Discurso de Péricles
ORAÇÃO DE PÉRICLES
Oração fúnebre aos mortos do primeiro ano da Guerra, de Péricles, de 430 a. C.
«DE
ACORDO COM AS NOSSAS LEIS, SOMOS TODOS IGUAIS NO QUE SE REFERE AOS NEGÓCIOS
PRIVADOS. QUANTO À PARTICIPAÇÃO NA SUA VIDA PÚBLICA, PORÉM, CADA QUAL OBTÉM A
CONSIDERAÇÃO DE ACORDO COM OS SEUS MÉRITOS E MAIS IMPORTANTE É O VALOR PESSOAL
QUE A CLASSE A QUE SE PERTENCE; ISTO QUER DIZER QUE NINGUÉM SENTE O OBSTÁCULO
DA SUA POBREZA OU DA CONDIÇÃO SOCIAL INFERIOR, QUANDO O SEU VALOR O CAPACITE A
PRESTAR SERVIÇOS À CIDADE.»
A
maioria dos que até este momento pronunciaram discursos neste lugar fez o
elogio deste costume antigo de honrar, ante o povo, aqueles soldados que
morreram na guerra, mas a mim parece-me que as solenes exéquias que
publicamente celebramos hoje são o maior elogio daqueles que, pelo seu
heroísmo, as mereceram.
E
também me parece que não se deva deixar à palavra de um só homem falar das virtudes
e do heroísmo de tão bons soldados, nem tão-pouco acreditar no que se diga,
quer seja um bom ou mau orador, pois é difícil expressar-se com justiça e
moderar os elogios ao referir coisas das quais se pode ter apenas uma ligeira
sombra da verdade.
Porque,
se o que ouve foi testemunha dos acontecimentos e quer bem àquele de quem se
fala, sempre acredita que o elogio é insuficiente em razão do que ele deseja e
do que sabe, ao contrário, ao que o desconhece, impulsionado pela inveja,
parece que há exagero no que supera a sua própria natureza.
Os
elogios pronunciados em favor de outro podem ser suportados somente na medida
em que se crê a si mesmo capaz de realizar das mesmas acções. O que nos supera
excita a inveja e, além disso, a desconfiança.
Entretanto,
já que os nossos antepassados admitiram e aprovaram este costume, eu devo
também submeter-me a ele e tratar de satisfazer da melhor maneira possível os
desejos e sentimentos de cada um de vós.
Começarei,
pois, a elogiar os nossos antepassados. Pois é justo e equitativo render
homenagem à recordação.
Esta
região, habitada sem interrupção por gente da mesma raça, passou de mão em mão
até hoje, guardando sempre a sua liberdade, graças ao seu esforço. E se aqueles
antepassados merecem o nosso elogio, muito mais o merecem os nossos pais. À
herança que receberam juntaram, ao preço do seu trabalho e dos seus desvelos, o
poder que possuímos, que nos legaram. Nós o aumentamos. E no vigor da idade
ainda alargamos esse domínio, abastecendo a cidade de todas as coisas
necessárias, tanto na paz como na guerra.
Nada
direi das proezas e façanhas guerreiras que nos permitiram alcançar a situação
presente, nem da valentia que nós e os nossos antepassados demonstramos
defendendo-nos dos ataques dos bárbaros ou dos gregos. Todos as conheceis e por
isso não vos vou falar delas. Mas a prudência e arte que nos possibilitaram
chegar a esse resultado, a natureza das instituições políticas e os costumes
que nos trouxeram este prestígio, é necessário que sejam ressalvados antes de
tudo. Depois, continuarei com o elogio aos nossos mortos.
Porque
me parece que nas actuais circunstâncias é oportuno trazer â memória estas
coisas e que será proveitoso que as ouçam tanto os cidadãos como os forasteiros
que se reuniram, hoje, aqui.
A
nossa constituição política não segue as leis de outras cidades, antes lhes
serve de exemplo. O nosso governo chama-se democracia, porque a administração
serve aos interesses da maioria e não de uma minoria.
