Na tentativa de se fazer uma avaliação moral das nossas acções, apresentam-se duas teorias morais: a teoria de Kant e a teoria de Stuart Mill.
A teoria moral de Kant vai avaliar a moralidade das nossas acções baseando –se na intenção com que realizamos as acções. Por sua vez, a teoria moral de Stuart Mill vai avaliar a moralidade das nossas acções a partir das consequências das acções. Denomina-se a teoria moral de Kant de teoria deontológica, porque é uma doutrina moral que se baseia na noção de dever. Para Kant, na avaliação da moralidade de uma acção aquilo que mais importa é a intenção com que a pessoa age e não as consequências da acção. Concretamente, para Kant, a moralidade de uma acção é cumprir o dever por dever.
A teoria de Stuart Mill é denominada teoria utilitarista, porque defende que o critério para avaliar a moralidade de uma acção é pelas consequências desta (uma acção é moralmente correcta se promover a felicidade para o maior número de pessoas).
A questão que se vai colocar com estas duas teorias morais vai ser a seguinte: Devemos avaliar a moralidade de uma acção pela intenção com que a realizamos ou pelas consequências que dela resultam?
A teoria ética de Kant
Para Kant, o critério para averiguar se uma acção possui conteúdo moral parte da intenção com que o agente realiza uma determinada acção.
Uma acção moral é, para Kant, aquela cuja intenção do agente na sua realização é desinteressada. Por intenção desinteressada entende Kant a intenção que não tem como princípio da acção o interesse particular do agente.
Tornando isto mais claro, uma acção apenas possui valor moral se o princípio que orienta a nossa acção estiver submetido às ordens da nossa razão, pois apenas deste modo estou a agir sem qualquer tipo de interesse. Estou a agir por puro respeito às ordens da minha razão e, neste sentido, a intenção com que realizo a minha acção é puramente desinteressada.
Assim, para Kant, uma acção possui valor moral quando o indivíduo obedece, não aos seus interesses particulares, mas apenas e somente às ordens da sua razão.
É possível agir de acordo com este princípio kantiano?
Sim, é possível, pensemos no exemplo do juiz. O juiz, na avaliação de uma determinada situação, procura encará-la de forma objectiva e imparcial, sem qualquer tipo de interesse particular nessa avaliação. A intenção com que o juiz age na avaliação de um determinado caso é puramente desinteressada.
Por que razão o agir cuja intenção é desinteressada é o único agir válido para Kant? Porque é o único agir que obedece incondicionalmente às ordens da nossa razão, ordens essas que são universais, as mesmas para todos os seres racionais. Por sua vez, o agir por interesse é um agir particular, individualizado, que apenas serve os interesses particulares de um certo indivíduo. Quererei eu que o princípio de acção do indivíduo que age por interesse possa ser universalizado? Não. Imagine o caso de um indivíduo y que pede dinheiro emprestado a um outro com a intenção de não devolver o dinheiro. Este indivíduo agiu de acordo com a seguinte máxima: “Sempre que precisar de dinheiro, peço emprestado com a intenção de não o devolver”. Imagine agora que todas as pessoas agiam de acordo com este princípio. As pessoas iriam por deixar de acreditar umas nas outras, gerando-se um profundo clima de desconfiança nas relações entre as pessoas. As promessas deixariam de fazer qualquer sentido.
Ora, segundo Kant, o agir que obedece a interesses particulares não pode ser universalizável, porque esses interesses apenas dizem respeito a um indivíduo particular e não a todos os indivíduos. O agir cuja intenção é desinteressada é o único agir que todos queremos universalizado, porque é o agir cujo princípio não se submete aos interesses particulares do agente.
Para Kant, o agir cuja intenção é puramente desinteressada é o agir que cumpre ou respeita o dever pelo próprio dever. O que é isto de cumprir o dever pelo próprio dever? É agir respeitando de forma incondicional as ordens da minha razão, sem qualquer tipo de interesse que não seja o do puro respeito pelas ordens da razão. Para Kant, existem certas regras morais (ordens da minha razão) que devem ser cumpridas e respeitadas em todas as circunstâncias possíveis, independentemente das consequências que, ao respeitá-las, possa vir com elas a produzir.
