domingo, 26 de abril de 2015

Criticas a John Rawls - Michael Sandel







Criticas a John Rawls - Michael Sandel



As críticas de Michael Sandel à justiça como equidade de John Rawls: limites e incoerências do liberalismo deontológico


Resumo: este artigo visa esclarecer algumas idéias centrais de Uma Teoria da Justiça de John Rawls, para, em seguida, apresentar diversas críticas formuladas por Michael Sandel em Liberalism and The Limits of the Justice, na qual o autor aponta uma série de inconsistências da justiça como equidade rawlsiana.

Palavras-Chave: Justiça como Equidade. John Rawls. Críticas. Michael Sandel. Liberalismo na mira do comunitarismo.

Abstract: This article aims to clarify some basic concepts on John Rawls’s A Theory of Justice, to then present several critics on  Michael Sandel’s Liberalism and The Limits of the Justice, in which the author expose some inconsistencies in rawlsian justice as fairness.

KEYWORDShttp://cdncache-a.akamaihd.net/items/it/img/arrow-10x10.png: Justice as Fairness. John Rawls. Criticism. Michael Sandel. Liberalism and communitarianism.

Sumário: Introdução. 1. A teoria da justiça de John Rawls: uma breve exposição. 2. As críticas de Sandel a Rawls. 2.1 O liberalismo deontológico. 2.2 A teoria rawlsiana de pessoa. 2.3 A posição original. 2.4 As falhas da concepção rawlsiana de pessoa. 2.5 Liberalismo e subjetivismo moral. 2.6 O princípio da diferença. 2.7 Acordo na posição original. 2.8 Os limites do liberalismo. 3. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Trata o presente artigo de um levantamento das críticas de Michael Sandel, presentes em Liberalism and the limits of justice, contra A Theory of Justice de John Rawls (doravante denominada TJ). Inicialmente, faremos breve exposição da TJ de Rawls. Em seguida, utilizaremos a sistematização fornecida por Mullhall e Swift, emLiberals and Communitarians, acerca das críticas de Sandel à TJ. Com esse quadro em mente, será possível visualizar as diferenças de pensamento entre Sandel e Rawls.

