DIÁLOGO
INTER-RELIGIOSO
Há uma certa ambiguidade quando se fala em «diálogo
inter-religioso» e «encontro inter-religioso». Na opinião pública, as
expressões «diálogo inter-religioso» e «encontro inter-religioso» são
equivalentes, e associam-se frequentemente a uma proposta de busca de consensos
teológicos, tendo em vista uma vontade de unificação das religiões. Também se
confundem com «diálogo ecuménico».
Diálogos inter-religiosos, ou diálogo das religiões, no
sentido de exposições e debates entre teólogos de várias religiões para
encontrar a unificação, não existem, e seriam infrutíferos. Mas pode haver, e
há, encontros inter-religiosos, ou encontros entre religiosos, para defender
interesses ou objectivos comuns. Vou primeiro explicar porque é que não pode
haver diálogos entre as religiões para a unificação das mesmas e, depois, falar
da possibilidade de haver encontros inter-religiosos para debater temas não
religiosos de interesse comum.
Definição de Religião
As religiões são
sistemas de crenças ou dogmas e de práticas obrigatórias e suficientes para a
Salvação (em vida ou pós-morte). Nas três religiões reveladas do Mediterrâneo,
as religiões são a expressão da vontade de Deus ditada por emissários:
1)Quanto ao Judaísmo: pelos profetas do Antigo
Testamento;
2) quanto ao
cristianismo:pelo próprio Filho de Deus incarnado, Jesus Cristo;
3) quanto ao Islão: pelo Profeta Maomé, o último dos
profetas enviados por Deus.
As três religiões
assentam em dogmas irredutíveis
Os textos sagrados são, para cada uma das três religiões
reveladas, a definitiva e imutável Palavra de Deus.
Cada religião considera-se como uma revelação divina,
perfeita e acabada, resultado da Palavra de Deus, a Verdade por excelência e
eterna. E só pode haver uma Verdade, a sua. Cada sistema teológico organiza-se
numa construção coerente da Verdade divina. Isto não quer dizer que as
religiões não possam ser tolerantes para com os desviantes ou os não-crentes.
Excluo, aqui, o Budismo que não é propriamente uma
religião mas «vias» de perfeição (há várias variantes do budismo) e que podem
ser praticadas simultaneamente com as várias religiões (uma pessoa pode ser
simultaneamente budista e cristã).
Pressupostos de um pretenso
diálogo teológico
Para que houvesse
diálogo inter-religioso no sentido de debate de teologias, pressupor-se-ia que
os dialogantes fossem teólogos, intérpretes fidedignos das doutrinas em
discussão, e que um cedesse em favor do interlocutor e corrigisse a sua
Verdade.
Ora, isso contradiz a própria natureza da religião cuja
Verdade está definitivamente revelada e declarada.
Digamos com toda a franqueza: a proposta vinda dum
teólogo acreditado ou do responsável duma instituição eclesiástica, para um
diálogo religioso com os homólogos de outras religiões, a fim de se encontrar
um patamar comum, um compromisso ou um consenso, essa proposta de diálogo é uma
operação de proselitismo, de propaganda ou, então, uma provocação.
Diálogo religioso entre pessoas singulares
No entanto, há que
distinguir, por um lado, as instituições teológicas que defendem e propagam uma
ortodoxia de, por outro lado, as pessoas singulares que seguem essas religiões.
Muitas pessoas religiosas, agnósticas ou ateias pensam que poderia haver
diálogo e até união entre as três religiões do Livro ou da Bíblia (Judaísmo,
Cristianismo, Islamismo) uma vez que têm origem no Patriarca Abraão, e que até
se diz que «Deus é o mesmo» (o Deus das três religiões poderá ser o mesmo, se ele
existir, mas o certo é que, de uma religião a outra, ele torna-se muito diferente)
. As pessoas singulares podem reunir-se, confrontar as
suas respectivas verdades, participar nos ofícios das outras e cooperar em
acções religiosas, sem pôr em causa a ortodoxia da sua religião; são actos
privados. As instituições guardiãs da teologia, essas, não sepoderão pôr em
confronto porque são detentoras da única Verdade.