Para perceberes melhor a noção de dever e a sua integração na filosofia moral de Kant, o filósofo alemão estabelece três classificações para esta noção, sendo, sobretudo, a segunda o sentido de dever que nós utilizamos com maior regularidade, mas à qual Kant não atribui qualquer valor moral:
1 – O desrespeito ou incumprimento do dever:
Neste caso, para Kant, a acção não tem qualquer valor moral, porque se trata da pura e simples desobediência às ordens da nossa razão e, portanto, de um agir condicionado pelos nossos interesses particulares. Kant rejeita de imediato este tipo de acção, porque representa precisamente o contrário daquilo que defende para que possamos agir moralmente.
Neste caso, para Kant, a acção não tem qualquer valor moral, porque se trata da pura e simples desobediência às ordens da nossa razão e, portanto, de um agir condicionado pelos nossos interesses particulares. Kant rejeita de imediato este tipo de acção, porque representa precisamente o contrário daquilo que defende para que possamos agir moralmente.
Aqui verifica-se o agir que se encontra constrangido pelos nossos interesses e que desrespeita as ordens da nossa razão.
Ex. O João roubou três maçãs da mercearia do Sr. António, porque não gosta de ficar na fila à espera de ser atendido. O João aqui desrespeitou por completo as ordens da sua consciência racional, que lhe diz para não roubar, e fê-lo porque pura e simplesmente não gosta de esperar, tendo, por isso, submetido o princípio da sua acção aos seus interesses particulares.
2 – O agir apenas em conformidade com o dever:
O agir apenas em conformidade com o dever também não serve para Kant, porque é o caso da pessoa que age de acordo com os seus interesses, mas que não desrespeita as ordens da sua razão. Também aqui o princípio que orienta a sua conduta não é o do puro respeito ou obediência incondicionada à razão, mas o do interesse particular. Ora, também este tipo de acção não possui conteúdo moral para Kant.
Verifica-se neste caso que o princípio da nossa acção se encontra submetido aos nossos interesses, mas não desrespeita as ordens da nossa razão.
Ex.: A mãe da Rita perguntou-lhe onde é que ela foi na sexta-feira à noite. A Rita disse a verdade à mãe, dizendo-lhe que foi jantar à pizzaria Matterelo com alguns colegas, mas fê-lo porque sabia que se mentisse e a mãe descobrisse esta a punha de castigo. Assim sendo, a Rita não mentiu à mãe, porque sabia que, se mentisse e a mãe descobrisse, esta a punha de castigo. A Rita cumpriu o dever (não mentir), não por dever (não porque não deve mentir), mas por interesse (porque tem medo do castigo da mãe). A Rita agiu por interesse, mas, por acaso, não desrespeitou as ordens da sua razão, que lhe diz “não deves mentir”. Significa isto que a Rita não obedeceu incondicionalmente às ordens da sua razão. Apenas se a Rita dissesse para consigo mesma “Não menti à minha mãe, porque é meu dever não mentir” (em toda e qualquer circunstância) é que estaria a agir moralmente segundo Kant, porque estaria a respeitar o dever pelo próprio dever.
3 – O agir que respeita o dever pelo próprio dever:
Para Kant, este é o único agir com valor moral. Porquê? Porque é o único agir que respeita de forma incondicional as ordens da nossa razão, que não age submetido a qualquer tipo de interesse ou inclinação. É esse tipo de acção possível? Sim, temos como exemplo mais evidente o do juiz que decide de forma objectiva e imparcial um determinado caso.
Para Kant, este é o único agir com valor moral. Porquê? Porque é o único agir que respeita de forma incondicional as ordens da nossa razão, que não age submetido a qualquer tipo de interesse ou inclinação. É esse tipo de acção possível? Sim, temos como exemplo mais evidente o do juiz que decide de forma objectiva e imparcial um determinado caso.
Outro exemplo: O Gabriel ajudou uma senhora de idade a atravessar a rua. O Gabriel praticou esta acção, porque sabe que é seu dever ajudar pessoas idosas. Neste caso, o Gabriel cumpriu o dever (ajudar a senhora de idade) pelo próprio dever (pela própria obrigação moral de ajudar pessoas de idade).
Mas que princípio é este que me diz que eu devo cumprir o dever pelo próprio dever?
Esse princípio é o que se encontra presente na consciência de todos os seres racionais e que Kant denomina de lei moral, uma lei da nossa razão. A lei moral é a lei que nos diz o seguinte: “Deves cumprir sempre e em todas as circunstâncias o dever por puro respeito pelo dever”. Para Kant, uma acção apenas é moralmente válida, se se subordinar a este princípio de conduta – a lei moral, cumprimento esse a que a nossa razão nos obriga. Ao respeitar a lei moral, lei da nossa consciência racional, estou a respeitar uma lei que todos nós devemos respeitar enquanto seres racionais que somos.