1. A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS: UMA BREVE EXPOSIÇÃO

John Rawls constrói um método que viabilize a construção de uma concepção do justo, como também procede a um minucioso estudo para revelar o seu próprio conteúdo.
Qual é o principal objeto da justiça? Na ótica rawlsiana, é, genericamente, a estrutura básica da sociedade, porque é dela que emanam e de onde são sentidos todos os efeitos profundos da interação social. A justiça como equidade considera os princípios que pessoas livres e racionais aceitariam numa posição inicial de igualdade. Esses princípios regulam todos os pactos sociais supervenientes (pois o contrato social inicial seria a escolha dos princípios) e são escolhidos sob um véu da ignorância. Na posição inicial, as pessoas escolheriam os princípios de justiça que devem governar a estrutura básica da sociedade. Esta se traduz no meio pelo qual as instituições políticas, sociais e econômicas se estruturariam sistematicamente para atribuir direitos e deveres aos cidadãos, determinando suas possíveis formas de vida – projetos e metas individuais, idéias de bem, senso de justiça (OLIVEIRA, 2003, p.14).
Os dois princípios são assim enunciados, de maneira mais ou menos completa, em Teoria da Justiça: 1º) cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todas as outras; 2º) as desigualdades econômicas e sociais (de riqueza ou de autoridade, por exemplo) devem ser ordenadas de tal modo que, concomitantemente, (a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e (b) sejam vinculadas a posições e cargos abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades (RALWS, 2002, §§3°, 11 e 46). Destaquem-se as duas regras de prioridade: a) pela primeira (prioridade da liberdade), os princípios de justiça devem ser classificados em ordem lexical e, portanto, as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da liberdade; b) pela segunda (prioridade da justiça sobre o bem-estar e sobra a eficiência), o segundo princípio de justiça é lexicalmente anterior ao princípio da eficiência e ao princípio da maximização da soma de vantagens; e a igualdade equitativa de oportunidades é anterior ao princípio da diferença (RALWS, 2002, §46).
Posteriormente, esclarece o próprio Rawls, já na Justiça como Equidade, que, após algumas objeções de Hart, houve algumas modificações na teoria e na formulação dos princípios, que assim passaram a ser exprimidos (RAWLS, 2003,§13): 1º) Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdade para todos; 2º) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (princípio da diferença). Ressalta-se que: a) o primeiro princípio ostenta precedência sobre o segundo; b) do mesmo modo, no segundo princípio, a igualdade equitativa de oportunidades prevalece sobre o princípio da diferença. Essa prioridade significa que a aplicação de um princípio pressupõe a plena satisfação do anterior (RAWLS, 2003, §13).
A posição original proposta por Rawls é evidentemente hipotética, mas as premissas seriam, segundo ele, aceitáveis por todos nós. Seria possível chegar naturalmente ao véu da ignorância por meio da exclusão do conhecimento individual das contingências de cada um, que criam disparidades entre os homens e que lhes inclinaria a orientarem-se pelos seus preconceitos e interesses particulares. Partindo-se de uma posição original em que as partes são iguais e, portanto, éticas, e capazes de bem entender quaisquer princípios propostos e agir conforme eles seria aceitável definir “os princípios da justiça como sendo aqueles que pessoas racionais preocupadas em promover seus interesses consensualmente aceitariam em condições de igualdade nas quais ninguém é consciente de ser favorecido ou desfavorecido por contingências sociais e naturais” (RAWLS, 2002, §4°).
Conforme indica o próprio Rawls, “a ideia intuitiva da justiça como equidade é considerar que os princípios primordiais da justiça constituem, eles próprios, o objeto de um acordo original em uma situação inicial adequadamente definida” (RAWLS, 2002, p. 127). Esses princípios representam a solução para o problema de escolha apresentado pela posição original. Eles indicam o norte que pessoas racionais interessadas em promover seus interesses aceitariam nessa posição inicial de igualdade, para delimitação das regras mais básicas para a necessária associação social (posterior e real). A posição original é um estado de coisas em que as partes são igualmente representadas como pessoas dignas, de modo que o resultado não sofra as arbitrárias influências das contingências ou das demais forças sociais.
O véu da ignorância é o artifício teórico que busca assegurar as condições para a delimitação da noção mais imparcial possível de justiça (RAWLS, 2002, p. 147): ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou o seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante. Também ninguém conhece a sua concepção do bem, as particularidades do seu plano de vida racional, e nem mesmo os traços característicos de sua psicologia.
Segundo Paul Graham, no núcleo desta teoria há a idéia de que o procedimento valida o resultado e, consequentemente, a escolha desempenha um papel fundamental ao explicar porque somos moralmente obrigados a um conjunto de princípios políticos: é a isso que se denomina construtivismo (GRAHAM, 2007, p. 35). O construtivismo possui vantagem sobre outros métodos alternativos de justificação porque os princípios podem ser, ao menos hipoteticamente, reconhecidos pelos agentes como produto de suas próprias ações (escolha), tornando-os mais propensos e motivados a respeitá-los (GRAHAM, 2007, p. 35). Ressalte-se que, posteriormente à TJ, e ainda antes do advento do Liberalismo Político, Rawls já sustentava que o seu construtivismo era, em verdade, político e não moral. Tal recorte e aperfeiçoamento rawlsiano, consolidado nas obras seguintes, traz algumas conseqüências sobre o próprio procedimentalismo inicialmente almejado, servindo, inclusive, de réplica satisfatória a algumas críticas pontuais de Sandel e Taylor, focadas essencialmente na obra primeira, a TJ, com pretensões nitidamente mais ousadas, amplas e racionais.
Convém, ainda, tecer algumas palavras sobre o procedimentalismo. Rawls esclarece que a justiça procedimental pode ser perfeita, imperfeita a pura. A justiça procedimental perfeita possui um critério independente e anterior para a consagração de uma divisão justa, sendo, adicionalmente, possível criar um procedimento que com certeza trará o resultado desejado (RAWLS, 2002, §14). Já na justiça procedimental imperfeita, embora haja um critério independente para produção do resultado correto, não há um processo factível que com certeza leve a ele (RAWLS, 2002, §14). Em contraste com ambas, surge a justiça procedimental pura: aqui não há critério independente para o resultado correto; em vez disso, surge um procedimento correto ou justo cujo resultado será também correto ou justo, seja ele qual for, desde que respeitada a aplicação do procedimento (RAWLS, 2002, §14). Esta última postura é a declaradamente defendida por Rawls em TJ. Por este motivo, há necessidade de se efetivar uma configuração do procedimento na posição original que seja hábil a conduzir a um resultado justo.
Para que se possa aplicar essa noção às partes distributivas, Rawls procede às delimitações de uma estrutura básica justa, que pressupõe uma constituição política justa e uma organização justa das instituições econômicas e sociais: apenas com tais configurações é que se pode dizer que há um o pré-requisito do procedimento justo (RAWLS, 2002, §14). Rawls alinha-se a Kant e apresenta objeções contra teorias utilitaristas e perfeccionistas, que priorizam o bem (good) sobre justo (right): essas teorias são teleológicas porque posicionam um fim que devemos perseguir (GRAHAM, 2007, p. 35). Essa formulação é amparada em W.D. Ross, que define o bem (good) como aquilo que é valioso perseguir, ao passo que o justo é aquilo que é obrigatório (ROSS, 1998, p.3). O justo é uma qualidade referente à ação, enquanto que o bom é um qualificativo ligado à qualidade do fim que se persegue. A diferenciação torna-se mais clara com a motivação do agente: se o respeito aos princípios de justiça decorre de haver o agente os haver (hipoteticamente) escolhido – o justo é anterior ao bem –  ou porque os fins possuem um valor intrínseco – o bem é anterior ao justo (GRAHAM, 2007, p. 36).
Críticas como as de Sandel apontam possíveis falhas ou inconsistências em TJ que, reflexamente, atingem a própria consistência ou viabilidade do pretendido procedimentalismo puro. A crítica de Sandel, em especial, é compreendida após longo percurso teórico que o autor realiza, culminando em conclusões que indicam os limites que o liberalismo rawlsiano não consegue superar: há menos neutralidade em TJ do que se poderia supor; a concepção de pessoa pressuposta é incoerente, além de ser indesejavelmente metafísica. É o que veremos após o levantamento das críticas.
Detalhado um pouco da TJ de Rawls, examinemos, agora, as críticas de Sandel.

2. AS CRÍTICAS DE SANDEL A RAWLS

Neste tópico, serão expostas sistematicamente as críticas de Sandel à TJ de Rawls, conforme a exposição didática fornecida na obra de Mullhall e Swift, em coautoria.
Os quatro tópicos da agenda comunitária – catálogo da crítica comunitarista ao liberalismo, elencado por Mullhall e Swift – estão presentes na suma da crítica de Sandel a Rawls. 

Para esclarecer, Sandel sustenta que: 


a) Rawls está mais comprometido com uma concepção metafísica falha de pessoa, em detrimento de uma concepção mais substantiva; 


b) Rawls incorre num individualismo anti-social, em que o senso de comunidade descreve um mero possível fim de um sujeito antecedentemente individuado em vez de um ingrediente constitutivo da identidade dos sujeitos; 


c) Rawls reduz a escolha moral a expressões arbitrárias de preferências, comprometendo-se mais com a visão subjetivista da moralidade, em detrimento da objetivista; 


d) a suposta neutralidade de Rawls entre concepções competitivas de bem é realmente bem menos plausível do que aparenta ser; 


e) Rawls também invoca, implicitamente em alguns pontos de sua teoria, uma noção intersubjetiva de sujeito, que é inconsistente com a concepção de sujeito antecedentemente individuado que ele pretende em outros pontos da teoria.  A agenda comunitária compreende os itens “a” a “d” elencados. O item “e” é um ataque adicional de Sandel a Rawls, radicado em uma contradição interna de TJ (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 41).


A compreensão detalhada das críticas deve partir do enquadramento que Sandel aplica a Rawls, encarando-o como um exemplo contemporâneo de liberalismo deontológico.

