David Grossman: Como esquecer sem matar e como lembrar sem morrer
É
um caminhante que faz perguntas e procura respostas na literatura. No seu
último livro, a primeira pergunta foi: como lembrar sem morrer de dor? Nele,
faz o luto da morte do filho, vítima da guerra entre Israel e o Líbano, em
2006.
Uma
conversa com o escritor David Grossman raramente começa pela literatura, talvez
porque a sua escrita ande sempre muito colada à realidade. Israelita, natural
de Jerusalém, onde nasceu em Janeiro de 1954, tem associado o seu nome à luta
pelo fim do conflito que se eterniza entre o seu país e a Palestina. Nos seus
romances, a tragédia de viver, pensar e amar num território em guerra assumem
uma densidade invulgar que o tornam um dos mais respeitados autores em todo o
mundo. Há nove anos, a guerra — desta vez com o Líbano — matou o seu filho Uri,
de 21 anos, quando escrevia um livro sobre o medo de perder um filho para a
guerra. Até ao Fim da Terra, publicado emPORTUGAL em
2012, foi a “casa” onde se refugiou quando não sabia como viver. Terminou-o
numa altura em que ainda lhe era difícil falar da morte. O luto seria feito com
um livro “estranho”, chama-lhe “criatura”.
Foi o seu modo de aprender a viver
com a memória. Falling Out of Time saiu em 2014 e será editado
em Portugal em 2016. Foi esse livro que permitiu esta conversa, em Cascais,
onde o escritor esteve como convidado para o festival internacional de cultura
no passado domingo. Começou com literatura e terminou com gargalhada.
Em
2007 escreveu um texto sobre a condição de ser escritor em Israel e nele
dizia: “We write. How fortunate are we.”
A escrita redime,
revela, é uma sorte?
Sim, acho que é um bom modo de se estar nesta vida. A vida é ofensivamente
pequena e muitos de nós esforçam-se demasiado em não ser eles mesmos, não
ouvindo o que deveriam ser. Muita da nossa realidade é-nos imposta por
expectativas de outras pessoas, pelos ditames de outras pessoas e vemos muita
gente a viver em paralelo em relação às vidas que deveriam viver. Porque
fizeram a escolha profissional errada, escolheram o CASAMENTO errado,
muitas vezes com o género que negam. Escrever é uma maneira muito eficaz de não
negar a nossa própria vida, não nos evadirmos da nossa vida, de confrontar tudo
o que a nossa alma ou corpo nos sugere que confrontemos.
Passaram
quase nove anos desde a morte do seu filho na chamada “Segunda Guerra do
Líbano”. Quando publicou Até ao Fim da Terra, o romance que estava
a escrever quando Uri morreu, mostrou alguma reserva em falar sobre o sucedido,
dizendo que era algo muito privado. Entretanto, publicou Falling Out of
Time (2014), um texto muito íntimo, onde faz esse luto. A escrita
desse desgosto…
Quando perdemos o Uri, eu estava a escrever Até ao Fim do Mundo,
que era sobre o sentimento de perder um filho na guerra. Olhando em
retrospectiva, parece estranho, mas é algo que muitos pais que vivem em Israel
sentem, a ansiedade de perder os seus filhos. Depois dos sete dias de lamento —
no judaísmo temos sete dias de luto, o shivá, que devo dizer que é
uma das grandes invenções do judaísmo…
Porque
diz isso?
Todas as pessoas que fazem e fizeram parte da nossa vida vêm até nós para estar
connosco e com os nossos e fazem-nos esquecer a dureza do nosso sofrimento nos
primeiros sete dias. Eles não nos deixam sós, não estamos sós, eles
abraçam-nos, acodem-nos, mesmo fisicamente. E, nesse momento, toda a nossa vida
passa à nossa frente. Os nossos amigos do jardim-de-infância vêm, os do liceu,
da tropa, da universidade, de todos osTRABALHOS que
tivemos, todos vêm e ao estar connosco expressam algo que é muito mais forte do
que palavras. Mas, claro, todos sabemos que é apenas por uma semana e que
depois somos outra vez confrontados com a nossa ferida.
