Retórica e
cultura grega
Não pode haver uma definição de retórica
sem a referir à cultura grega, não só porque retórica é etimologicamente um
termo grego, mas sobretudo porque a retórica constitui um dos traços
fundamentais e distintivos do génio grego. O termo grego retoriké é
afim aos termos retor (orador) e retoreia (discurso
público, eloquência) e significa tanto a arte oratória como a disciplina que
versa essa arte. Contudo, o sentido genuíno do termo ``retórica'' só se alcança
quando se percebe como a civilização grega se distinguiu de todas as outras por
assentar na palavra pública. Os gregos tinham consciência desse traço
distintivo e enalteciam-no. Isócrates elogia Atenas por ser a cidade que
descobriu a civilização assente nas palavras, e de saber retirar da capacidade
da linguagem as consequências decorrentes dessa superioridade humana sobre
todos os animais:
Foi a nossa cidade que revelou a cultura,
que descobriu e organizou todas estas vantagens, que nos ensinou a agir e
dulcificou as nossas relações, e que distinguiu entre as desgraças provocadas
pela ignorância e pela necessidade, e ensinou a precavermo-nos contra aquelas e
a suportar estas corajosamente. Foi ela que honrou a eloquência, que todos
desejam, e cujos possuidores são invejados. Ela tem consciência de que somos,
de todos os animais, os únicos que a natureza dotou deste privilégio e que, por
termos esta superioridade, diferimos em tudo o mais; via que nas demais
actividades a sorte é tão atrabiliária que é frequente que os inteligentes
sejam mal sucedidos e os tolos prosperem, mas que os discursos belos e
artísticos não são apanágio das pessoas inferiores, mas obra de uma alma que
pensa bem; que os sábios e os que parecem ignorantes diferem uns dos outros
sobretudo nisto, e ainda que os que foram criados desde início como homens
livres não se conhecem pela coragem, riqueza ou qualidades dessa espécie, mas
se distinguem sobretudo pela maneira de falar, e é este o sinal mais seguro da
educação de cada um de nós, e aqueles que sabem usar bem da palavra, não só são
poderosos no seu país, como honrados nos outros. (Panegírico, 47-49)2
Da faculdade específica do homem de falar
e de, desse modo, tratar dos assuntos da cidade e dirimir os conflitos,
extraíram os gregos a democracia, o regime político da maioria. O tirano ou os
oligarcas mandavam pela força, na democracia o poder obtinha-se pela palavra
convincente nas assembleias. Nada mais contrário ao espírito grego do que impor
pela força o que deveria ser objecto de uma decisão maioritária, discutida
previamente.3 O elogio que Péricles faz da constituição
ateniense no discurso fúnebre aquando do enterro dos primeiros mortos na Guerra
do Peloponeso, é ele mesmo uma lídima peça retórica sobre a organização
política democrática, em que a direcção do Estado não se limita a poucos, mas
se estende à maioria, onde há igualdade perante a lei, em que a diferença
social, riqueza ou pobreza, não dá preferência nas honras públicas, sendo o
único critério o mérito de cada um. Na cidade de homens livres as palavras são
uma condição da actuação política. Veja-se este excerto do discurso de
Péricles, onde marca a diferença de Atenas face a outras cidades gregas,
nomeadamente Esparta:
Os mesmos indivíduos cuidam das questões
familiares e das políticas, e a outros, aos que se dedicam aos seus ofícios,
não falta um conhecimento suficiente dos assuntos públicos. Somos os únicos que
entendemos que quem não compartilha destas preocupações não é indiferente, mas
sim inútil, e por nós julgamos as questões públicas, ou pelo menos,
estudamo-las convenientemente, não por pensarmos que as palavras prejudicam a
acção, mas sim que é mais nocivo não ensinar primeiro pela discussão, antes de
chegar o tempo de actuar. Diferentemente dos outros, temos ainda a norma de
ousar o máximo mas reflectir profundamente sobre a empresa a que nos votamos.