2.1 O Liberalismo Deontológico

O liberalismo deontológico é uma corrente teórica sobre a primazia da justiça entre outros ideais morais e políticos, com a qual Rawls se identifica ao defender que o justo é anterior/prioritário em relação ao bem. A sociedade, sendo composta de uma pluralidade de pessoas em que cada uma sustenta sua própria concepção de bem, seus objetivos e seus interesses particulares , é melhor organizada quando regida por princípios que não pressupõem, em si, qualquer concepção particular de bem. O que justifica tais princípios não é a promoção ou maximização do bem, mas a noção de justo como uma categoria moral que é dada anteriormente ao bem, e que dele é independente (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 42).

Assim formulado, o liberalismo deontológico imprime a primazia à justiça em duas maneiras. Pela primeira, fica consignada a primazia moral da justiça, de maneira que nenhum outro valor político ou social possa triunfar sobre ela, de modo que os direitos individuais dos cidadãos não podem ser sacrificados em busca de outros bens ou objetivos. Além deste sentido de primazia, surge uma segunda implicação, mais profunda e distintiva, que, vendo a justiça como um valor de justificação privilegiada, o justo é anterior ao bem não só no sentido de reclamar precedência, mas também no sentido de que os princípios de justiça sejam derivados independentemente do bem. 

Essa postura traz duas vantagens: 


a) a primazia fundacional da justiça torna a sua justificação independente dos valores particulares (concepções de bem, interesses ou objetivos particulares); 


b) a derivação dos princípios não decorre de uma referência particular ao bem, pois esta postura conduziria a uma imposição coercitiva de concepção de bem a alguém que sustentasse outra concepção distinta. Assim, para estabelecer uma primazia moral segura e não-coercitiva à justiça, a derivação dos princípios deve ser fundamentado em algo distinto da multiplicidade de circunstâncias particulares e competitivas adotadas pelos seres humanos (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 42-43).


Em Kant, o grande liberal deontológico clássico, é a sua teoria do sujeito/pessoa (“self”) que explica essa prioridade do justo sobre o bem. Para ele, o que é mais fundamental e valoroso no ser humano não são os interesses particulares e concepções do bem que formulam, mas a capacidade de pensar e agir de maneira autônoma, escapando da heteronomia presente no reino da natureza causalmente determinada. Assim, o que importa não são os fins que os humanos elegem, mas a capacidade de escolher, e se essa capacidade é anterior a qualquer bem ou concepção particular, então o sujeito é anterior/prioritário em relação aos seus fins. Logo,a tese da prioridade absoluta da justiça é paralela à tese da prioridade absoluta do sujeito sobre os fins (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 43-44).

Sandel destaca três pontos na TJ de Rawls que permitem designá-lo como um liberal deontológico.

 O primeiro é a absoluta primazia moral conferida à justiça, que é vista como a primeira virtude das atividades humanas. 


O segundo é a primazia fundacional da justiça, vista como antecedente e prioritária em relação ao bem, afastando-se das doutrinas teleológicas que definem a prioridade do bem sobre o justo. 


O terceiro ponto é a regulação da sociedade com amparo no que é fundamental na personalidade humana: os seres humanos entendidos como pessoas morais são, fundamentalmente, eleitores autônomos de seus fins, de maneira que a sociedade deve ser organizada por um caminho que respeite essa característica da personalidade sobre qualquer outra (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 44-45).
Com isto, fica evidente a necessidade de avaliar a noção subjacente de pessoa na TJ.

2.2 A teoria rawlsiana de pessoa

A noção rawlsiana de pessoa é uma posição moral substantiva, que vê na concepção do sujeito uma sustentação do que é mais valoroso e digno de respeito no nosso tratamento aos seres humanos. Tanto é assim, que a noção de pessoa/sujeito desempenha um papel central em sua teoria. Todavia, além dessa visão ética de primeira ordem sobre o valor moral da pessoa, há de se pressupor uma visão ética de segunda ordem que a sustente, uma espécie de antropologia filosófica. Em Kant, esse papel seria desempenhado pela visão metafísica de pessoa, que fundamenta a reivindicação moral de os seres humanos terem um direito absoluto de serem tratados como fins e não como meios, o que o envolve numa reivindicação sobre um reino noumênico para além do espaço e tempo, em que todos os seres humanos participam enquanto racionais. Os seres humanos são, assim, em Kant, visto como seres de aspectos duais, uma parte da natureza e simultaneamente possuído de faculdades que transcendem a natureza. Rawls, contudo, pretende evitar esse quadro metafísico tão controverso oriundo de Kant (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 45).  

Ocorre que a ênfase ralwsiana no ser humano como um agente autônomo na escolha dos fins leva o filósofo a assumir uma prioridade moral absoluta do sujeito sobre seus fins. Como a capacidade de escolha é anterior e prioritária em relação ao efetivo exercício e escolha dos fins, o lugar do valor moral do ser humano deve ser dado anteriormente aos fins. Para Sandel, essa postura é obtida por Rawls mediante a  chancela de uma prioridade metafísica: em Rawls, a unidade essencial ou identidade do sujeito é também algo dado anteriormente aos fins que ele escolhe. Então, para Sandel, é esse absolutismo da prioridade metafísica que explica o absolutismo da prioridade moral (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 45-46).

Sandel sustenta essa argumentação com base em fragmentos da TJ que aparentam ter um contorno mais metafísico que moral. O fato de o sujeito escolher os seus fins faz presumir que já há um sujeito antes da escolha, o que faz concluir que a constituição do sujeito (seu contorno ou identidade) não pode ser resultado dos fins que ele escolhe, porque sua unidade já é estabelecida antes de ele realizar qualquer escolha durante o curso da experiência. Essa conseqüência, segundo Sandel, é acolhida por Rawls. 

Assim, para Sandel, a unidade antecedente do sujeito significa que ele é sempre e irredutivelmente anterior aos seus fins e valores, e isso é inaceitavelmente metafísico, por contradizer nossa natureza essencial de pessoas (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 46).