Quando no dia a seguir
ao shivá, voltei ao pequeno espaço ondeTRABALHO,
comecei a reescrever a história que naqueles dias era a única coisa sólida na
minha vida. Era o único lugar que se assemelhava a uma casa. Todas as outras
casas estavam destruídas pela catástrofe. Nada estava assegurado, garantido.
Nada [pausa]. Senti uma espécie de instinto, de responsabilidade pelas
personagens, pela história em que estava aTRABALHAR havia
tantoTEMPO.
Decidiu
continuar um trabalho e não começar um novo…
Sim. Trabalhei como um carpinteiro, acho. Ou como um sapateiro. Não muito com a
minha cabeça, mas com um instinto da fisicalidade das coisas e apenas para
continuar esta casa que era a história, intocada, sólida. Mas mais tarde
comecei a notar que não era apenas o tempo que impedia as paredes de cair, mas
que estava a incutir aspectos nas minhas personagens, características, dei-lhes
notas muito específicas, dei-lhes calor e vitalidade e sexualidade e humor e
sensibilidade. Comecei a sentir que essas coisas continuavam em mim.
Descobriu
que não era apenas luto?
De certa forma, sim. Estava surpreendido por ainda ter estas coisas em mim.
Quando aquilo aconteceu, Amos Oz e A. B. Yehoshua, amigos muito próximos,
vieram imediatamente, no mesmo dia, e ambos sabiam o que eu estava a escrever,
porque costumamos conversar entre nós sobre o que cada um escreve e mostramos
versões uns aos outros. Eles sabiam isso e sabiam o que me estava a acontecer.
Lembro-me de lhes dizer que não sabia se era capaz de salvar o livro. E Amos Oz
respondeu-me: “É o livro queTE vai
salvar a ti.”
E
salvou?
De uma certa maneira, sim.Mas
a seguir escreveu outro, o tal livro onde assume o luto. Não sei se lhe chame
uma oração. Já li um crítico que o considerou como tal. Não é um poema, não é
um romance. É algo muito interior.
Chamo-lhe “criatura”. Tem a sua própria vida (risos).
Como
aconteceu esse livro?
Depois da morte de Uri, levei mais um ano a terminar Até ao Fim da
Terra. Quis permanecer leal, fiel a essa história, ao que ela era antes de
a realidade me mudar. Eu queria que o livro permanecesse como era antes. O
livro não era sobre a perda, mas sobre o medo da perda. Há uma grande
diferença. Era sobre essa ilusão de que podemos combater o medo da perda, de
que podemos prevenir a perda. É o que Ora faz. [Ora é a protagonista, uma
mulher que deixa a sua casa em Jerusalém e caminha para a Galileia, tentando
fugir de possíveis mensageiros que a queiram informar sobre a possível morte do
filho, em Hebron.] Com o seu pensamento mágico, ela luta contra a ameaça de
morte que está sempre presente, que é uma constante, sobre o seu filho Ofer.
Ela conta a sua história, os pequenos momentos de devoção, culpa e frustração,
sentimento de falhanço, de amor e cuidado que depositamos num filho. Ela sente
que ao fazê-lo ela combate a ameaça, a selvajaria, a dureza do mundo e que ele
enfrenta e ela com ele.
Mas o novo livro, Falling Out of Time, foi depois da perda. O que
significa continuar a viver depois de ter experimentado uma coisa assim? E como
lembrar? Como separar a memória da dor?
