Violência e Religião
1. Agradeço ao Instituto de Sociologia e Etnologia das
Religiões da Universidade Nova de Lisboa e ao Prof. Moisés Espírito Santo o
convite que me dirigiram para vos falar aqui do tema "religiões e
violência". Sou, como sabem, Presidente da Comissão para a Liberdade
Religiosa, mas não falo nessa qualidade.
2. As religiões - pelo menos as grandes religiões
monoteístas - caracterizam-se pelo amor a Deus que é, ao que parece, o mesmo -
e, todas elas, falam também no amor ao próximo. Mas que próximo? Os chamados
infiéis ou os hereges também?
3. Sendo religiões reveladas cada uma tem a sua verdade.
Daí que o diálogo inter-religioso seja por vezes, difícil. Mas não impossível,
como a história recente tem demonstrado. Os fiéis de
uma religião podem ser os infiéis de outra. E há ainda os
hereges. E é também, ainda, mais difícil o diálogo entre crentes e não crentes, sejam agnósticos ou
ateus.
A diferença é sensível: os agnósticos têm dúvidas sobre os
mistérios da existência: Quem somos? Donde surgimos? Para onde vamos? Sermos
dotados de alma imortal, que sobrevive à morte do corpo? Os agnósticos têm
dúvidas e os ateus, que negam a existência de Deus, não acreditam na
imortalidade da alma, nem da existência de outro mundo, para além da morte.
Isto, claro, em termos simples.
4. No passado, a regra geral foi a constatação dos
conflitos inter-religiosos: as guerras religiosas, com a ideia de
"converter os infiéis". As cruzadas tiveram esse objectivo. Com excepções,
obviamente: o al-Andaluz foi das mais notáveis excepções, nos séc. XI e XII, em
Cordóva. As grande religiões conviviam e dialogavam pacificamente: judeus;
cristãos; muçulmanos...
Foi por via dos conhecimentos árabes (assimilados da
Cultura Grega) que os cristãos na Europa do séc. XIII começaram a estudar os
filósofos gregos, com grande influência depois no Renascimento.
5. Sucede também que a separação entre os Estados e as Igrejas
e a defesa do pluralismo religioso são ideias modernas que datam da criação dos
Estados seculares na Europa. Estas, depois, desenvolveram-se com o movimento
iluminista, o qual se acentua com os Enciclopedistas e com a Revolução
Francesa. Em começos do século XX, afirmam-se através do laicismo (separação do
Estado e das Igrejas). Oficialmente, os católicos reconhecem a laicidade, como
necessária - há uma
nuance subtil entre laicismo e laicidade, a que os
católicos actuais pretendem dar algum conteúdo - contudo, o conceito deixou de ser polémico e
foi aceite, após o Concílio Vaticano II. (1962). Só então!
6. Em princípio, portanto, a religião é antagónica da
violência. Começa por ser amor a Deus e deve ser, obviamente, defensora da paz.
Mas, historicamente, não tem sido assim: a intolerância reinou. Ora, sem
tolerância e respeito pelos Direitos do outro - diferente de nós - os conflitos
e as guerras são inevitáveis. Foram-no no passado e, provavelmente, sê-lo-ão no
futuro, como Samuel Huntington profetizou no seu livro "Choque de
Civilizações". A menos que, para a sobrevivência da Humanidade, haja uma
revolução nas mentalidades, no interior das diferentes religiões, a favor do diálogo
e da paz.
7. A cultura dos Direitos Humanos e a Cultura da Paz,
como bens supremos, para a Humanidade, num mundo global, são essenciais para
assegurar o respeito pelo que é diferente e para fazer recuar os fanatismos e a
violência religiosa. No passado, os vencidos de uma região - aqui, na Europa e
mais ainda nos outros Continentes - eram obrigados a converter-se falsamente.
Sucedeu, assim, com os chamados moçarabes, por exemplo,
nos começos de Portugal, como Estado; com os judeus, para não serem expulsos e
escaparem aos autos de fé e à Inquisição; com os hereges de várias confissões,
por não serem suficientemente ortodoxos, que foram também discriminados,
perseguidos e algumas vezes, mortos. Hoje o fundamentalismo religioso -
islâmico, evangélico, judaico - provoca guerras, ditas santas, para eliminar os
que não partilham da sua fé.
Ora, racionalmente, não há, não podem haver, guerras
santas...
Mas, obviamente, as guerras mesmo quando se dizem santas
têm outras motivações do que as religiões: a pobreza; as desigualdades sociais;
os nacionalismos, os atrasos culturais, a humilhação dos dominados...
8. É aqui que se insere o problema do unilateralismo, em
política externa, a tentativa recente de marginalização das Nações Unidas e a
contra-cultura das "guerras preventivas". Dir-se-á que
tudo isso foi a resposta ao "terrorismo
islâmico", que emergiu à luz do dia, brutalmente, em 11 de Setembro de
2001, mostrando a vulnerabilidade da hiperpotência dominante. Mas foi também a resposta
menos inteligente e menos adequada que podia ser dada a um fenómeno tão
complexo como o terrorismo. O qual tem de ser combatido, obviamente, mas sem
pôr em causa os Direitos Humanos e a sua universalidade.
9. Foi por sentirem o terreno escorregadio e
perigosíssimo para onde se estava a caminhar, pondo em risco a paz mundial -
chegando a falar-se, com grande insensatez, na eventualidade de uma terceira
guerra - que o Presidente Rodriguez Zapatero e o Primeiro Ministro turco
Erdogan, apoiados pelo Secretário Geral das Nações Unidas, lançaram a iniciativa
da Aliança das Civilizações,que já tinha sido sugerida pelo ex-Presidente do
Irão, Kathami.
Contudo, apesar das boas vontades e dos diálogos
ecuménicos organizados, entre outros, pela Comunidade de Santo Egídio, os fanatismos religiosos
- surgidos de vários horizontes - têm-se agravado, não augurando um futuro nada
tranquilo.
10. É por isso que é um dever moral lutar contra a
violência - todas as formas de violência - e aprender a construir, globalmente,
uma cultura de paz. As religiões devem dialogar entre si para encontrarem
caminhos de entendimento, de coexistência pacífica e de paz. Daí que o respeito
pelo pluralismo religioso, num Mundo fortemente globalizado, como o nosso, seja
indispensável para estabelecer um natural convívio com o outro, que é diferente
de nós, mas que, em termos de humanidade, é igual a nós.
11. A violência é péssima para as religiões, tanto a médio
como a longo prazo. E também para o diálogo entre crentes e não crentes, que
convivem hoje, necessariamente, nas nossas modernas sociedades. O
anti-clericalismo deixou de ser agressivo, na medida em que se tornou habitual
a separação entre o Estado e as Igrejas. E a convivência entre crentes e não crentes
– no respeito mútuo - é hoje a regra entre os Estados que formam a União Europeia... Embora
o Reino Unido manter ainda a ficção de ter uma religião do Estado, sendo a
Raínha a chefe tradicional da religião anglicana.
12. Um mundo sem violência, magnífica utopia, do nosso século
XXI - se formos capazes de controlar a violência que todos os dias entra nas
nossas casas pelas televisões, videos, filmes e Internet - e se as Igrejas,
todas, se convencerem que a luta pela paz, pelos Direitos Humanos e pelo respeito
pelo que é diferente de nós, em termos de multiculturalismo e multilateralismo,
é a melhor forma de expressarem o seu amor a Deus.
Muito obrigado!
Lisboa, 21 de Novembro de 2007
Màrio Soares
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