Assim, segundo Sandel, Rawls aparenta sustentar que a capacidade de o ser humano autonomamente escolher os fins não é apenas uma entra várias capacidades igualmente valiosas, mas sim algo que configura a essência de sua identidade. O respeito à autonomia humana não é um valor entre vários na vida humana, mas o valor fundamental que deve sempre prevalecer sobre qualquer outro. Falhar em respeitar essa capacidade significa falhar em respeitar um traço metafísico fundamental da pessoalidade. Assim, o sujeito para quem a justiça é a primeira virtude não é só um agente autônomo de escolha, mas um sujeito antecedentemente individuado: trata-se de um sujeito cujos limites e fronteiras são fixados absoluta e anteriormente à sua escolha dos fins (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 46-47).

A feição metafísica do sujeito antecedentemente individuado não é só uma decorrência da prioridade absoluta da autonomia: trata-se, também, de um componente vital da posição original da TJ, construção hipotética que praticamente fundamenta todos os argumentos de Rawls.

2.3 A posição original

Sandel argumenta que Rawls assume algumas suposições sobre como as partes se enxergam na posição original e como enxergam a sociedade. Essas suposições, com todas as delimitações integrantes do véu da ignorância, são, no entender de Sandel, essenciais porque determinam o que as partes escolherão ao considerar como as instituições básicas da sociedade devem ser construídas, momento em que também serão consideradas a atribuição feita às instituições de alguma concepção sobre a natureza da sociedade, bem como ao que devemos delas esperar, além de alguma concepção de como elas se relacionam entre si e os demais membros. Todas essas delimitações e suposições emergem quando, exemplificativamente, Rawls cataloga as condições que estimulam a virtude da justiça (circunstâncias de justiça): as circunstâncias de justiça são obtidas quando pessoas mutuamente desinteressadas têm diante de si reivindicações conflitantes sobre a divisão das vantagens sociais sob condições de escassez moderada. Desta noção, por exemplo, Sandel argumenta que a adesão social é vista como uma fonte de vantagens pessoais, implicando que a motivação primária pela qual as pessoas sem engajam em relações sociais é a obtenção de benefícios pessoais que não poderiam ser obtidos sem um tal esquema cooperativo (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 47-48).

As demais limitações do véu da ignorância teriam, para Rawls, o mérito de clarificar e simplificar o pensamento, bem como afastar eventuais fraquezas teóricas. A título de exemplo, Rawls afasta a benevolência da posição original, optando pelo desinteresse mútuo, por reputar que a outra opção consistiria em uma base mais fraca. Mas Sandel discorda categoricamente desse argumento, pois a opção pela benevolência não é conceitualmente mais problemática que o desinteresse mútuo, e se a pretensão é para diminuir a fraqueza no sentido de ser mais realista, então Rawls estaria incorrendo em uma generalização empírica controversa em um procedimento de representação que deve ser apto a testar nossas convicções sobre valores morais e políticos. Na verdade, para Sandel, essas suposições de Rawls sobre as motivações das partes na posição original decorrem da sua concepção de sujeito e sua relação com seus fins (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 48).

Para Sandel, na formulação de Rawls, é a separação do sistema de fins de cada indivíduo que é essencial: a sociedade consagra como fundamental a pluralidade e a possibilidade de cada indivíduo ter sua própria concepção de bem, sem necessidade de identidade de interesses entre diversos sujeitos. Essa pluralidade e separação é vista como um aspecto da natureza fundamental da subjetividade humana (tratando a separação dos outros como parte do que é ser uma pessoa). Mas Rawls veria qualquer coincidência entre esses fins escolhidos no máximo como uma feliz coincidência das circunstâncias. Em termos metafísicos, nós, primeiramente, somos indivíduos distintos e, somente depois, formamos relações sociais com os outros e ingressamos em uma atividade cooperativa, de maneira que aquelas relações sociais não são integradas na nossa constituição como sujeitos. Deste modo, para Sandel, ver a sociedade primeiramente como uma sistema de cooperação implica ver seus membros como indivíduos já constituídos quando entram na sociedade para suas mútuas vantagens. Neste sentido, a pluralidade das pessoas é prioritária sobre a unidade de sua reunião (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 48-49).

Sandel argumenta que pressupor o mútuo desinteresse tem fundamentos metafísicos similares aos expostos. Não se trataria de pressupor uma psicologia humana concreta centrada apenas no sujeito, mas de supor a forma como se dá as relações entre um sujeito humano e suas motivações em geral (sejam elas egoístas ou altruístas). Os interesses do sujeito são apenas possuídos pelo sujeito, pois nenhum de seus fins constitui a sua identidade: meus fins são meus, e nunca o próprio “eu”. Por isso, para Sandel, Rawls assume não só que todos os seres humanos são individuais, mas que eles são individuados – ou seja, suas identidades são fixadas –  anteriormente aos fins, desejos ou interesses que possam ter (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 49-50).
Supondo correta essa antropologia filosófica subjacente à TJ e detectada por Sandel, algumas objeções surgem contra Rawls, conforme veremos no próximo tópico.