Aquele que não obedece à lei moral está a agir de forma imoral, porque está a desrespeitar esta lei e, sendo a lei moral, a lei da nossa consciência racional, aquele que a desrespeita está também a agir de forma irracional.
Ora, se agir moralmente é cumprir aquilo que a lei moral ordena por simples respeito à lei moral, esta lei da nossa razão traduz-se assim num imperativo categórico, na medida em que se assume como uma lei incondicional (não se submete a condições para o seu cumprimento, mas enuncia: “Tu deves sempre e em todas as circunstâncias...”) e formal (não me diz quais são as regras ou os deveres que devo cumprir, mas como devo cumprir essas mesmas regras morais ou esses deveres), ao estabelecer o cumprimento do dever como um fim em si mesmo e não como um meio para alcançar algo. O imperativo categórico surge assim como uma ordem incondicionada, dizendo-me aquilo que devo fazer como um fim em si mesmo e não como um meio para obter um fim. Tal como as próprias regras morais, as quais me dizem: “Deves fazer isto...” ou “Não deves fazer aquilo...“, mas não me dizem “Deves fazer isto, se queres obter aquilo”. O se aqui transforma aquilo que eu devo fazer numa ordem condicionada. Condicionada por quê? Por aquilo que eu pretendo obter ou concretizar. Aquilo que eu devo fazer transforma-se num simples meio para esse fim. Ora, para Kant, este modo de agir não tem qualquer mérito moral, porque estou a transformar as ordens da minha razão num meio para obter um fim.
O filósofo de Kõnigsberg distingue imperativos hipotéticos de imperativos categóricos.
O imperativo hipotético é uma ordem condicionada, na medida em que se submete a condições para que cumpramos o dever, dizendo-me o seguinte: “Tu deves fazer isto, se queres obter aquilo”. Por exemplo, eu devo dizer a verdade, se quero ficar bem visto perante os vizinhos do meu bairro. Ora, a expressão que temos aqui tem a seguinte forma: Eu digo a verdade (cumpro o dever) para não ficar mal visto perante os outros (não pelo próprio dever, mas por interesse). Cumpro o dever, não pelo próprio dever, como um fim em si mesmo, mas como um meio para obter um fim. (O imperativo hipotético é o princípio que norteia a acção do indivíduo que age apenas em conformidade com o dever.)
Pelo contrário, o imperativo categórico é uma ordem incondicionada, na medida em que não se submete a qualquer condição para que realizemos uma certa acção, anunciando o seguinte: “Tu não deves mentir aos teus pais, porque esse é teu dever”. Não devo mentir aos meus pais, porque é meu dever não mentir em todas as circunstâncias possíveis e não por causa de qualquer outro interesse ou inclinação. Neste caso, estou a cumprir o dever pelo próprio dever, não minto porque é meu dever não mentir. Para Kant, mentir é sempre incorrecto, sejam quais forem as circunstâncias em que me encontro, porque para Kant as regras morais são absolutas, não existem excepções para um eventual incumprimento dessas mesmas regras.
Cumpro o dever como um fim em si mesmo e não como um meio para obter outro fim.
Kant formulou o imperativo categórico sob diversos modos.
Apenas apresentamos outras duas modalidades diferentes, mas que, ao fim ao cabo, se permutam entre si.
São elas:
Apenas apresentamos outras duas modalidades diferentes, mas que, ao fim ao cabo, se permutam entre si.
São elas:
“Age segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal.” (agir de um modo tal que eu queira que o princípio que determina a minha acção seja também ele seguido por todos os indivíduos)
Imagine a seguinte situação:
A Eva precisava de dinheiro. Pediu algum dinheiro emprestado ao Bernardo com a promessa de lho devolver, mas já tinha a intenção de não lhe devolver o dinheiro.
A Eva agiu de acordo com a seguinte máxima: “Sempre que precisar de dinheiro, peço o dinheiro emprestado, mas com a intenção de não o devolver”.
Pergunta Kant: Poderia este princípio de acção tornar-se lei universal, ou melhor, quereria eu que este princípio de acção se tornasse lei universal? Não, eu não o iria querer, porque, se o quisesse, o princípio destruía-se a si mesmo. Como? Na medida em que a promessa, tal como é entendida, deixaria de fazer qualquer sentido, porque, ao prometer, ninguém iria acreditar na minha palavra, gerando-se como consequência necessária um clima de desconfiança geral no relacionamento entre as pessoas.