As religiões são exclusivistas
Todas as religiões
ou teologias têm em comum o facto de serem exclusivistas. Só a sua concede a
Salvação. Uma religião denuncia a outra, ora como «falsa» ou inventada pelos
homens, ora como inútil para Salvação. Todas são concorrentes entre si.
As três religiões do Ocidente (Judaísmo, Cristianismo e
Islamismo) são até particularmente concorrentes porque procedem do mesmo texto,
o Antigo Testamento, de que as três se apropriam quanto à promessa de messias
(ou do ultimo profeta).
As teologias são formas de poder
As religiões não
são apenas sistemas teológicos. São também formas de poder institucional -
poder do saber teológico, poder social, poder conferido pela cultura. Os detentores
do poder religioso foram «vocacionados» para essa tarefa, predestinados e, para
efeitos sociais, são profissionais desse saber. Ceder teologicamente é perder
parte do seu poder, enquanto detentor do saber religioso. Depois, as religiões
são largos continuados históricos que, ao longo dos milénios, foram engendrando
as culturas ao ponto de religiões e culturas se confundirem.
Religiões do Mediterrâneo irredutíveis
As religiões do Mediterrâneo partem de versões diferentes
e contraditórias quanto à Palavra de Deus. O Judaísmo recusa, liminarmente, que
Jesus possa ser Filhode Deus (base do cristianismo) ou que haja uma Palavra de
Deus para além do último texto inspirado da Bíblia (Antigo Testamento).
A Verdade
judaica está unicamente
na Tora e nos Profetas (do Antigo Testamento). O Corão que deriva, em parte, do
Antigo Testamento, nega a própria base do cristianismo que é a divindade de
Jesus, sujeitando à pena de morte os defensores desse princípio base do
cristianismo.
Lembro um debate célebre, da Idade Média, em que o rei de
Aragão convidou teólogos judeus e teólogos cristãos para discutirem em público
as respectivas religiões – um diálogo inter-religioso. Os judeus argumentavam
desta forma: «Vós, cristãos defendeis que o Antigo Testamento é Palavra de
Deus, que Deus é a Verdade eterna, portanto, Deus não se contradiz. Então, como
pode Deus ter prescrito ‘decretos eternos’, a Verdade eterna, e, depois, mandou
o seu ‘filho’ para revogar a sua doutrina eterna?». Os inquisidores, perante a
lógica irrefutável deste argumento teológico, só encontravam uma solução: o
silenciamento definitivo, a exterminação dos judeus. Este diálogo medieval é
típico dum diálogo de «surdos» que só serve para cada lado afirmar as suas convicções
e encontrar novos argumentos.
Diálogo entre confissões de uma religião
Há que ter em
conta que as religiões não são monolíticas. Dentro duma religião há diversas
«confissões» ou Igrejas. Nas religiões cristãs: catolicismo, os vários protestantismos,
a Igreja anglicana e as Igrejas ortodoxas (orientais e eslavas). No Judaísmo: o
judaísmo sefardita e o judaísmo askenazi. No Islamismo: o sunismo, o chiismo e
o ismaelismo.
Poderá haver, e
tem havido, diálogo entre «confissões» dentro do cristianismo mas só sobre
certas matérias secundárias que não tivessem sido objecto de dogmatização.
Desde que uma confissão tenha prescrito certa posição doutrinal como dogma, a
discussão torna-se impossível porque o dogma é uma verdade indelével, irreformável.
Desde os meados do séc. XX, as diversas confissões cristãs têm tentado o ecumenismo.
Mas os resultados ficam-se pelos gestos de cortesia, de respeito mútuo e de
não-ataque teológico. O diálogo teológico com os católicos dificilmente tem
algum resultado por causa do dogma da infalibilidade do papa de Roma declarado
em 1870. Encontrar-se-ão poucos teólogos que aceitem discutir teologia ou
filosofia com um líder infalível que, portanto, não pode mudar de direcção
. O diálogo entre os vários protestantismos é comum.