2.4 As falhas da concepção rawlsiana de pessoa

Sandel aponta, então, três falhas na concepção rawlsiana de pessoa.
Em primeiro lugar, a relação entre o sujeito e seus fins, objetivos e interesses seria tão-somente voluntarista: os fins são meras escolhas que o sujeito escolheria anexar para si, mediante um exercício de vontade. Tal postura exclui outras tradições filosóficas morais ou políticas que apontam uma relação distinta, tal como a das doutrinas que sustentam que os sujeitos se ligam aos seus fins por um ato de reconhecimento, e não de mera escolha dentro de um possível catálogo disponível (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 50).
Em segundo lugar, a identidade do sujeito, sendo fixada antecedentemente à escolha dos fins, cria uma distância que sempre permanecerá entre o sujeito e os seus fins ou valores: não importa o quanto o sujeito possa se identificar com um fim dado, ele é independente e pode sempre apartar-se de qualquer valor, por mais que aquilo possa constituir o próprio plano (a causa primordial do engajamento) de vida do sujeito. Os fins são nada mais que interesses de uma pessoa, ou algo apenas a ser possuído, mas nunca integrado à minha identidade. Tal postura elimina experiências morais distintas que reconhecem alguns fins ou valores como constitutivos de nossa própria identidade. Exclui-se a possibilidade de propósitos mantidos em comum com outros sujeitos que inspiram um auto-entendimento intersubjetivo mais expansivo, em que o sujeito pode se identificar com a própria comunidade, vendo sua condição de membro de alguma sociedade como essencial à constituição de sua identidade. O próprio conflito de reflexão intra-subjetiva também fica eliminado. Sandel considera que há experiências na vida moral e política que só podem ser compreendidas sob essa perspectiva rejeitada por Rawls. Assim, Rawls se revelaria incapaz de lidar com um alcance completo das circunstâncias morais humanas e da própria autocompreensão (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 51-52).
A terceira consideração é uma versão mais específica da segunda: o senso de comunidade em Rawls é bastante pobre, sendo descrito como um possível objetivo de sujeitos antecedentemente individuados, mas não como um ingrediente de suas próprias identidades. Então, indivíduos com objetivos comunitaristas na esfera política poderão perseguir seus fins, mas apenas dentro de uma sociedade bem ordenada tal como definida por Rawls: eles não poderão sequer questionar se a sociedade é ela mesma uma comunidade em sentido constitutivo, pois o bem da comunidade política rawlsiana é a mera participação para obtenção de benefícios mútuos. Assim, uma sociedade que apóia uma absoluta prioridade para a justiça exclui a idéia de que a comunidade possa especificar o sujeito. (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 52).

Assim, na visão de Sandel, as restrições impostas em TJ conduzem a uma concepção de sujeito radicalmente inadequada para uma reflexão de circunstâncias morais humanas. Consequentemente, uma sociedade construída com princípios ralwsianos de justiça será muito menos neutra entre concepções concorrentes de bem do que poderia parecer. Para Sandel, a primazia conferida pelo respeito liberal à autonomia individual, que fundamenta sua pretensão de neutralidade, só pode ser justificada se pressuposto um compromisso para com uma certa concepção de pessoa. E essa pressuposição possui conseqüências que alteram significativamente o tipo e o grau de neutralidade que o liberalismo pretenda arrogar. O zelo pela autonomia deve assegurar que a liberdade de um cidadão não interfira no direito de todos os cidadãos de exercerem a mesma liberdade, de modo que a limitação da autonomia de um cidadão dado só pode ser limitada pela necessidade de proteger a autonomia de todos (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 53-54).

Essas conseqüências indesejáveis para o liberal seriam, segundo Sandel, duas.

Em primeiro lugar, a pretensão de neutralidade entre concepções concorrentes de bem no reino político é fundada numa base não-neutra (sobre a natureza da subjetividade humana) situada no reino da metafísica. 


Além disso, surge uma segunda conseqüência: essa metafísica não-neutra diminui o quadro de neutralidade disponível no reino da política e da moralidade, pois se a natureza da concepção de pessoa garimpada por Sandel em TJ for correta, um amplo espectro de concepções de bem que poderiam ser de fato consideradas são discriminadas contra uma sociedade liberal. A concepção liberal do sujeito antecedentemente individuado exclui qualquer concepção de bem que permita ou pressuponha ligações pessoais constitutivas a valores, projetos e comunidades. Não haveria espaço para abrigar concepções de bem amparadas em tais ligações constitutivas e fundamentadas em uma concepção de sujeito bastante diferente da liberal (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 53-54).


Especificando um pouco mais: a TJ não pode abrigar sujeitos compromissados com concepções fortemente comunitaristas da política, pois a sociedade rawlsiana forçaria esses cidadãos a pensar neles mesmos como participantes de um esquema de cooperação mútua, buscando vantagens que não poderiam obter sozinhos, mas desamarrados de seus cidadãos companheiros por ligações cuja separação ou alteração mudariam suas próprias identidades como pessoas. Além disso, a concepção liberal de pessoa que fundamente essa concepção política – já bastante limitada – também distorce nossa compreensão potencialmente constitutiva sobre as relações sociais não políticas: as relações em que os outros sujeitos relevantes vêem-nos não como cidadãos, mas como companheiros de partido, de religião ou de parentesco. O sujeito antecedentemente individuado é incapaz de desenvolver um senso constitutivo de identidade com sua própria família. Há o exemplo de uma mãe que tenha como maior objetivo da vida o bem de seu filho, mas para a concepção liberal subjacente, isso não seria integrado ao seu senso de identidade: no máximo, seria um fim que ela aparenta ter, mas não algo que a identifica. Deste modo, seja a ligação em questão de natureza política ou não política, a TJ parece deixar pouco espaço para aqueles que entendam suas relações com os outros como constitutivas de sua própria identidade (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 54-55).

Assim, Sandel mostra que os sacrifícios exigidos em nome da justiça podem ser bem mais significativos e extensos que os admitidos pelos próprios liberais, argumentando que quaisquer tais sacrifícios são feitos, em última instância, em nome  de uma concepção de pessoa tão antecedentemente individuada quanto antissocial e metafísica, incorrendo em incoerências que fulminam os atrativos das teses liberais. Por este motivo, o liberalismo ralwsiano estaria sujeito a uma miopia metafísica: uma série de concepções de bem seriam incapazes de aflorar porque a fundamentação metafísica, associal e individualista dos princípios liberais de justiça são incapazes de reconhecer as variedades de experiências humanas morais ao redor das quais se cristalizam algumas concepções de bem. A pretensão rawlsiana voltada ao zelo pela autonomia individual é afetada pela imposição de fortes e implausíveis restrições sobre o espectro de valores, projetos e concepções de bem que o sujeito é permitido escolher (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 55).

Estes pontos de falhas em Rawls correspondem, com relação à agenda comunitária, às críticas contidas nos tópicos do individualismo anti-social (cegueira rawlsiana quanto à importância constitutiva das concepções de bem de cunho eminentemente social) e da falta de neutralidade entre concepções de bem concorrentes. Tais problemas surgem, para Sandel, em razão da concepção rawlsiana de pessoa (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 55-56).