Toda a memória era tão dolorosa que é
preciso parar de lembrar, tinha de parar de lembrar. Era como tocar em
electricidade com mãos molhadas. Acho que foi algo que descobri nesses anos,
que quando se perde alguém não se perde só a pessoa e o futuro que ela poderia
ter, mas perde-se também o seu passado e, com isso, o nosso próprio passado por
causa do medo de lhe tocar. Há espaços da nossa vida onde não queremos mais
entrar porque são intoleráveis. Foi então que senti que queria lembrar. Não
queria que grande parte da minha vida fosse confiscada pelo luto. Eu teria de viver
a dor para lá chegar. Como é que se faz isso? Como se separa a dor da memória e
como esquecer sem morrer disso? [Pausa] É muito, muito complicado. Como
esquecer sem matar e como lembrar sem morrer? Era de tudo isso que andava à
procura com esse livro.Uma
vez mais a escrita ajudou.Ajudou. Era inevitável. Não posso perceber como fui capaz de…
Evitar?
Sim, evitar escrever sobre isso.Esta
conversa não teria acontecido antes desse livro.
Sim. Há fases na vida. Muitas vezes me perguntavam sobre isso e eu não era
capaz de falar. Claro que falava com a minha família e amigos, mas levou-meTEMPO até
ser capaz de dizer o que estou a dizer aqui. Acho que escrever esse livro
tornou isto possível. Escrevi tantas nuances de luto e depois
entendi este lugar que quis atingir, onde quis chegar, um ponto de encontro
muito evasivo, sempre a tentar escapar, que é o que está entre a vida e a
morte, um lugar onde podemos continuar a arranhar o exterior desta dimensão
hermética e monolítica da morte. Eu sou um não crente, sou uma pessoa secular.
Não posso retirar conforto da ideia de uma vida além da morte ou de paraíso ou
de deus.
Fala
de uma grande solidão.
Sim. Há muita solidão, mas prefiro a solidão a qualquer tipo de ilusão que vem
do acto de acreditar numa história picaresca de deus e diabo e paraíso. Quem me
dera conseguir acreditar, mas não consigo. Para mim, isso não é verdade. Se
quem acredita retira disso algum conforto, alguma ajuda, fico feliz por eles,
mas eu não conseguiria retirar algum conforto disso. Sinto que o único lugar
onde posso sentir no mesmo segundo vida e morte é no espaço da arte, da
criação, da literatura, da prosa, da poesia, no cinema, no teatro, na música.
Para mim, é nesses sítios que a vida de facto acontece e é neles que estamos
totalmente cientes da morte. Esse lugar da arte não é um lugar assustador, nem
sequer um lugar triste, é um lugar profundo…
Um
lugar para entender?
Exactamente. Um lugar de um entendimento profundo. Eu comecei a pensar em todos
os livros que li, todos os filmes que vi, as músicas que ouvi, e eles foram tão
significantes, criaram-me, fizeram-me crescer e trouxeram-me a um maior
entendimento do que sou, desde criança. Tudo aconteceu sempre neste ponto,
todos estavam nesse ponto entre vida e morte. Acho que toda a peça de arte
séria deve ter lugar aí, nesse intenso espaço.
Está
a falar do território da arte, mas a sua geografia fá-lo estar sempre ainda
mais desperto para essa ligação, vida e morte…
Sim, está sempre a lembrar-me da morte.Essa
ameaça sempre tão presente tem definido a sua escrita, traçado a sua
identidade.
É por isso que diz que nunca pensou sair de Israel?
Sim. Muitas vezes me zanguei, senti raiva daquele lugar, e frustrado, muitas
vezes desesperado, mas é o único lugar que entendo. Vamos assumir que a partir
de hoje vou viver aqui em Cascais. Acha que alguma vez eu seria capaz de
entender o lugar, o comportamento das pessoas, as suas memórias, as histórias
de embalar que os seus pais lhe leram, as cantigas de criança? Nunca iria
conseguir. Só em Israel sou capaz. E como a vida é tão tremendamente curta,
quero viver a minha vida num lugar relevante, num lugar onde tudo o que
acontece é relevante para mim, mesmo quando me repugna ou me faz perder a
cabeça.