De
acordo com as nossas leis, somos todos iguais no que se refere aos negócios
privados. Quanto à participação na sua vida pública, porém, cada qual obtém a
consideração de acordo com os seus méritos e mais importante é o valor pessoal
que a classe a que se pertence; isto quer dizer que ninguém sente o obstáculo
da sua pobreza ou da condição social inferior, quando o seu valor o capacite a
prestar serviços à cidade.
No
que corresponde à República, pois, governamos livremente e, ainda, nas relações
que mantemos diariamente com os nossos aliados e vizinhos, não nos irritamos
porque ajam à sua maneira, nem consideramos como uma humilhação os seus
prazeres e alegrias que, apesar de não nos produzir danos materiais, nos causam
pesar e tristeza, ainda que sempre tratemos de dissimulá-los.
Ao
mesmo tempo em que não temos receio nas nossas relações particulares,
domina-nos o temor de infringir as leis da República; obedecemos aos
magistrados e às regras que defendem os oprimidos e mesmo que não estejam
editadas, a todas aquelas que atraem sobre quem as viola o desprezo de todos.
Para
amenizar o trabalho, procuramos muitos recreios para a alma; instituímos jogos
e festas que se sucedem a cada ano; e diversões que diariamente nos
proporcionam deleite e diminuem a tristeza. A grandeza e a importância da nossa
cidade atraem os tesouros de outras terras, de modo que não só desfrutamos dos
nossos produtos como daqueles do universo inteiro.
No
que se refere à guerra, somos muito diferentes dos nossos inimigos porque
permitimos que a nossa cidade esteja aberta a todas as gentes e nações, sem
vedar nem proibir a qualquer pessoa que adquira informes e conhecimentos, ainda
que a sua revelação possa ser proveitosa aos nossos adversários; pois confiamos
tanto em preparativos e estratégias como no nosso ânimo e vigor na acção.
Outros,
no que se refere à educação, acostumam, mediante um treino fatigante desde
criança, a sua potência viril; nós, apesar da nossa forma de viver, não somos
menos ousados e valentes para afrontar o perigo quando a necessidade o exige.
Boa prova disso é que os lacedemónios
[espartanos] jamais se atreveram a entrar na nossa terra sem que estejam
acompanhados de todos os aliados; enquanto nós, sem ajuda nenhuma, fizemos
incursões no território dos nossos vizinhos e muitas vezes, sem grandes
dificuldades, derrotamos em país estrangeiro adversários que defendiam os seus
próprios lares.
Nenhum
dos nossos inimigos se atreveu a atacar-nos quando reunimos todas as nossas
forças, tanto por causa da nossa experiência nas coisas do mar, como pelos
muitos destacamentos que temos em diversos lugares do nosso território.
Se
por acaso os nossos inimigos derrotam alguma vez um destacamento dos nossos, se
jactam de nos haver vencido a todos e se, pelo contrário, os derrota uma parte
das nossas tropas, dizem que foram atacados por todo o nosso exército.
E
efectivamente preferimos o repouso e o sossego quando não estamos obrigados,
por necessidade, ao exercício de trabalhos penosos e, também, ao exercício dos
bons costumes, a viver sempre com o temor das leis; de forma que não nos
expomos ao perigo quando podemos viver tranquilos e seguros, preferindo a força
da lei ao ardor da valentia.
Temos
a vantagem de não nos preocupar com as contrariedades futuras. Quando chegam
estas, enfrentamo-las com boa têmpera, como os que sempre estiveram acostumados
com elas.
Por
estas razões e muitas mais ainda, a nossa cidade é digna de admiração. Ao mesmo
tempo em que amamos simplesmente a beleza, temos uma forte predilecção pelo
estudo. Usamos a riqueza para a acção, mais que como motivo de orgulho, e não
nos importa confessar a pobreza, somente considerando vergonhoso não tratar de
evitá-la.
Por
outro lado, todos nos preocupamos de igual modo com os assuntos privados e
públicos da pátria, que se referem ao bem comum ou privado, e gentes de
diferentes ofícios se preocupam também com as coisas públicas.