Um outro tópico dessa agenda, referente ao julgamento moral de feição predominantemente subjetiva, também decorre da concepção rawlsiana de pessoa, e será abordado no próximo tópico.

2.5 Liberalismo e subjetivismo moral

Quando Rawls explica como os indivíduos exercem a liberdade que uma sociedade liberal lhes proporciona, em especial no ato de escolha da concepção de bem, o exercício da racionalidade se dá como a escolha de um plano entre vários e do respectivo curso de ação que melhor realize seus desejos fundamentais. Para Sandel, essa ênfase final no desejo, traz duas conseqüências cruciais (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 56-57).

Uma primeira conseqüência é que, embora os desejos e objetivos do sujeito sejam objeto de deliberação racional, a própria pessoa como sujeito daqueles interesses não é submetida a reflexão: podemos refletir sobre os desejos que temos, mas não sobre o tipo de sujeitos que nós somos. A auto-reflexão não deixa espaço para perguntarmos quem realmente somos, limitando-se a perguntar o que nós sentimos. Essa situação é completamente esperada quando se leva em conta a concepção rawlsiana de pessoa: se o sujeito é antecedentemente individuado, então o tipo de seres que somos já é dado independentemente de qualquer reflexão. De fato, se todos os nossos fins, desejos e crenças são, na melhor das hipóteses, atributos contingentes do sujeito (coisas que possuímos ou temos, ao invés de algo que integra nossa própria identidade), então não há nada no sujeito para ser pensado (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 57-58).

A segunda conseqüência é que o quadro rawlsiano de escolha racional como uma matéria de sopesar a intensidade relativa de desejos sugere que o estágio final de tal deliberação é uma mera expressão revelada de preferências pessoais. O agente pesa desejos e vontades existentes de uma maneira tal que a escolha de uma plano de vida não é, no fim das contas, uma escolha: o agente meramente faz uma introspecção, estabelece a presença de um desejo dado e então age em direção a ele. Trata-se de acessar um inventário psíquico de desejos e vontades presentes, e não de escolher os valores que ele professaria ou os objetivos que perseguiria. Isso ocorre porque o sujeito já é antecedentemente individuado, o que faz relegar os desejos e vontades para o status de atributos contingentes finais do sujeito. Mas se minha concepção de bem é baseada em fatos essencialmente tão contingentes sobre mim, então o meu compromisso com minha concepção não possui mais mérito ou valor que isso: como produto de meus desejos, esse compromisso não é menos governado pelas contingências, e então não há base mais profunda que o simples fato de que me contento em mantê-los com um certo grau de intensidade. Assim, minhas escolhas e fins e concepções são arbitrárias, pois dão expressão a minhas preferências, com base não menos subjetiva nem mais racional que isso. Para Sandel, como o liberal não pode dar preferência a uma dada concepção de bem em detrimento de outras, seria inútil tentar construir uma sociedade baseada em alguma concepção. Sandel também defende que o argumento de Rawls no sentido de respeitar as concepções de qualquer sujeito não decorria meramente da violação estatal de neutralidade, mas da crença de que essas escolhas pessoais não passam de uma escolha moral irrelevante de um ponto de vista moral. Isso conduz Rawls a um ceticismo moral geral (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 58-59).

Além dessas críticas, Sandel ainda pretende demonstrar que Rawls assume algumas posturas contraditórias quanto à concepção de pessoa. Tal será o objeto do próximo tópico.

2.6 O princípio da diferença

Para Sandel, a defesa rawlsiana do princípio da diferença conduz a duas concepções contraditórias de pessoa simultaneamente adotadas. Como, para Rawls, a distribuição dos dons e talentos naturais é algo inteiramente contingente e completamente arbitrário de um ponto de vista moral, não há mérito do sujeito em possuí-los, o que exclui a possibilidade de um usufruto estritamente individual desses ativos distribuídos com uma aleatoriedade comparável à de uma loteria. Além disso não subsiste o mérito individual por não haver um direito pré-institucional em que a sociedade valorize um talento particular para fins individuais em detrimento de qualquer outros valores (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 59-60).

Sandel ressalta que essa postura não é incompatível com a concepção de um ser antecedentemente individuado: como os talentos naturais individuais são meras contingências, não constituem atributos decisivos na identidade do sujeito, de maneira que a sua utilização em benefício dos demais não afronta a identidade do sujeito (nem o trata como meio ao invés de fim), pois o que justifica a falta de mérito não é a arbitrariedade da distribuição natural dos dons, mas o fato de eles não serem constitutivos da sua identidade. (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 61-62).

Para Sandel, a incoerência entre o princípio da diferença e a concepção rawlsiana de pessoa emerge em outros dois pontos. De um lado, a distinção entre o sujeito e o que ele possui (no caso, o talento) é tão nítida que ele se arrisca lançar à armadilha kantiana de formular um sujeito radicalmente desencorpado. O sujeito rawlsiano seria tão afastado de suas características empíricas que ele poderia ser uma pura consciência que flutua/oscila entre os corpos com seus traços, e isto seria uma grande incoerência. De outro lado, ao aceitar essa distinção e entendermos justificada a conclusão de não haver mérito individual na posse dos dons naturais, isso não justificaria a conclusão de que a sociedade teria esse mérito. De onde viria esse direito que caberia à sociedade? Para responder isso, Rawls teria que pressupor um sujeito bastante diferente: deveria admitir que, algumas vezes, o sujeito é identificado com os membros de sua comunidade em um sentido constitutivo, de maneira que a redistribuição dos frutos dos talentos individuais naquela comunidade não seria a utilização do sujeito como meio, mas também como fim. Esta seria a maneira de experimentar a redistribuição como algo que não violaria a integridade do sujeito, pois o senso de comunidade é forte o suficiente (suficientemente integrado ao senso individual de identidade) para transcender reações tão puramente individualistas. Algumas passagens de TJ revelariam que Rawls não estaria inconsciente desse desdobramento, mas o foco de Sandel é que essa forma de encarar os dons naturais só pode ser justificada pela invocação de uma concepção intersubjetiva do sujeito e de uma concepção constitutiva de comunidade – ambas incompatíveis com a postura declaradamente assumida por Rawls (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 62-63).