Este
ano já manifestou o seu desagrado, quando recusou participar num prémio
literário — o IsraelPRIZE —
por considerar que havia intromissão por parte do primeiro-ministro, Benjamin
Netanyahu (que vetou dois membros nomeados para integrar o júri).
Sim. É verdade. Quando ele afirmou que iria interferir, eu imediatamente
retirei a minha candidatura. Tinha lido nos jornais que era o principal nomeado.
Achei que o que ele fez foi ultrajante. Mas ele fez isso e eu sei de onde vem
essa atitude. Sei interpretar a sua maneira de pensar, porque é que enquanto
primeiro-ministro interfere na escolha de um prémio literário num Estado
democrático. Vê, tudo isto é relevante, é irritante.
Israel é uma casa, no sentido em que entendo o país. Infelizmente não é a casa
que eu desejaria, onde qualquer cidadão se possa sentir seguro, possa sentir a
doçura da pertença. Esse lugar ainda não é assim, porque a mensagem que passa é
que enquanto os palestinianos tiverem ali a sua casa nós não teremos a nossa. É
uma tragédia, porque para mim a definição mais profunda de um judeu é a de
alguém que nunca se sente em casa em nenhum lugar do mundo, mesmo nos sítios
mais amistosos. Vivemos sempre no perigo de ser atacados ou perseguidos ou
expulsos. Era suposto que Israel fosse a nossa casa porque este é o lugar de
onde somos originalmente, enquanto povo e religião e cultura e língua, e tem
potencial para ser uma casa, e desejamos que o seja. Como lhe disse, quero
estar lá, quero que os meus filhos estejam lá, quero que seja um país atractivo
para os mais jovens, mas enquanto não houver paz não será uma casa.
Quando
se perde alguém, não se perde só a pessoa e o futuro que ela poderia ter, mas
perde-se também o seu passado e, com isso, o nosso próprio passado por causa do
medo de lhe tocar
Falava
da arte enquanto meio de compreender o real. A sua literatura está sempre muito
próxima desse real. Da política, da guerra. Estamos a conversar no dia seguinte
ao referendo da Grécia e o resultado aponta para algo novo. Em momentos como
este tem escrito e tomado posições em que o escritor aparece como alguém
influente por essa capacidade de, através da arte, entender o real.
Não consigo separar a arte do real. A arte é um meio de estar no mundo real e é
outro modo de descodificar a vida além da religião, daPSICOLOGIA.
As religiões são modos diferentes de olhar a vida, de acomodar o crente. A
psicologia faz o mesmo e a arte também. Todas nos sugerem um modo de entender
mais neste pequeno período de tempo que é uma vida. A arte é isso, uma maneira
mais precisa de estar na vida. Ela ajuda, em especial porque a vida está a ser
formulada pelos meios de comunicação social, e eles são uma alternativa muito
frágil para essa descrição. Pensamos muitas vezes nos mass media como
um meio de chegar às massas, mas eles são um meio de fazer com que os seres
humanos pensem em si enquanto parte de uma massa, transforma-os em massa… É um
processo terrível. O ser humano está a tornar-se uma multidão. A sua vida
interior e a de biliões de pessoas estão a ser formuladas pelo que a televisão
e todos os meios de comunicação lhes dão, lhes mostra, convencendo-os de que
devem pensar e sentir de uma certa maneira. É uma mistura dekitsch, de
posição farisaicas, de agressão, de qualquer coisa violenta contra o modo como
somos. Nesse mundo de anonimato, a literatura pode ajudar-nos a reconquistar a
nossa face mais autêntica.
Como?