Quanto ao diálogo entre Judaísmo e Islamismo - alguns
autores consideram o Islamismo como uma variante ou uma continuidade do
judaísmo – o diálogo também é impossível mas os judeus sempre viveram em boa harmonia
com os meios islâmicos, sem grandes perseguições, até à criação do Estado de
Israel
O diálogo entre as confissões do Judaísmo sefardita e
askenazi é relativamente fácil.
Confissões dentro do Islamismo
Quanto às confissões dentro do Islamismo, o Islamismo não
é homogéneo. Há sunismo, chiismo e ismaelismo (para além de outras tendências
numericamente menores, como os alauitas). Ora, entre o sunismo e o chiismo,
nunca existiu diálogo, desde o princípio do Islão donde essas diferenças
procedem. Os sunitas tomam os chiitas por inimigos ainda piores do que os
cristãos. Entre chiitas e cristãos até houve diálogo no tempo das Cruzadas, em
que cristãos e chiitas se uniram contra os sunitas.
Vejamos as posições que impossibilitam o diálogo
teológico entre chiitas e sunitas.
O chiismo obedece a um
líder e a uma hierarquia de clérigos que têm total poder sobre os fiéis, como
os católicos obedecem ao Papa e à Igreja (arriscando-se, ao contrário, a serem
excomungados, privados da Salvação). O chiismo está centralizadon no Imã
Ayatolah supremo (Ayatolah significa «sinal de Deus»). É ele, e só ele, quem tem
capacidades para interpretar o Corão cujas passagens tanto podem apelar à violência
como à pacificação, recorrendo o Imã Ayatolah à interpretação simbólica ou alegórica
e ao contexto literário. Na prática, o Ayatolah supremo dirige a religião segundo
as conjunturas históricas, sociais e políticas. Nos conflitos religiosos, o muçulmano
chiita, para agir, deve obediência ao Imã Ayatolah supremo. Não pode tomar
iniciativas contrárias à sua direcção. A declaração de guerra santa é uma prerrogativa
exclusiva do Imã Ayatolah supremo.
Vejamos o sunismo: no sunismo não há chefes, instituições ou
hierarquias religiosas a quem os fiéis, para serem bons muçulmanos, devam
obediência. O Corão e a Suna (as tradições do Profeta) são a únicas fontes a
que o muçulmano sunita deve obediência. (O Corão e a Suna constituem a Chária,
ou lei). Para cumprir a religião, todos devem aprender (e, frequentemente,
saber inteiramente de cor) o Corão. Para o
sunita, a interpretação do Corão é literal, um «pronto a
usar», sem recursos simbólicos ou alegóricos, entendido versículo por
versículo, sem contextualização literária, como se cada versículo fosse uma
norma autónoma. Para defender o Islão, o muçulmano sunita pode agir individualmente,
por sua iniciativa, sem chefe, e pode considerar-se um iluminado, o único na
boa-via do Islão a quem Deus exige este ou aquele sacrifício. O sunismo
enquadra-se numa perspectiva parecida com o anarquismo libertário europeu do
séc. XIX. O sunita dirá: «Não preciso de chefes nem de teólogos. Só o Corão e
eu».
Note-se que os atentados terroristas que temos conhecido
desde há anos, na Europa, no Magrebe, no Próximo Oriente, na Índia, no Paquistão
e na Indonésia, foram todos perpetrados por sunitas. A Al Qaeda, os terroristas
do Magreb (salafitas), de Israel, da Índia, do Paquistão e da Indonésia, são
sunitas.
Alguém que queira dialogar com o Islão sunita não terá
ninguém que o represente oficialmente. Ou tem de dialogar com cada muçulmano
sunita. Poderá encontrar apenas líderes locais, políticos ou académicos, mais
ou menos influentes, mas que não gozam do direito de serem seguidos ou respeitados
pelos crentes individuais. Os líderes sunitas terão de usar da força para se
fazerem respeitar. A antiga História do islão e a actual demonstram bem isso.
Legitimidade religiosa no Islão
De facto, chiitas
e sunitas têm concepções opostas quanto à legitimidade do poder religioso e
político.