Enquanto que aos outros a ignorância traz a coragem, e o cálculo acarreta a
hesitação.4
A ideia aqui exposta de que a retórica é
traço do espírito democrático grego não contende, nem muito menos é posta em
causa, como demonstrarei, com a lenda que remonta o início da retórica às
disputas legais pela pertença de terras na Sicília nos primórdios do Século V
antes de Cristo. Roland Barthes, por exemplo, descreve deste modo o surgimento
da retórica:
A Retórica nasceu de processos de
propriedade. Cerca de 485 a.C., dois tiranos sicilianos, Gelão e Hierão,
efectuaram deportações, transferências de população e expropriações, para
povoar Siracusa e lotear os mercenários; quando foram depostos por uma
sublevação democrática e se quis voltar à ante qua, houve processos
inumeráveis, pois os direitos de propriedade eram pouco claros. Estes processos
eram de um novo tipo: mobilizavam grandes júris populares, diante dos quais,
para os convencer, era necessário ``ser eloquente''. Esta eloquência, ao
participar simultaneamente da democracia e da demagogia, do judicial e do
político constituiu-se rapidamente em objecto de ensino. Os primeiros
professores desta nova disciplina foram Empédocles de Agrigento, Corax, seu
aluno de Siracusa (o primeiro que cobrava pelas suas lições), e Tísias.5
O próprio Barthes interpreta esta origem, a
arte da palavra ligada a uma reivindicação de propriedade, vendo na retórica
um cru instrumento de poder:
como se a linguagem, na sua qualidade de
objecto de uma transformação e condição de uma prática, se tivesse determinado,
não a partir de uma subtil mediação ideológica, mas a partir da socialidade
mais nua, afirmada na sua brutalidade fundamental, a da possessão de terras:
começámos a reflectir sobre a linguagem para defendermos os nossos bens.6
Olhando, sobretudo a partir da crítica de
Platão à retórica, para esta leitura que Barthes faz da sua origem, poder-se-ia
pensar que a retórica não passaria de uma técnica de domínio pela linguagem,
extensível a qualquer actividade humana. Que essa foi, aliás, a compreensão e a
aplicação que os sofistas fizeram da retórica, parece ainda mais reforçar a
percepção da retórica como arte demagógica, aplicável tanto na democracia, como
na tirania, ou em qualquer outro regime político. A retórica seria apenas um
instrumento de persuasão dos outros, fosse para que fim fosse, de
persuadir pela palavra os juízes no Tribunal, os senadores no Conselho, o povo
na Assembleia, enfim os participantes de qualquer espécie de reunião política e,
assim, com esse poder fazer seus escravos o médico e o professor de ginástica,
e até o grande financeiro. 7
Mas
a eventual origem forense da retórica não invalida de modo algum a concepção da
retórica como expressão de uma mentalidade argumentativa e livre. O carácter
agónico que existe entre as partes num tribunal distingue-se justamente por a
decisão não decorrer da força bruta ou da violência de uma das partes, mas do
poder dos argumentos aduzidos. Se algo diferencia a aplicação da justiça numa
sociedade livre ou numa sociedade totalitária é justamente a possibilidade de
qualquer das partes poder apresentar os seus argumentos e com eles influenciar
a decisão do juiz, seja este um indivíduo ou um júri. Quem confia no uso da palavra
para reclamar justiça não precisa de lançar mão de meios violentos.
O
uso demagógico ou sofista da retórica não nega o carácter retórico da
democracia e a íntima conexão entre liberdade política e discurso persuasivo. A
má utilização que se pode fazer da retórica não significa de modo algum a
negação da relação essencial entre retórica e democracia. E a razão fundamental
desta relação é a liberdade do indivíduo suposta numa e noutra. Só tem sentido
falar de retórica numa sociedade de homens livres e a democracia é o regime
político por excelência dessa sociedade.