Na literatura vemos as coisas através de matizes, somos capazes de sentir o que
é ser outro ser humano. Claro que quando lemos os suplementos de jornais de
sábado ou de domingo nos deixamos levar por uma história comovente e íntima,
mas há nisso qualquer coisa de falso. Não sentimos que realmente somos capazes
de entender a pessoa de que o jornal nos fala. Sentimos outra coisa que pode
ser muito perversa. Se nos permitirmos levar, tornamo-nos parte de um imenso
colectivo kitsch. Há algo de muito caloroso e doce nisso. Sabemos o
como precisamos desses doces para a alma. Mas alguém nos está a manipular. Há um
milhão de pessoas a ler o mesmo jornal numa sexta-feira à noite e aquele jornal
fá-los pensar e parecer iguais; mas quando mil pessoas estão a ler o mesmo
livro, se for um bom livro, é lido por cada uma delas de um modo diferente. Um
bom livro permite oACESSO a
diferentes partículas da alma. Muitos leitores escrevem-me cartas e em cada um
desses textos leio uma reacção diferente que não fui capaz de antecipar ou
imaginar. Acho que li em cerca de 40 línguas a expressão: “A Ora sou eu.”
Falamos
também de uma ilusão, a de que o escritor está a escrever só para nós.
É exactamente o que sinto quando leio um bom livro de uma cultura diferente, de
umTEMPOdiferente.
Sim, eu podia ter sido este Raskolnikov [personagem de O Crime e Castigo de
Dostoievski] e que sorte tive por poder sentir isso e ler esse livro. É por
isso que não posso confundir este sentimento com o outro, o que me quer
confundir com a multidão, com o modo como os mass mediafuncionam e
que é quase sempre preconceituoso, que julga e culpa, com o poder de arrancar
uma gargalhada durante cinco minutos. A literatura permite-nos estar com uma
pessoa, com o pobre Raskolnikov. Pense só, se uma pessoa escreve um longo
artigo, de sete páginas, sobre Ralskolnikov num jornal, hoje, nunca estará
perto do que Dostoievski escreveu. É essa a diferença.
Há
uma imagem que os seus livros perseguem e que está muito presente nos dois
últimos, a do caminhante. Quando escreveu Até ao Fim da Terra,
caminhou durante 28 dias. Em Falling Out of Time os
caminhantes fazem muitas perguntas…
Em todos os meus livros há muito movimento físico porque quando escrevo,
caminho. Vou contar: nos últimos nove anos todas as manhãs, a um quarto para as
seis, a minha mulher, eu e um casal de amigos andamos cinco quilómetros. Vemos
gazelas — tenho aqui [mostra o telemóvel] uma fotografia de uma gazela prenha
que a minha mulher enviou da caminhada que fez hoje de manhã. É como começamos
o nosso dia. É fantástico, muito bom. Mas mesmo antes disso, já caminhava. No
meu primeiro livro, que não está traduzido, há uma pessoa que corre. Em todos
os livros há esse movimento. Eu preciso de me movimentar. Quando escrevo, não
consigo estar sentado. Sento-me à secretária e se tenho uma boa ideia tenho de
fazer qualquer coisa com aquela energia. Não sei. E ando, há muitos dias em que
ando 15 quilómetros numa sala. Ando durante seis horas. Não é uma piada
[risos]. A minha mulher brinca, diz que eu deixo marcas nas carpetes, que sulco
o chão como um prisioneiro. Aluguei a sala ondeTRABALHO e
do que gosto mais ali é do corredor entre as salas. Tem cerca de 30 metros.
Percorro aqueles 30 metros durante cinco ou seis horas. Sei que pode parecer
estranho. Quando se caminha, quando se está em movimento, não se está
fossilizado, não se está congelado. Fico horrorizado com pessoas que congelam,
não gosto da ideia de congelar. Vejo tantas pessoas à minha volta que a partir
de uma certa idade, muito jovem, caem e são apenas eles mesmos, muitas vezes
nem isso, sem qualquer movimento fértil ou qualquer flexibilidade.
Volto
à ideia de caminhar e de fazer perguntas…
Caminhar é fazer perguntas. A cada momento estamos num lugar diferente. É por
isso que gosto tanto de viajar. Viajo muito com os meus livros. Conheço
pessoas, ouço histórias. As pessoas adoram contar histórias a um escritor.