No chiismo, a
legitimidade do poder religioso reside na hierarquia eclesiástica com o Imã
Ayatolah supremo no topo. O Ayatolah supremo é o sucessor e representante, na
terra, do XII Imã chiita, descendente de Fátima, filha do Profeta e de Ali
marido de Fátima, que se ocultou em 940 (Imã Oculto ou Encoberto) o qual se
desocultará no futuro como messias e salvador. Todo o poder religioso emana do
Imã Ayatolah supremo.
Quanto ao sunismo: no sunismo, a legitimidade do poder
político-religioso reside no próprio facto da manutenção do poder. O poder cabe
a quem o conquistar e manter dentro do Islão. Praticamente, o detentor do poder
adquire a legitimidade pelo facto de ser obedecido. Os muçulmanos sunitas que
entenderem que o líder defrauda ou trai o islão, devem assumir a obrigação de o
combater. A história do islão antiga e recente está repleta de atentados a
chefes do Estado, alguns democraticamente eleitos, mas que, para alguns, são
ilegítimos detentores do poder no islão, traidores ao islão. Basta meia dúzia
de iluminados para provocar uma catástrofe.
No islão ismaelita, que é um ramo chiita, o poder
religioso cabe exclusivamente ao Imã Aga-Khan, considerado como descendente em
linha genealógica directa do VII Imã chiita, descendente do Profeta Mohamed,
através de Fátima sua filha e de Ali marido de Fátima. O Imã Aga-Khan sempre
foi tido como um líder de paz e de tolerância dentro da sua confissão e
inter-religiosa.
Exemplo do Diálogo Em Madrid
Voltando ao
diálogo entre as religiões. Para estes dias, 16, 17 e 18 de Julho, organiza-se
em Madrid um «Encontro de religiões e de culturas» a que alguns jornalistas
chamam «Diálogo entre as religiões», convocado pelo rei da Arábia Saudita e foi
ele quem organizou a lista dos convidados. As justificações deste líder, e que constam
nas dezenas de mesas de discussão, são as seguintes, segundo o próprio rei da Arábia:
«No mundo actual
há fenómenos que desconsolam a gente sensata de todas as religiões em mais de
um aspecto. A humanidade padece de desintegração da família, de decadência
moral, contaminação do meio ambiente, guerras que comovem o coração dos
intelectuais e que constituem uma forte preocupação na busca de soluções para salvar
a humanidade das suas moléstias. Todos esperam que os líderes e seguidores das diferentes
religiões e culturas encontrem soluções adequadas para salvar a humanidade
dos perigos que comprometem o seu futuro»
Mas os
comentadores previnem que esta iniciativa é uma manobra para «limpar a imagem»
do rei da Arábia Saudita – donde procede a Al Qaeda - e que mantém o regime
mais segregacionista do mundo
1) quanto às
mulheres (que não podem andar na rua sem serem acompanhadas do marido, pai,,irmãos
ou filhos, as adulteras são mortas por apedrejamento),
2) quanto à
sexualidade (os homossexuais são enforcados) e
3) quanto à
liberdade religiosa (a Igreja católica não conta com nenhum templo no reino e o
rei trata as minorias chiita e ismaelita de hereges; e estas não foram
convidadas ao dito encontro de Madrid).
Este encontro de Madrid segue-se a um Diálogo ou
Conferência Islâmica Internacional celebrado em finais de Maio, em Meca. Porque
é que o rei saudita não organizou este encontro oun diálogo no seu país?
Porque, no seu país, islâmico sunita (de código waabita,
particularmente severo), não pode haver debates livres sobre
as religiões, como não há nenhum sinal de liberdade de culto, nenhum templo
doutra religião. O Guardião das Santas Mesquitas de Meca e Medina (é o seu
título religioso), rei absoluto, veio ao estrangeiro para convidar a um diálogo
entre religiões ou veio propor uma boa imagem da sua religião? Optou por Madrid
para dourar a sua imagem, certo, mas também porque os fundamentalistas sunitas
estão a reclamar a reconquista do Andalus. Este evento em Madrid é um exemplo
característico de como os teólogos ou líderes das religiões, quando convidam ao
debate sobre as religiões, agem por proselitismo.