Num
capítulo dedicado ao esplendor e miséria da retórica, Tzvetan Todorov, fixa
muito bem a indissociabilidade entre democracia e retórica ao analisar a obra De
Oratore de Cícero. 8
A democracia é a condição indispensável ao
desenvolvimento da eloquência; reciprocamente, a eloquência é a qualidade
superior do indivíduo que pertence a uma democracia: nenhum dos dois pode
passar sem o outro. A eloquência é ``necessária'': eis o seu traço dominante,
e, ao mesmo tempo, a explicação do seu sucesso.9
A crise da retórica surge quando se
instala um poder forte, de direcção autoritária. Quando se instala o poder de
um, monarca ou tirano, desaparece a eloquência. Todorov cita a seguinte
passagem de Tácito:
Por que motivo se há-de defender uma
opinião no Senado, se sabemos que a elite dos cidadãos concorda imediatamente
com ela? Para quê reproduzir discursos diante do povo, se os interesses
públicos não são deliberados por incompetentes, nem pela multidão, mas
unicamente pelo mais sábio dos homens? ( Diálogo dos Oradores,
XLI).10
É mediante a análise desta obra de Tácito,
aliás, que Todorov traça a crise da retórica. O historiador romano criticava a
eloquência, justamente por a associar a um regime democrático, de liberdade de
discussão e de decisão. Considerava que um regime político que assentava na
força da persuasão tinha um preço demasiado alto, a insegurança de cada
cidadão. Tácito defendia um regime musculado, autoritário, onde a vida
política não dependesse das capacidades persuasivas, mas sim da clarividência e
da autoridade do poder instituído. A democracia, necessariamente fundada na
eloquência, representava um risco para a sociedade.
Essa grande e gloriosa eloquência de
outrora é filha do desregramento a que os tolos chamam liberdade (...);
desconhecendo a obediência e a seriedade, obstinada, temerária e arrogante, ela
não floresce nos Estados dotados de uma consituição. (...) Para a República, a
eloquência dos Gracos não valia tanto como o peso das leis que faziam suportar,
e a fama oratória de Cícero teve um preço demasiado alto para os fins
conseguidos. ( Diálogo dos Oradores, XL) 11
Quão longe se encontra este entendimento
de Tácito (55-120 p.C.), um historiador da época dos Césares, do entendimento
de Isócrates (Séc. V-IV a.C.) sobre o que é uma constituição! Veja-se o que
este retórico grego escreve sobre a antiga constituição de Atenas:
Os que naquele tempo administravam a
cidade estabeleceram uma constituição que não era designada pelo nome mais
comum e mais brando, mas que não se mostrava tal, pelos seus actos, àqueles que
deparavam com ela, e que não educou os cidadãos de tal maneira que julgassem
que era democracia a indisciplina, a liberdade o desprezo das leis, ou
igualdade a licença de dizer tudo, ou bem-estar a permissão de proceder assim,
mas essa constituição desprezava e castigava tais indivíduos, tornando todos os
cidadãos melhores e mais sensatos. (Areopagítico, 20) 12
O espírito cesarista que enforma a crítica
do romano Tácito à eloquência é o oposto do espírito democrático que anima o
elogio do grego Péricles à constituição ateniense. Para o espírito prático de
um romano, de privilegiar a acção em detrimento da palavra, o tempo consumido
nas assembleias do povo no governo de Atenas não poderia deixar de ser visto
como um desperdício de energias.
Retórica
não pode ser confundida com outras formas de linguagem, nomeadamente a
conversa. O que caracteriza a retórica nos gregos é ela pertencer à esfera
política da vida de um cidadão, e não à sua vida privada. A distinção entre o
político ou público e o privado é assim imprescindível para uma compreensão
cabal da especificidade da retórica.
A vida
política é a vida livre que o cidadão desenvolve enquanto membro participante e
activo na condução dos negócios da polis. Distinta é a vida privada, a vida da
família, dos escravos e dos animais domésticos, onde são satisfeitas as
necessidades básicas como a alimentação e a reprodução, necessidades que não
são distintas das dos animais. A organização familiar era uma imposição da
natureza, tal como a organização em grupo de outras espécies de animais. Na
esfera privada não há espaço para a liberdade, aí o chefe exerce um poder
absoluto sobre mulheres e escravos. A polis demarcava-se do carácter familiar
justamente por ser uma organização de iguais, onde não havia nem servos nem
senhores.