Uma incoerência similar emerge da análise da posição original e da investigação sobre como ocorrem os acordos ali realizados sobre os princípios de justiça.

2.7 Acordo na posição original

 A posição original é um instrumento de representação em vez de uma situação real, dali brotando um contrato hipotético. Tais como os contratos reais, os hipotéticos pressupõem a pluralidade e distinção das partes, enfatizando o elemento de escolha envolvido no consenso.  Diferentemente dos contratos reais, contudo, o acordo rawlsiano não pode ser injusto: em razão do véu de ignorância, não pode haver distinções de conhecimento e poder entre as partes, nem pode abrigar imposições ou coerções tão comuns nos contratos reais. Se as partes estão em uma situação que não pode resultar em injustiça, então trata-se de uma instância de justiça procedimental pura: o resultado é justo independentemente de qual seja, dadas as condições equitativas do acordo. Apesar de, em tese, haver certa liberdade na escolha dos princípios, Rawls sustentaria que apenas uma escolha seria compatível com todas as delimitações impostas à posição original. Nesse ponto, Sandel detecta algumas implicações significativas (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 64).

  Dentre as conseqüências que Sandel aponta, uma das primeiras é a falta de poder de barganha na posição original, bem como as discussões em sentido típico, pois o véu de ignorância acaba por afastar todas as diferenças entre as partes que poderiam ocasionar aquelas situações. Assim, não haveria um acordo, pois todos raciocinam do mesmo modo, com os mesmos objetivos e preferências: uma pessoa encontra um resultado plausível para ela como se o mesmo resultado fosse obtido por todas as outras. O acordo, ao final, não seria uma pactuação livremente feita entre as partes, mas o reconhecimento da validade de certas proposições: trata-se de uma concordância em sentido cognitivo, e não em uma perspectiva voluntarista. 

O véu da ignorância, em verdade, não coloca as pessoas em condições similares, mas em condições idênticas, nas quais nenhuma se distingue das outras, o que afasta a possibilidade de pluralidade (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 64-65).
Assim, o que há detrás do véu da ignorância não é muitas pessoas, mas um único sujeito – um ser intersubjetivo que Rawls tanto rejeitaria por ser liberal.  Para Sandel, a delimitação que Rawls faz da posição original e de suas partes envolve a atribuição de um senso de comunidade muito forte, com feição certamente constitutiva de identidade das partes. A aceitação da posição original demandaria um reconhecimento de laços morais que nos ligam uns aos outros, laços que seriam totalmente proibidos em uma concepção de sociedade em que as partes são mutuamente desinteressadas (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 65-66).

Fica evidente, assim, como há um paralelo entre a posição original e o princípio da diferença: ambos pressupõem, ao final, um sentido constitutivo de comunidade, que reflete numa concepção de pessoa incompatível com a concepção subjacente adotada oficialmente na TJ de Rawls (MULLHALL & SWIFT, 1996, p. 66).
Expostas as principais argumentações pontuais de Sandel, avancemos para as conclusões.

2.8 Os limites do liberalismo

Ante o exposto, nota-se como Sandel argumenta que a forma como Rawls delimita o sujeito antecedentemente individuado à escolha de seus fins e incapaz de ligações comunitárias/sociais constitutivas de qualquer espécie, conduz a uma noção de comunidade política como um mera sistema de cooperação entre pessoas mutuamente desinteressadas, a uma concepção de julgamentos morais como expressões arbitrárias de preferência, e a um grau de neutralidade entre concepções concorrentes de bem inferior ao almejado. Além disso, Sandel defende que os traços da própria TJ pressupõem a existência de ligações constitutivas com a comunidade política cuja possibilidade é negada pela concepção oficial e subjacente de sujeito (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 66-67).
Sandel, como um comunitarista, está tão convicto de que nosso sentido de identidade como sujeito é inseparável de uma consciência de nós mesmos como membros de uma família, classe ou comunidade particular, inseridas numa história específica, que a participação no reino político, e a participação em outras comunidades refina e desenvolve a nossa própria identificação. O próprio Rawls, embora possua uma concepção mais pobre de comunidade, vista como um mero esquema de produção e distribuição de vantagens e benefícios mútuos entre seres mutuamente desinteressados, vale-se, em alguns pontos de TJ, de argumentos que acabam por pressupor esse senso constitutivo de comunidade. Isso seria um flagrante da importância dessa perspectiva (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 66-67).

Para Sandel, também o fato de Rawls acomodar a liberdade como princípio primário, e a igualdade como um princípio lexical secundário, conduz à noção de sujeito antecedentemente individuado, em razão da primazia da autonomia. Isso gera a incompatibilidade com o princípio da diferença, pois neste é subjacente a concepção de pessoa afinada com a ligação comunitária constitutiva. Por Rawls priorizar a liberdade sobre a igualdade, não haveria espaço para a valoração da ligação comunitária como algo constitutivo de identidade, mesmo que se adote o princípio de igualdade numa ordem lexical secundária. Assim, Sandel conclui que o conflito entre liberdade, igualdade e fraternidade não pode adotar uma ordem prioritária, pois todas seriam problemáticas, uma vez que tais valores fundamentais não poderiam entrar em conflito na arena política (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 67-68).

Da forma como exposta a crítica de Sandel, uma defesa de Rawls contra as objeções de Sandel deve focar na postura que Sandel vislumbra na concepção subjacente de pessoa (na TJ de Rawls): se o diagnóstico sobre a concepção de pessoa realizado por Sandel estiver correto, todas as demais críticas tornam-se mais reforçadas, se equivocado, a crítica como um todo carecerá de fundamento. Assim as perguntas a fazer seriam: a) Rawls realmente pressupõe uma concepção de pessoa antecedentemente individuada e metafísica?; b) se Rawls não pressupõe uma tal concepção, como justificar a prioridade absoluta da autonomia individual em uma sociedade liberal?; c) como sustentar, por outro caminho, que as pessoas possuem esse mais elevado interesse na proteção dessa capacidade – reflexo da prioridade do justo sobre o bem? (MULLHALL & SWIFT, 1996, pp. 67-68).

