Os professores
O mundo não nasceu
connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os
sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente;
depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim,
conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente
para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores.
Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa
de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa
tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.
O material que é
trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas
decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é
culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar
tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com
o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a
acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre.
Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos
esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que oTRABALHO dos professores
se efectiva. O trabalho dos professores é a generosidade.
Basta um esforço
mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do
quanto devemos aos professores. Devemos-lhes muito daquilo que somos,
devemos-lhes muito de tudo. Há algo de definitivo e eterno nessa missão, nesse
verbo que é transmitido de geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de
professores, os seus blazers, os seusFORD Fiesta com
cadeirinha para os filhos no banco de trás, os professores de hoje são iguais
de ontem. O acto que praticam é igual ao que foi exercido por outros
professores, com outros penteados, que existiram há séculos ou há décadas. O
conhecimento que enche as páginas dos manuais aumentou e mudou, mas a essência
daquilo que os professores fazem mantém-se. Essência, essa palavra que os
professores recordam ciclicamente, essa mesma palavra que tendemos a esquecer.
Um ataque contra os
professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro.
Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança.
Vemo-los a dar forma e sentido à esperança de crianças e de jovens, aceitamos
essa evidência, mas falhamos perceber que são também eles que mantêm viva a
esperança de que todos necessitamos para existir, para respirar, para estarmos
vivos. Ai da sociedade que perdeu a esperança. Quem não tem esperança não está
vivo. Mesmo que ainda respire, já morreu.
Envergonhem-se
aqueles que dizem ter perdido a esperança. Envergonhem-se aqueles que dizem que
não vale a pena lutar. Quando as dificuldades são maiores é quando o esforço
para ultrapassá-las deve ser mais intenso. Sabemos que estamos aqui, o sangue
atravessa-nos o corpo. Nascemos num dia em que quase nos pareceu ter nascido o
mundo inteiro. Temos a graça de uma voz, podemos usá-la para exprimir todo o
entendimento do que significa estar aqui, nesta posição. Em anos de aulas
teóricas, aulas práticas, no laboratório, no ginásio, em visitas de estudo,
sumários escritos no quadro no início da aula, os professores ensinaram-nos que
existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram apresentar.
Se desligarmos a televisão por um instante, chegaremos facilmente à conclusão que,
como nas aulas de matemática ou de filosofia, não há problemas que disponham de
uma única solução. Da mesma maneira, não há fatalidades que não possam ser
questionadas. É ao fazê-lo que se pensa e se encontra soluções.
Recusar a educação é
recusar o desenvolvimento.
Se nos conseguirem
convencer a desistir de deixar um mundo melhor do que aquele que encontrámos, o
erro não será tanto daqueles que forem capazes de nos roubar uma aspiração tão
fundamental, o erro primeiro será nosso por termos deixado que nos roubem a
capacidade deSONHAR, a ambição, metade
da humanidade que recebemos dos nossos pais e dos nossos avós. Mas espero que
não, acredito que não, não esquecemos a lição que aprendemos e que continuamos
a aprender todos os dias com os professores. Tenho
esperança.
José Luís Peixoto, in revista Visão
(Outubro, 2011)
Lola
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