Não
é o viver em grupo, ou em sociedade, que caracteriza o homem dos outros
animais. Hannah Arendt chama a atenção para a correcta tradução de zôon
politikon não como animal social, mas como animal político. A
sociabilidade é até um ponto em comum dos homens com os animais. O traço
verdadeiramente distintivo é a natureza política do homem. A polis é
como uma segunda vida, bios politikos, que só se realiza uma vez
resolvidas as necessidades próprias da condição animal. Na vida privada o homem
enfrenta as necessidades, na vida política ou pública o homem exerce a sua
liberdade. Portanto, cada cidadão faz parte de dois tipos de vida, a que lhe é
própria ( idion), e a que lhe é comum ( koinon). Tem a
vida privada, a natural ou familiar, e a pública, a livre ou política. O ponto
de união entre estas duas vidas é que a família satisfazia as condições de
subsistência necessárias à vida de liberdade da polis. 13
A
vida pública ou política era de certo modo um luxo que estava, portanto,
reservado aos que podiam gozar de uma subsistência garantida. Mulheres, metecos
e escravos não tinham uma vida política. E aqui coloca-se a questão sobre a
abrangência da democracia ateniense. Com efeito, a partir dos números prováveis
da população de Atenas em 430 a.C., 30.000 cidadãos, 120.000 familiares, 50.000
metecos e 100.000 escravos, verificamos que apenas 10% da população eram politai,
cidadãos.14 A
democracia ateniense era de algum modo uma aristocracia alargada.
Fustel
de Coulanges dá-nos um retrato muito pormenorizado do dia a dia de um cidadão
ateniense no gozo e cumprimento dos seus direitos e deveres políticos e vemos
que é uma vida muito trabalhosa.
Espanta verificar todo o trabalho que esta
democracia exigia dos homens. Era governo muito trabalhoso. Vejamos em que se
passa a vida de qualquer ateniense. Determinado dia, o ateniense é chamado à
assembleia do seu demo e tem de deliberar sobre os interesses religiosos ou
financeiros dessa pequena associação. Um outro dia, este mesmo ateniense está
convocado para a assembleia da sua tribo; trata-se de regular uma festa
religiosa, ou de examinar as despesas, ou de fazer decretos, ou ainda de nomear
chefes e juízes. Exactamente três vezes por mês torna-se preciso que assista à
assembleia geral do povo, e não tem o direito de faltar. Mas a sessão é longa,
porque o ateniense não vai à assembleia somente para votar. Chegado pela manhã,
exige-se que o ateniense ali permaneça até hora avançada do dia a ouvir os
oradores. Não pode votar senão tendo estado presente desde a abertura da
assembleia, e tendo ouvido todos os discursos. (...) O dever do cidadão não se
limitava a votar. Quando chegava a sua vez, também devia ser magistrado no seu
demo ou na sua tribo. Em média, ano sim, ano não, era heliasta, isto é, juiz,
passava todo esse ano nos tribunais, ocupado a ouvir os litigantes e a aplicar
as leis. Quase não havia em Atenas cidadão que não fosse chamado duas vezes na
sua vida a fazer parte do senado dos Quinhentos; então, durante um ano, todos
os dias se sentava desde manha até à noite, recebendo os depoimentos dos
magistrados, fazendo-os prestar as suas contas, respondendo aos embaixadores
estrangeiros, redigindo as instruções dos embaixadores atenienses, examinando
todos Os negócios que deviam ser submetidos ao povo, e preparando todos os
decretos. Enfim, o ateniense podia ser magistrado da cidade, arconte,
estratego, astínomo, quando a sorte ou o sufrágio o indicava. Vê-se quão pesado
encargo era o de ser cidadão de qualquer Estado democrático, porque
correspondia a ocupar em serviço da cidade quase toda a sua existência, pouco
tempo lhe restando para os trabalhos pessoais e para a sua vida doméstica. Por
isso, muito justamente, dizia Aristóteles não poder ser cidadão aquele homem