Nestas propostas de diálogo entre as religiões, se não há
vontade de proselitismo, há, pelo menos, a busca de um efeito de marketing, de
uma «boa imagem» para a religião de quem partiu o convite (dialogante, aberta,
acolhedora, etc.)
.
Intenções dos laicos proponentes ao diálogo
Quando são os laicos a convidar para o diálogo entre as
religiões, reconhecemos que estes são animados de boa vontade, de civismo, de desejos
de pacificação religiosa e de solidariedade humana. Mas também podem ser
induzidos numa utopia, por não terem em conta os dogmas, a irreversibilidade
dos fundamentos teológicos, o exclusivismo da Verdade, de que os líderes religiosos
são os defensores (caso contrário, serão destronados ou ultrapassados por outros
dentro da sua religião ou instituição teológica).
O Cardeal Patriarca de Lisboa, aquando dum recente
encontro inter-religioso em Lisboa disse que «teremos de esperar ainda muito
tempo para termos um diálogo interreligioso», entre as religiões. Isto
significa, diplomaticamente, que nenhum responsável duma religião ou Igreja se
pode comprometer nesse diálogo. Todos os responsáveis religiosos honestos dirão
o mesmo, diplomaticamente, dirigidos ao público em geral, sem confessarem
expressamente a impossibilidade desses diálogos ou que estes seriam infrutíferos.
ENCONTROS INTER-RELIGIOSOS ou ENTRE RELIGIOSOS
Encontros entre religiosos são possíveis - mas, desde que
não se discuta religião ou, pelo menos, desde que não se fale daquilo que separa
as religiões e que constitui as suas respectivas bases. O que há em comum entre
as religiões é, teologicamente, insignificante e secundário - o conceito de sagrado
e de divino, alguns tabus, importância dos ritos... O que as separa são abismos
ou muralhas inultrapassáveis.
Rezar em comum
Os líderes judeus, cristãos e muçulmanos poderão
encontrar-se para rezar. Mas cada um reza com fórmulas diferentes. Dificilmente
rezarão uma fórmula oficial em comum. Ou terão de inventar uma fórmula de prece
comum às três doutrinas (algumas orações corânicas e os salmos bíblicos seriam
facilmente adoptáveis). Mas não rezarão na mesma língua. Para o muçulmano, a
oração só tem valor pronunciada na língua árabe. Os cristãos poderão rezar em
qualquer língua.
Espaço de oração
Quanto ao espaço de oração tem de ser um espaço profano:
os cristãos não impedem os muçulmanos de entrar livremente nos templos
cristãos, sejam templos católicos ou protestantes, e de aí rezarem como
quiserem. No entanto, segundo o islão, os muçulmanos estão proibidos de entrar
nos espaços sagrados das outras religiões.
Esses muçulmanos, vistos a entrar aí, podem ser considerados
pelos seus correligionários como apóstatas (e sujeitos à pena de morte, segundo
a Chária). Mas os judeus e os cristãos são proibidos pelo Islão de entrar nas
mesquitas para rezar. Se quiserem entrar numa mesquita para rezar terão de
recitar, à entrada, a Declaração de Fé e, com isso, ficam convertidos ao islão.
Em Portugal, o santuário de Fátima tem sido frequentado
por budistas, hindus, chiitas e ismaelitas. A história destes locais remete
para um culto a Fátima, filha do Profeta, «Mãe do chiismo», mãe do XIIº Imã
chiita, o Imã Oculto ou Encoberto, que se desocultará como Messias. Houve aí um
culto a Fátima, no tempo dos mouros marroquinos conquistadores da Península que
eram fatimidas ou chiitas. Os símbolos católicos (imagens, etc.) aí existentes
são incompatíveis com o chiismo e o ismaelismo mas, dada a largueza e a
abertura do espaço para a serra envolvente, há possibilidades para o encontro
diverso e para alguma variedade de práticas religiosas. O problema é que o
próprio Vaticano já determinou expressamente que esse santuário não pode ser usado
por outras religiões. É exclusivamente católico. Até deu à nova basílica o nome
de Santíssima Trindade (o Deus dos cristãos é em três pessoas) para afastar
todas as tendências não cristãs, sobretudo as islâmicas chiita e ismaelita.