3. CONCLUSÃO

Expostas as principais idéias da TJ de Rawls e as principais idéias que fundamentam as críticas de Sandel direcionadas ao liberalismo rawlsiano, resta evidenciada a diferenciação entre os dois autores. 

E, conforme anunciado anteriormente, percebe-se a concentração de Sandel, no que diz respeito à crítica a TJ de Rawls, nos seguintes preceitos: a concepção de pessoa é metafísica e, além disso, incoerente em alguns pontos; o liberalismo rawlsiano é bem menos neutro do que poderia supor, pois haveria uma exclusão deliberada de concepções de bem de viés comunitário. Isto, para Sandel, seria suficiente para fulminar o mérito da TJ de Rawls, tanto numa perspectiva interna (ao constatar contradições), quanto sob uma ótica externa (ao excluir demais concepções filosóficas respeitáveis de maneira arbitrária).


Convém, todavia, para fins de síntese, e para enriquecer o debate, acrescentar outra sistematização, presente em outra obra, em coutoria, de Kukathas e Pettit, sobre as críticas de Sandel a Rawls, bem como a ilustração de uma tese levantada por eles sobre o próprio Rawls. 

Kukathas e Pettit expõem algumas críticas comunitaristas dirigidas ao liberalismo em geral, que respingam sobre a TJ, bem como abordam algumas objeções diretamente relacionadas ao próprio Rawls. Kukathas e Pettit entendem que Rawls responde a contento aos principais comunitaristas, elencando, para cada autor comunitário, os argumentos e as eventuais falhas. Com Sandel, evidentemente, o trabalho por eles realizado é nesse mesmo sentido.


A sistematização de Kukathas e Pettit sobre a crítica de Michael Sandel (Liberalism and The Limits of Justice) é como segue. Em síntese, Sandel sustenta que, na posição original da TJ, as partes estão tão indiferenciadas pelo véu da ignorância, que todas são idênticas, podendo-se concluir que há apenas uma pessoa naquela situação, que, ao final vai concordar com uma proposição consigo mesma. É um resultado completamente diferente da pretensão rawlsiana sobre um acordo de diversas pessoas buscando diversas concepções. Além disso, para Sandel, o eu na posição original seria incapaz de escolher por estar completamente distanciado de desejos fundamentais, desprovido de circunstâncias constitutivas da própria possibilidade de reflexão, sendo radicalmente desincorporado. Sandel também acrescenta que a asserção fundamental rawlsiana (e também do liberalismo) de que a comunidade é produto da associação de indivíduos independentes torna-se incoerente com a posterior pressuposição teórica de Rawls de que os indivíduos já estão inseridos numa comunidade no momento de deliberação dos princípios de justiça (Kukathas, 1990, pp. 116-125).

Por este motivo, ainda na sistematização exposta, Sandel conclui que a nossa preocupação não deve ser a de isolarmo-nos das nossas próprias circunstâncias para julgarmos nossas práticas morais a partir de um qualquer ponto de vista independente e imparcial. Devemos deixar de raciocinar sobre os juízos de dever-ser e partir para a compreensão e a autodescoberta: nos preocupar em saber quem somos, reconhecendo, inicialmente, o caráter da comunidade que constitui a identidade de cada um (Kukathas, 1990, pp. 126-127).

Kukathas entende que a crítica de Sandel a TJ de Rawls é plausível e clara, sendo digna de crédito. Contudo, o repto comunitário de Sandel também possui algumas falhas que merecem ser expostas (Kukathas, 1990, p. 127).

Eis, em síntese, os motivos pelos quais as críticas de Sandel a Rawls não merecem prosperar, conforme exposto por Kukathas: a) Rawls, segundo as conferências Dewey (que já são posteriores a TJ), procura princípios morais que regem a sociedade, tendo por pano de fundo as crenças morais e intuições dominantes nas sociedades modernas democrático-liberais; b) é exagerado afirmar que o meu contexto social constitui a minha identidade, sendo admissível que esta contribuição seja apenas parcial, forçando reconhecer que o próprio sujeito também participa na constituição de sua identidade; c) parece haver, conforme Kymlicka (1988, Liberalism and Communittarianism), algum acordo básico comum (de feição liberal) entre Sandel e Rawls sobre os limites e a constituição do eu; d) Sandel não explica porque o eu deve ser apenas politicamente criado, desconsiderando outras comunidades sociais não políticas também decisivas na constituição do eu; e) por fim, quando Sandel aponta que o raciocínio moral é a compreensão e a autodescoberta, fica prejudicada a busca do juízo de dever ser, o que não implica nenhuma reflexão mais significativa, apta a ensejar até mesmo mudanças de pensamento de vida (Kukathas, 1990, pp. 127-130).

Logo, há pensadores que entendem que, a despeito da clareza da crítica de Sandel, este ostenta algumas falhas em suas argumentações, o que reforçaria, em tese, o mérito da TJ de Rawls, aperfeiçoada em artigos e obras posteriores. Independentemente de quem esteja certo, a extensão da discussão provocada evidencia, por si só, a relevância dos tópicos levantados, e a riqueza da controvérsia que envolve liberais e comunitários.

Referências
GRAHAM, Paul. Rawls. Oneworld Thinkers Series. Oxford: Oneworld Publications, 2007.
KUKATHAS, Chandran e PETTIT, Philip. Rawls: Uma Teoria da Justiça e os seus Críticos. Portugal: Gradiva. 2005.
MULHALL, Stephen & SWIFT, Adam. Liberals & Comunitarians. 2nd. ed. Oxford: Blackell Publishers, 1996.
OLIVEIRA, Nythamar. Rawls. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
RAWLS, John. Justiça como Equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
RAWLS, John. O Liberalismo Político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ROSS, W. D. The Right and the Good. Indianapolis: Hackett, 1988.
SANDEL, Michael. El liberalismo y los limites de la justicia. Tradução: María Luz Melon. Barcelona: Editorial Gedisa, 2000.



Informações Sobre o Autor
Pablo Camarço de Oliveira
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí. 
Técnico judiciário da Justiça Federal no Estado do Piauí.

Tirado daqui




                                               Lola

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