que necessitasse de trabalhar para viver. Tantas eram as exigências da
democracia. O cidadão, como o funcionário público de nossos dias, devia
pertencer inteiramente ao Estado. Na guerra, dava-lhe o seu sangue; durante a
paz, o sen tempo. Não era livre para descurar dos negócios públicos por se
ocupar com mais cuidado dos seus próprios. Pelo contrário, devia descurar dos
seus, para trabalhar em proveito da cidade. Os homens passavam a sua vida uns a
governarem aos outros. A democracia não podia existir senão sob a condição de
trabalho incessante para todos os seus cidadãos. Por pouco que afrouxasse, ela
acabaria pouco a pouco por perecer ou por se corromper. 15
É neste dia a dia da vida política que o
cidadão vive num mundo marcado pela eloquência ( léxis). As
assembleias são palco de intensos debates. Todo o homem podia falar sem
distinção de fortuna, nem de profissão, mas precisava de provar estar no gozo
dos seus direitos políticos, não ser devedor ao Estado, ser de costumes puros,
estar legitimamente casado, possuir bens de raiz na Ática, haver cumprido todos
Os seus deveres para com seus pais, ter feito todas as expedições militares
para as quais fora escolhido, e provar não ter deixado no campo, em nenhum
combate, o seu escudo. 16
Uma vez tomadas estas precauções contra a
eloquência, o povo abandonava-se-lhe em seguida inteiramente. Os atenienses
como nos diz Tucídides, não acreditavam em que e palavra prejudicasse a acção.
Sentiam, pelo contrário, a necessidade de se esclarecerem. A política já não
era, como no regime precedente, negócio de tradição e de fé. Era preciso
reflectir e ponderar sobre as razões. A discussão era indispensável, porque
sendo toda a questão mais ou menos obscura, só a palavra podia iluminar a
verdade, e povo ateniense queria que cada negócio lhe fosse apresentado sob
todos os seus diferentes aspectos e lhe mostrassem claramente os prós e os
contras. Considerava bastante os seus oradores; diz-se ter o costume de os
recompensar em dinheiro por cada discurso pronunciado na tribuna. O povo fazia
mais ainda: escutava-os; não podermos portanto apresentar este povo como
multidão turbulenta ou barulhenta. Pelo contrário, a sua atitude era
correctíssima; o poeta cómico apresenta-o escutando boquiaberto, imóvel nos
seus bancos de pedra. Os historiadores e oradores descrevem-nos muito
frequentemente estas reuniões populares; quase nunca os vemos a interromperem
os oradores; quer esse orador seja Péricles, ou Cléon, Ésquino ou Dernóstenes,
o povo continua atento; e, quer o lisonjeiem quer o repreendam, escuta. Deixa
exprimir as mais opostas opiniões, com louvável paciência. Algumas vezes
murmúrios, mas nunca gritos nem assuadas. O orador, diga o que disser, pode
sempre chegar ao fim do seu discurso.17
Como se vê, retórica e democracia
implicavam-se mutuamente e constituíam a esfera pública de Atenas.
Os
sofistas foram sem dúvida os grandes cultores da retórica. Daí também que a
retórica seja frequentemente entendida como uma sofística, como um discurso de
sofismas, de truques lógicos, jogos de palavras, que vencem, mas não convencem.
É essa a imagem que os próprios gregos, nomeadamente filósofos e escritores
como Sócrates, Platão e Aristófanes, dão dos seus retóricos.
Contudo,
da sofística não há que registar apenas os defeitos, mas também as virtudes,
nomeadamente a vocação pedagógica, o questionamento livre e franco da tradição,
a radicalidade argumentativa, a reflexão centrada no homem, o desenvolvimento
da eloquência. Os sofistas representam para a Grécia antiga o que os
iluministas europeus representaram para a Europa do Século XVIII. Uns e outros
põem em causa a tradição e aceitam como juiz apenas a razão. Num e noutro caso
trata-se de um processo de emancipação do homem face aos condicionamentos
colocados pelos usos e costumes instituídos.