Acha
que esperam que ele as imortalize?
Não sei. Mas acho que sou um bom ouvinte. Conheço a minha própria história por
isso não sinto qualquer necessidade de a impor, a não ser nos livros. Mas
contam-me histórias muito interessantes. Não faço qualquer uso de muitas delas,
porque são irrelevantes para o que eu escrevo, mas tiro tanto prazer da maneira
como as pessoas contam as histórias. Há pouco [fora desta conversa] falávamos
do que se diz sobre o fim do romance [enquanto género] e acho que fica claro o
que penso sobre isso. Tem tudo a ver com o modo como ouvimos e contamos histórias.
Isso define-nos. As histórias são a nossa base.
As
religiões contam-nos histórias.
Sim, por isso são tão populares. Tenho muitos livros para crianças entre os
três e os quatro anos e eles perguntam-me se aquilo aconteceu mesmo.
Pergunto-lhes se queriam que tivesse acontecido e quando me dizem que sim,
digo-lhes que essa é a resposta. Acho que é o mesmo com os textos sagrados —
muitas pessoas, grande parte da humanidade, quer que eles sejam verdade e essa
é a origem do seu poder.
Escreve
em hebraico.
Sim.O
hebraico é uma língua que está a ser construída por quem a escreve e fala. Uma
vez, em conversa com Amos Oz, falava-se da ideia de que um escritor pode criar
uma palavra se precisar dela. É verdade que a palavra “ficção” não existe em
hebraico?
Sim, é verdade.
Como
é trabalhar com uma língua que esteve retirada e dar-lhe vida tantoTEMPOdepois,
com o mundo cheio de novos conceitos?
Se se conhecer os caminhos, é fácil. Há caminhos para a recrear e inventar e as
pessoas imediatamente entendem.
Pode
dar um exemplo?
É difícil. Como posso dar um exemplo em hebraico… Há a palavra nightwalker ou moonwalker,
alguém que caminha pela noite. Mas se eu quero descrever uma criança que
caminha atrás de uma borboleta eu digo he moonwalked after… Em
hebraico corresponde a uma palavra totalmente nova e imediatamente toda a gente
entendeu. Intuitivamente fazemos essa arrumação. Na língua há sequências desde
há três, quatro mil anos, e isso significa que se Abraão, o patriarca,
estivesse sentado connosco à mesa, ele poderia entender pelo menos metade da
nossa conversa. Acho isso notável. Há dois mil anos era uma língua do belo,
ninguém falava hebraico. Era uma língua sagrada, apenas para rituais, para dias
santos.
E
agora é uma língua falada no dia-a-dia. Pensa em hebraico?
[Risos] Claro. Agora lembrou-me uma velha história. Acho que há uns 40 anos a
minha mulher e eu viajámos porPORTUGAL.
Eu estava a conduzir e fomos parar a uma pequena vila, não me lembro
exactamente do nome. Pode ser Nazaré?
Sim.
Era à beira-mar. Chegámos a um sítio e era preciso ligar para casa, já não me
lembro porquê, e não era possível fazer uma chamada directa por telefone, tinha
de passar por uma operadora. Disse-lhe em inglês: “Pode por favor ligar-me a
Jerusalém?” E ela começou a rir. Perguntei-lhe porque se estava a rir e ela
respondeu: “Jerusalém é no céu.” Isso foi verdade. Cresci com o hebraico. Sei
que pode parecer algo mágico, não sei… Penso em imagens e quando quero
entendê-las penso em hebraico e falo comigo em hebraico.
E
quando lhe falta a palavra?
Invento-a de imediato. É intuitivo. E é o meuTRABALHO.
Sei o que fazer para encontrar uma palavra.
Disse
numa entrevista que muito do vocabulário que falta ao hebraico tem que ver com
política e guerra.