Quer dizer, a Igreja católica diz-se, continuamente, aberta ao diálogo mas
afasta dos seus espaços os não católicos
Temas do diálogo
O encontro de teólogos das três religiões mediterrânicas
só será possível sobre temas não teológicos nem fundamentalmente religiosos -
temas científicos, sociais, políticos, culturais e humanitários. Sendo assim,
os «encontros inter-religiosos» não se diferenciam muito dos outros encontros
cívicos, académicos ou políticos. Só parecem adquirir o cunho de «religioso»
porque as elites religiosas, numa determinada época, se interessam também por
esses temas, mundanos ou laicos, e que são comuns a toda a Humanidade. Todos os
líderes religiosos podem debater os temas da Ecologia, da Economia ou da
Assistência Social que são preocupações de muitas outras pessoas, laicas e
ateias. Não é porque sejam temas teológicos ou religiosos. O consenso dos líderes
religiosos gerado em torno desses temas mundanos não pressupõe nenhuma unidade
religiosa. A Igreja de Roma e alguns líderes sunitas reuniram-se no Cairo para debater
a defesa da família e o progresso demográfico, em que a Igreja se colocou ao lado
dos muçulmanos para condenar a anti-concepção e defender a família numerosa. São
temas sociais. Mas, para além da defesa da família em geral, da procriação e de
algum humanismo sociológico comum, os católicos não podem ir mais longe com os islâmicos,
porque os direitos religiosos e familiares respectivos são muito diferentes e até
opostos (no islão: possibilidades de família poligâmica, repudiação da esposa
pelo marido, divórcio, subalternização da mulher ao marido...).
As autoridades de todas a religiões poderão encontrar-se
para discutir a paz. Hoje, guerras religiosas, só existem com o islamismo. Mas,
como vimos, os líderes muçulmanos sunitas não podem arrogar-se do direito de
serem respeitados pelos outros muçulmanos porque não há uma direcção comum no
sunismo. As suas posições sobre a paz passam por, simplesmente, individuais. O
problema é que existe, no Corão, o preceito da guerra santa, ou gihad, muitas
vezes referido no texto e que algumas correntes e muitos muçulmanos sunitas
elevam ao lugar do Sexto Pilar do Islão
Ora o texto sagrado é para ser cumprido, dirão esses. O
termo corânico gihad que, etimologicamente, significa «esforço», pode
aplicar-se, no Corão, a guerra contra os não muçulmanos, em passagens do
género: «Matai todos os infiéis que estejam à vossa
volta» (Surate 9, versículo 5; os sunitas cumprem os versículos
do Corão como normas autónomas, sem contextualização histórica ou literária).
Portanto, a guerra também está legitimada pela religião de uma das partes. É
muito interessante ver gente pacífica chegar a um consenso sobre a paz. O
problema consiste nos belicosos que ficam de fora e que, por motivos
teologicamente legítimos, não são obrigados a entrar nesses consensos de paz.
Possibilidade de encontros inter-religiosos (entre religiosos)
As sociedades estão cada vez mais a laicizar-se e,
simultaneamente, a procurar vias alternativas e individuais de espiritualidade
levando ao descrédito dos dogmas, mesmo nas sociedades islâmicas onde a
secularização avança sub-repticiamente (o Islão onde é aplicada a Chária é um
sistema sócio-religioso e jurídico que se confunde com o Estado).