Antes
de descrever mais de perto os sofistas, convém dizer que a maior parte deles e
os mais reputados não são de Atenas, mas aqui chegaram provindos de vários
lados, Protágoras do norte da Grécia, Górgias da Sicília, Pródico da ilha de
Keos, Hípias de Elis, no Peloponeso, etc. Só dois atenienses, Antífon e
Crítias, fazem nome dentre tantos estrangeiros.18 Chegaram
a Atenas no início da segunda metade do Século V a.C., isto é, logo a seguir a
450, no tempo de Péricles. Sendo estrangeiros os sofistas, isso significa que
chegaram a Atenas vindos de outras terras e outras culturas. Este facto
ajuda-nos a compreender o seu cepticismo, o relativismo com que olham para
hábitos, tradições e instituições. Na sua terra tinham conhecido realidades
outras das que encontravam em Atenas. Quais as melhores, quais as piores, onde
estava a verdade? O mais conhecido fragmento do pouco que nos sobrou dos seus
escritos é a célebre sentença de Protágoras de que ``o homem é a medida de
todas as coisas''. É que, postas em causa as regras estabelecidas pela
tradição, restava como único critério seguro a experiência humana, a capacidade
de raciocinar do homem, de avaliar o que de diferente se lhe deparava, de
criticar o estabelecido, de forjar alternativas.
Os
sofistas são livres-pensadores que não obedecem a padrões instituídos, mas que
aceitam pôr tudo em causa. São eles que derrubam as vacas sagradas do mito e
abrem espaço para o pensamento filosófico. O que conta agora não é a autoridade
do que se encontra já estabelecido, uma tradição inquestionada, mas a adesão
racional e livre dos indivíduos.
O
êxito dos sofistas na Grécia de Péricles significa o triunfo do pensamento
livre, da erradicação de tabus, da disposição de tudo discutir e de tudo
argumentar. É um êxito que ocorre antes do mais junto dos jovens atenienses. A
liberdade de pôr tudo em causa e a capacidade de tudo argumentar, que
caracterizavam os sofistas, deslumbraram os jovens das melhores famílias de
Atenas que se dispuseram a pagar principescamente as lições dos novos mestres.
Os diálogos platónicos, como Protágoras e Hípias Maior,
relatam a euforia que o ensino da sofística provocou na juventude de Atenas.19
Ora
é justamente no inebriante espaço de liberdade de pensamento, criado pelo
cepticismo dos sofistas, que se desenvolve a sua actividade de criar e recriar
novas crenças e novas regras. A retórica era a técnica de, pelo pensamento e
pela palavra, tanto pôr em causa e derrubar o estabelecido, como de erguer
novas ideias e novos valores, que, no entanto, se mantinham sempre sujeitos à
crítica. Criticar, refutar, derrubar era uma face da actividade sofística, e
essa é a que lhe é mais conhecida. Mas ao lado dessa actividade de cariz
negativo, há uma de cariz positivo, a de construir pela argumentação e por
critérios racionais o que se julgava estabelecido desde todo o sempre, apenas
possível de adquirir por tradição.
A
retórica era um poderoso instrumento de acção pública, aplicável nas mais
diversas circunstâncias, e eram justamente essas suas qualidades de poder e de
versatilidade que a tornavam tão apetecida. O alcance e a abrangência desse
poder é enorme, como transparece nas palavras de Górgias com que remata a
definição da retórica como capacidade de persuadir o interlocutor:
``Com este poder farás teus escravos o médico, o professor de ginástica, e até o grande financeiro chegará à conclusão de que arranjou dinheiro não para ele, mas para ti, que sabes falar e que persuades a multidão.''20
Claro que é quase impossível não ver nesta descrição de retórica o discurso da banha da cobra, o discurso do vendedor que tudo impinge aos potenciais compradores, apenas pela magia das suas palavras, mas para além dessa visão negativa de retórica que nos dá Platão, temos também de ver nela a dimensão de liberdade que a palavra concede a quem a domina, na medida em que com ela se opõe e leva de vencida outros poderes, políticos e financeiros. Com a retórica até o pobre pode enfrentar e vencer, no meio dos outros homens ou frente a uma assembleia, os poderosos e os ricos. Na eloquência não há distinção de classes, mas apenas capacidades e mérito individuais.
