandes posições acerca da natureza e existência do poder de escolher.
Elas são usualmente designadas:
- determinismo radical,
- compatibilismo (também designado determinismo moderado
- e, […] libertismo. […]
Para
introduzir estas posições, necessitamos de esboçar um pano de fundo.
Em termos
gerais, temos duas concepções muito diferentes de nós mesmos enquanto pessoas.
Uma concepção é a imagem manifesta da vida social e interpessoal do dia-a-dia.
[…] Nesta imagem, pensamos nas pessoas como agentes unificados de escolha e
acção, agentes capazes de ter em conta as alternativas importantes, de concentrarmos
a nossa atenção nas considerações importantes, de identificar as alternativas e
de fazer escolhas. Pensando nas pessoas deste modo, é natural torná-las
responsáveis pelas acções que elas escolhem.
A
outra concepção é a imagem científica […]. Esta imagem surge do trabalhado das
ciências acerca do ser humano, incluindo a biologia, a ciência cognitiva e a
neurociência. Nesta concepção, pensamos nas pessoas como um sistema vasto de
unidades muito pequenas (neurónios e outras células), um sistema que é completamente
determinado a ser como é pelos seus genes e pelo seu ambiente e, talvez, por
outras causas prévias.
Relativamente à questão da escolha livre
[livre-arbítrio], a parte importante desta concepção é que estamos totalmente
determinados por causas prévias a decidir como decidimos. Por
"completamente determinado", queremos dizer que partindo das mesmas
causas prévias, as mesmas decisões ter-se-iam seguido. Pensando nas pessoas tal
como o fazemos a partir da imagem científica, é natural que fiquemos preocupados
pelo facto de elas poderem não ter poder de escolha e assim nunca serem
responsáveis pelas suas decisões e pelas suas acções.
Tal
como foi originalmente concebido pelo filósofo Wilfrid Sellars, as duas imagens
deviam ser entendidas como completamente compatíveis, simplesmente como dois
modos de mostrar ou descrever a mesma coisa. […] Quando, contudo, exploramos as
concepções de escolha produzidas pelas duas imagens, elas parecem rapidamente
ser pouco compatíveis. A imagem manifesta contém a imagem das pessoas enquanto
pessoas que escolhem livremente. A imagem científica contém a imagem das
pessoas como causalmente determinadas.
As três grandes posições acerca da
liberdade de decisão consistem em três posições acerca destas implicações para
as duas imagens.
Comecemos
pelo libertismo. Os libertistas aceitam o ponto de vista da imagem manifesta,
de que somos agentes com poder de tomar decisões livres. Eles também defendem
que ter esse poder põe de lado o determinismo causal completo da imagem
manifesta. Eles argumentam do seguinte modo:
Premissa
1: A liberdade de escolha existe.
Premissa 2: Se a liberdade de escolha existe, então o determinismo causal completo não é verdadeiro.
Conclusão: Portanto, o determinismo causal completo não é verdadeiro.
Premissa 2: Se a liberdade de escolha existe, então o determinismo causal completo não é verdadeiro.
Conclusão: Portanto, o determinismo causal completo não é verdadeiro.
Assim,
os libertistas rejeitam um elemento central da concepção científica da pessoa,
um elemento admitido por quase todos os que aceitam a imagem científica,
nomeadamente o determinismo.
Por
contraste, os deterministas radicais aceitam o determinismo causal da imagem
científica. Concordam numa coisa com os libertistas, nomeadamente, que um
determinismo causal completo põe de lado a nossa liberdade de decisão, mas
argumentam num sentido totalmente oposto.
Argumentam assim:
Premissa
1: O determinismo causal completo
é verdadeiro.
Premissa 2: Se o determinismo causal completo é verdadeiro, então a escolha livre não existe.
Conclusão: Portanto, a escolha livre não existe.
Premissa 2: Se o determinismo causal completo é verdadeiro, então a escolha livre não existe.
Conclusão: Portanto, a escolha livre não existe.
Assim,
os deterministas radicais rejeitam um elemento crucial da
imagem manifesta da vida social.
O
resultado? Estamos num impasse desagradável. Parece que temos de abdicar de uma
parte crucial da nossa concepção vulgar acerca da pessoa ou temos que rejeitar
um elemento crucial acerca daquilo que a ciência nos diz acerca das pessoas.
Nenhuma das alternativas é desejável. Se fosse possível, gostaríamos de manter
as duas. É aí que entra a terceira opção.
A terceira alternativa é o que
designamos acima por compatibilismo. Os compatibilistas pensam que as
perspectivas acerca da escolha e do determinismo causal das duas imagens são
inteiramente compatíveis uma com a outra (daí o nome usado).
Para
ver como os compatibilistas vêm o problema, note-se primeiro que os
deterministas radicais e os libertistas estão de acordo num
ponto central. Concordam que a escolha livre e o determinismo causal completo
são mutuamente exclusivos, isto é, são incompatíveis entre si. É isso que as
segundas premissas afirmam nos dois argumentos. O compatibilista rejeita as
segundas premissas. Para o compatibilista, a escolha livre não seria excluída
apenas pelo facto de a decisão ser causalmente determinada. Como assim? Bom,
para o compatibilista, escolher livremente é apenasum modo de estar
causalmente determinado. Se a tua opção foi causalmente determinada de modo
adequado, então foi uma escolha livre: a decisão foi completamente determinada
causalmente e completamente livre. A escolha livre não éexcluída
pelo mero facto de ser uma decisão causalmente determinada.
Como é
que o compatibilista faz este truque? Diferentes compatibilistas usam
diferentes jogadas, mas a estratégia geral é definir um conceito que pode ser
designado autodeterminismo:
4) Autodeterminismo —
Uma opção ou decisão é causalmente determinada por si própria.
Uma
decisão é autodeterminada quando os factores que a causam foram aspectos da
pessoa que a fez, tal como os seus desejos e valores. Os compatibilistas
distinguem, então, situações em que uma decisão é autodeterminada
de situações em que factoresexteriores à pessoa determinaram que
decisão foi tomada. Eis um exemplo de autodeterminismo:
5)
Envolvo-me num processo cuidadoso de identificar cursos alternativos da acção,
valores relevantes que aceito, os meus objectivos, os interesses e situações dos
outros, as minhas crenças acerca de como várias alternativas se darão e por aí
fora. Estas deliberações causam-me a chegar a uma dada decisão.
Para o
compatibilista, a situação 5 é inteiramente diferente das situações como as de
6:
6) Sou
levado a tomar uma certa decisão pela influência de sugestão pós-hipnótica ou
pela intoxicação extrema, ou enquanto estou a dormir, etc
.
.
Qual é
a diferença?
A diferença é simplesmente esta. Embora a decisão nos dois casos
seja completamente causalmente determinada, no primeiro caso é causada pela
minha deliberação consciente acerca do que fazer, no segundo caso por factores
exteriores ao meu pensar e deliberar, factores sobre os quais não tenho
controlo.
Para o compatibilista, isto é suficiente para no caso 5 pelo menos se
abrir o caminho à escolha livre […], enquanto que numa situação como a 6
não há escolha livre.
Andrew
Brook e Robert J. Stainton
Tradução
de João D. Fonseca
Retirado de Knowledge and Mind: A
Philosophical Introduction, de Andrew Brook e Robert J. Stainton (Cambridge, MA:
The MIT Press, 2002, Cap. 6, pp. 136-145).
In Critica
Lola
Sem comentários:
Enviar um comentário