Repare neste outro exemplo igualmente elucidativo que Kant nos transmite:
Imagine que o Bruno toma como princípio de acção o seguinte: “Recuso-me a ajudar em toda e qualquer circunstância os necessitados”. Iria o Bruno querer que todas as pessoas tomassem como princípio das suas acções o princípio enunciado pelo Bruno? Não, o Bruno não o iria querer.
Que implicações a transformação desse princípio de acção em lei universal iria ter para o Bruno? Aconteceria o seguinte: no momento em que o Bruno precisasse de auxílio, ninguém o iria auxiliar. Ora, o Bruno não pode aceitar esta situação. Logo, o princípio a partir do qual o Bruno coordena algumas das acções não é, segundo Kant, moralmente correcto.
Que implicações a transformação desse princípio de acção em lei universal iria ter para o Bruno? Aconteceria o seguinte: no momento em que o Bruno precisasse de auxílio, ninguém o iria auxiliar. Ora, o Bruno não pode aceitar esta situação. Logo, o princípio a partir do qual o Bruno coordena algumas das acções não é, segundo Kant, moralmente correcto.
Outra formulação do imperativo categórico é a seguinte:
“Age de tal maneira que uses a tua humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” (agir de um modo tal que, ao agir, encare o outro como o fim da minha acção e não simplesmente como um meio para visar algo)
O exemplo anterior, da pessoa que pede dinheiro emprestado com a intenção de não o devolver, ilustra bem esta situação, mas pelo lado negativo. A pessoa que pede dinheiro emprestado e não o devolve está a encarar a pessoa a quem pede dinheiro como um meio para obter um outro fim, está a colocar a pessoa ao serviço dos seus interesses.
Para Kant, a pessoa tem de ser tratada sempre como um fim em si mesma e nunca como um meio, porque é o único ser de entre as várias espécies de seres vivos que pode agir moralmente. Se não existissem os seres humanos, não poderia haver bondade moral no mundo e, nesse sentido, o valor da pessoa é absoluto.
Ora, para Kant, estes são precisamente os dois critérios sem os quais não podemos atribuir moralidade às nossas acções: o agirmos de acordo com uma máxima universal e o agirmos encarando os outros como fins em si mesmos e não simplesmente como meios, critérios esses que se permutam entre si. (ao agir segundo uma máxima universal, estou a encarar o outro como um fim em si mesmo e, por sua vez, ao encarar o outro como um fim em si mesmo, estou a agir segundo uma máxima universal).
Ora, a esta capacidade do indivíduo agir de acordo com a lei moral denomina Kant de autonomia da vontade. Autonomia da vontade porque o indivíduo não está a agir condicionado pelos seus interesses ou inclinações sensíveis, mas num puro respeito pela lei da sua própria consciência racional. Ao obedecer à lei moral, estou a obedecer a uma lei da minha própria razão. Kant denomina esta vontade que cumpre o dever pelo próprio dever de boa vontade. (Nota: A autonomia da vontade identifica-se em Kant com o agir que cumpre o dever pelo próprio dever.)
Por sua vez, à incapacidade do indivíduo determinar a sua conduta pela lei moral chama Kant vontade heterónoma. A vontade heterónoma é aquela que cumpre o dever, não por dever, mas por interesse, mas também a vontade que simplesmente não cumpre o dever.
Ex.: Cumprir o dever porque a sociedade o exige, porque Deus o requer ou porque os meus pais querem é, para Kant, aquilo que é próprio de uma vontade heterónoma, porque cumpro o dever, não por dever, mas por interesse (nos vários casos do exemplo apresentado, porque alguém – sociedade, Deus ou pais – me diz que devo cumprir o dever). [Nota: A vontade heterónoma em Kant identifica-se com o agir apenas em conformidade com o dever.]
Mas por que razão haveremos nós de obedecer à lei moral?
Kant diria que a lei moral é uma lei da nossa razão e é a racionalidade que nos constitui como seres humanos e nos distingue das outras espécies. Ora, como nós não queremos agir como agem os animais das outras espécies, então o nosso dever enquanto seres humanos é o de agir de acordo com a lei moral.
Agir de acordo com a lei moral é aquilo que nos constitui como seres livres, porque não ajo condicionado por qualquer interesse ou inclinação, mas num respeito puro e incondicional à lei da minha própria razão. É este agir livre, enquanto pura obediência às ordens da nossa razão, que nos constitui igualmente como pessoas, seres com a capacidade de agir moralmente.
In Plátano Editora
Lola
Sem comentários:
Enviar um comentário