É verdade. Quando a língua era sagrada, se limitava à beleza, não se faziamNEGÓCIOS em
hebraico, um soldado não dava comandos em hebraico, os casais não faziam amor
em hebraico e as crianças não brincavam em hebraico. Muita coisa mudou e muita
coisa teve de ser inventada. Houve um homem incrivelmente inteligente, Eliezer
Ben-Yehuda [1858-1922, um dos responsáveis pelo criadores do hebraico moderno],
que começou a ler hebraico às crianças. Foi buscar muitas palavras à Bíblia, à
Tora, mas noTEMPO da
Bíblia não havia gelado, ou helicóptero ou tomate. Ele inventou ou reinventou
baseado nessas regras antigas e as pessoas percebiam o que ele queria dizer.
Agora toda a nossa vida se formula em hebraico. Sinto-me muito privilegiado por
escritores como Amos Oz e A. B. Yehoshua, que me aceitaram apesar de eu ser
mais novo, como o seu irmão mais novo. É uma boa família.
Veio
depois de terminar mais um livro.
Sim, terminei um romance há nove meses, que está a ser traduzido e está a ser
publicado já em alguns países da Europa. Chama-se Walks a Horse Into a
Bar. É um livro totalmente diferente do anterior e é uma sessão de stand-up
comedy em Netanya, uma cidade de Israel. É uma mistura de horror e
gargalhada. Há muitas anedotas lá e o título é o início de uma anedota muito
famosa em Israel.
Quer
contar?
Há centenas de anedotas de um cavalo a entrar num bar. Vou contar uma: um
cavalo entra num bar e pede um vodka ao empregado. Ele
serve-lhe o vodka, pergunta quanto é. São 25 paus. Ele abre a
carteira, paga e quando se dirige à saída, o empregado corre para ele:
“Desculpe-me senhor Cavalo, espere um momento. Isto é fantástico, nunca vi um
cavalo que fala.” O cavalo olha para ele e diz-lhe: “Com os seus preços, não
voltará a ver.”
Quero
viver a minha vida num lugar onde tudo o que acontece é relevante para mim,
mesmo quando me repugna ou me faz perder a cabeça!
In Publico, 12 de JUlho de 2015
ISABEL LUCAS (texto)
e ENRIC VIVES-RUBIO (fotografia)
Lola
Uma
conversa com o escritor David Grossman raramente começa pela literatura, talvez
porque a sua escrita ande sempre muito colada à realidade. Israelita, natural
de Jerusalém, onde nasceu em Janeiro de 1954, tem associado o seu nome à luta
pelo fim do conflito que se eterniza entre o seu país e a Palestina. Nos seus
romances, a tragédia de viver, pensar e amar num território em guerra assumem
uma densidade invulgar que o tornam um dos mais respeitados autores em todo o
mundo. Há nove anos, a guerra — desta vez com o Líbano — matou o seu filho Uri,
de 21 anos, quando escrevia um livro sobre o medo de perder um filho para a
guerra. Até ao Fim da Terra, publicado emPORTUGAL em
2012, foi a “casa” onde se refugiou quando não sabia como viver. Terminou-o
numa altura em que ainda lhe era difícil falar da morte. O luto seria feito com
um livro “estranho”, chama-lhe “criatura”.
Foi o seu modo de aprender a viver
com a memória. Falling Out of Time saiu em 2014 e será editado
em Portugal em 2016. Foi esse livro que permitiu esta conversa, em Cascais,
onde o escritor esteve como convidado para o festival internacional de cultura
no passado domingo. Começou com literatura e terminou com gargalhada.
Quando
se perde alguém, não se perde só a pessoa e o futuro que ela poderia ter, mas
perde-se também o seu passado e, com isso, o nosso próprio passado por causa do
medo de lhe tocar
Quero
viver a minha vida num lugar onde tudo o que acontece é relevante para mim,
mesmo quando me repugna ou me faz perder a cabeça!
In Publico, 12 de JUlho de 2015
ISABEL LUCAS (texto)
e ENRIC VIVES-RUBIO (fotografia)
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