Nas sociedades ocidentais, desconhece-se, hoje, tanto a
doutrina católica como a islâmica, e considera-se desejável o ideal, utópico,
da unificação das religiões. A partir desse ideal utópico, e da
individualização religiosa, são viáveis os encontros com religiosos de boa
vontade para discutir temas humanitários e universais, como a paz, os direitos
humanos e a erradicação da pobreza. Várias organizações cristãs no mundo, como
a Comunidade de Santo Egídio, procedem a encontros inter-religiosos, tanto para
rezarem no mesmo espaço como para discutirem assuntos humanitários. É notável a
sua acção em favor da paz em várias regiões de África. Conta cerca de 300
comunidades espalhadas pelo mundo onde intervêm junto dos beligerantes ou
conflituantes assim como em favor dos
doentes da sida, refugiados, etc. Mas não promove diálogos teológicos. Organizou
em Lisboa a manifestação «Encontro inter-religioso – Oceanos de Paz», em 24, 25
e 26 de Setembro de 2000.
Note-se «Encontro»
e não «Diálogo».Teve a participação das religiões mais seguidas no Ocidente.
Lembro que os islâmicos sunitas participantes destas manifestações, por mais elevado
que seja o seu prestígio religioso ou político, não representam o islão sunita.
Só representam a si próprios ou as respectivas organizações cívicas, não
religiosas. A sua presença não condiciona os outros muçulmanos. Diferentemente
disto, a presença do Cardeal Patriarca de Lisboa, no mesmo encontro, representa
todo o patriarcado de Lisboa e, até, se assim o estipular a Conferência
Episcopal Portuguesa, toda a Igreja católica portuguesa.
Importa ainda dizer que o conceito de solidariedade
social universal à qual alguns pensam poder dedicar estes Encontros
Inter-religiosos, também tem condicionamentos de uma religião a outra. Entre os
cristãos, a solidariedade social é um dever religioso fundamental, prioritário,
instituído por Jesus Cristo, e sem olhar a raça, nacionalidade ou religião,
universalista, globalizante, sendo prioritários os mais necessitados. Não é
esse o critério do Islão. Segundo o Corão e a Suna, os muçulmanos não estão
obrigados a serem solidários para com os das outras religiões, crentes, ateus ou
hereges, sendo apenas obrigados a sê-lo para com os muçulmanos.
Os Encontros de religiosos dos vários quadrantes promovem
a tolerância e a cooperação entre os povos, e entre maiorias e minorias
religiosas, tendo o efeito das relações públicas e de boa vontade, alheias aos
Estados vistos como beligerantes ou repressivos. Estes Encontros podem servir
de correctivo da acção desses Estados beligerantes. Produzem um forte impacto
mediático e, dada a secularização e a medíocre formação religiosa das massas -
que, neste caso, é positiva - levam a resultados a curto prazo e desmobilizam
as tendências religiosas fundamentalistas e obscurantistas. Mas podem ser
usados para o proselitismo e para realçar a bondade ou maldade de uma ou outra
religião ou Igreja.
A ambiguidade de que falei no princípio (confusão entre
diálogos interreligiosos, diálogos teológicos, e encontros entre religiosos),
resultante da ignorância da opinião pública que pensa poder haver diálogos
entre as religiões, é neste caso benéfica porque conduz à tolerância religiosa
e à cooperação entre indivíduos de religiões diferentes.
O Diálogo inter-religioso como plataforma de entendimento
comum no Mediterrâneo, não podendo ser promovido pelas instituições teológicas,
tem muitas possibilidades de o ser pelas organizações sociais e pelos
indivíduos, à margem das ortodoxias. Nós vemos cada vez mais pessoas a assumir
a fraternidade humana a partir da fé no Deus revelado ao Patriarca Abraão e aos
Profetas. Ora, isto está em conformidade com as tendências modernas de busca de
novas espiritualidades em detrimento das ortodoxias tradicionais. Estas
tendências de emancipação espiritual estão em visível progresso nos meios do
cristianismo. São tendência de futuro.
No entanto, o fundamental, é que se exija dos Estados a
liberdade religiosa e o tratamento jurídico equitativo das religiões e confissões,
por mais minoritárias que sejam. A igualdade e a liberdade religiosas é que devem
ser a primeira plataforma de entendimento comum, para a fraternidade entre os
povos. Mas, estes princípios de liberdade e igualdade devem ser apanágio dos
Estados das duas margens do Mediterrâneo, o que ainda não acontece.
Moisés Espírito Santo
Prof. Catedrático de Sociologia das Religiões
Lola
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