``Com este poder farás teus escravos o médico, o professor de ginástica, e até o grande financeiro chegará à conclusão de que arranjou dinheiro não para ele, mas para ti, que sabes falar e que persuades a multidão.''20
Claro que é quase impossível não ver nesta descrição de retórica o discurso da banha da cobra, o discurso do vendedor que tudo impinge aos potenciais compradores, apenas pela magia das suas palavras, mas para além dessa visão negativa de retórica que nos dá Platão, temos também de ver nela a dimensão de liberdade que a palavra concede a quem a domina, na medida em que com ela se opõe e leva de vencida outros poderes, políticos e financeiros. Com a retórica até o pobre pode enfrentar e vencer, no meio dos outros homens ou frente a uma assembleia, os poderosos e os ricos. Na eloquência não há distinção de classes, mas apenas capacidades e mérito individuais.
Notas de rodapé
Universidade da Beira Interior
A tradução é tirada de Hélade.
Antologia da Cultura Grega, de Maria Helena da Rocha Pereira, Coimbra-1982,
pgs 302-303
``In the experience of the polis, which
not without justification has been called the most talkative of all bodies,
politic, (...) action and speech separated and became more and more independent
activities. The emphasis shifted from action to speech, and to speech as a
means of persuasion rather than the specifically human way of answering,
talking back and measuring up to whatever happened or was done. To be
political, to live in a polis, meant that everything was decided
through words and persuasion and not through force and violence. In Greek
self-understanding, to force people by violence, to command rather than
persuade, were prepolitical ways to deal with people characteristic of life
outside the polis...'' Hannah Arendt, The Human Condition,
Chicago, The University of Chicago Press, 1958, pgs. 26-27.
Tucídides, História da Guerra do
Peloponeso, Livro II, XXXVI-XLII, tradução tirada da atrás citada antologia
de Maria Helena da Rocha Pereira, pgs. 294-298.
A leitura deste discurso de Péricles é obrigatória na disciplina de Retórica. Como se trata de um belíssimo texto, essa obrigação deve ser entendida como um prazer.
A leitura deste discurso de Péricles é obrigatória na disciplina de Retórica. Como se trata de um belíssimo texto, essa obrigação deve ser entendida como um prazer.
Roland Barthes, A Aventura
Semiológica, Edições 70, Lisboa, 1987 (1985), pg. 23
ibidem,
pg. 24.
Como diz Górgias no diálogo homónimo de
Platão, 453e.
Teorias do Símbolo, Lisboa: Edições 70, pg. 57-59.
ibidem,
pg. 57.
ibidem,
pg. 57.
ibidem,
pg. 58.
Em Maria Helena da Rocha Pereira, ibidem,
pg. 303.
Sobre este tema ver o Capítulo II,
intitulado ``O domínio público e o domínio privado'' de A Condição
Humana. Aliás, nesta exposição sigo de perto o texto de Hannah Arendt.
Cf. Mhrp, pags 148-150.
Fustel de Coulanges, A Cidade
Antiga, Lisboa: Clássica Editora, 1988. Veja-se especialmente o Capítulo XI
do Livro Quarto, pgs. 402-410.
ibidem,
pg. 405.
ibidem,
pg. 406.
Cf. Jacqueline de Romilly, Los
Grandes Sofistas en la Atenas de Péricles, Barcelona: Barral; 1997
Cf. J. De Romilly, ibidem ,
pgs. 19-21.
Platão, Górgias, 452e.
Sem comentários:
Enviar um comentário