Nós
consideramos o cidadão que se mostra estranho ou indiferente à política como um
inútil à sociedade e à República.
Decidimos
por nós mesmos todos os assuntos sobre os quais fazemos, antes, um estudo
exacto: não acreditamos que o discurso entrave a acção; o que nos parece
prejudicial é que as questões não se esclareçam, antecipadamente, pela
discussão.
Por
isto nos distinguimos, porque sabemos empreender as coisas juntando a audácia à
reflexão, mais que qualquer outro povo.
Os
demais, algumas vezes por ignorância, são mais ousados do que o que requer a
razão, e alguns, por querer fundamentar tudo em raciocínios, são lentos na execução.
Seria
justo ter por valorosos aqueles que, ainda conhecendo exactamente as
dificuldades e vantagens da vida, não recusam o perigo.
No
que se refere à generosidade, também somos diferentes dos demais, porque
procuramos fazer amigos, dispensando-lhes benefícios ao invés de recebê-los,
pois o que faz um favor a outro está em melhor condição do que quem o recebe
para conservar a sua amizade e benevolência, enquanto o favorecido sabe que
há-de devolver o favor, não como se fizesse um benefício mas como se pagasse
uma dívida. Também somos os únicos em usar a magnificência e liberalidade com
os nossos amigos e não tanto por cálculo da conveniência como pela confiança
que a liberdade dá.
Numa
palavra, afirmo que a nossa cidade é, em conjunto, a escola da Grécia, e creio
que os cidadãos são capazes de conseguir uma completa personalidade para
administrar e dirigir perfeitamente outras gentes, em qualquer aspecto.
E
tudo isto não é um exagero retórico, ditado pelas circunstâncias, mas a verdade
mesma; o poderio que conquistamos com estas qualidades o demonstra.
Atenas
possui mais fama que as demais. É a única cidade que não dá motivos de rancor
aos seus inimigos pelos danos que lhes inflige, nem desprezo aos seus súbditos
pela indignidade dos seus governantes. Esta grandeza é demonstrada por
importantes testemunhos é de uma maneira definitiva para nós e para os nossos
descendentes. Eles terão uma grande admiração por nós sem que tenhamos
necessidade dos elogios de um Homero, nem de qualquer outro, para adornar os
nossos feitos com elogios poéticos, capazes de seduzir mas cuja ficção contradiz
a realidade das coisas.
É
sabido que, graças ao nosso esforço e ousadia, conseguimos que aterra e o mar
por inteiro fossem acessíveis à nossa audácia, deixando em toda a parte
monumentos eternos das derrotas infligidas aos nossos inimigos e das nossas
vitórias.
Esta
é a cidade, pois, que com razão estes homens não quiseram deixar que fosse
manchada e pela qual morreram valorosamente no combate; os nossos descendentes
estão dispostos a sofrer tudo para assegurar a sua defesa.
Por
estas razões me estendi a falar da nossa cidade já que queria demonstrar-lhes
que não lutamos pelo mesmo que os outros, mas por algo tão grande que nada o
iguala, e também para que o elogio dos homens objecto do nosso discurso fosse
claro e veraz. Terminei, já, com a parte principal. A glória da República
deve-se ao valor desses soldados e de outros homens semelhantes. Os seus actos
estão à altura da sua reputação e existem poucos gregos dos quais se possa
dizer o mesmo.
No
meu entender, nada demonstra melhor o valor de um homem que este final, que
entre os jovens é um indício e uma confirmação entre os velhos.
Com
efeito, aqueles que não podem prestar outro serviço à República é justo que se
mostrem valorosos na guerra, pois apagaram o mal com o bem e os seus serviços
públicos compensaram de sobra os equívocos da sua vida privada. Nenhum deles se
deixou seduzir pelas riquezas ao ponto de preferir os defeitos ao seu dever,
nem tão-pouco nenhum deixou de se expor ao perigo com a esperança de escapar da
pobreza e fazer-se rico, convencidos de que era preciso o castigo do inimigo ao
gozo destes bens, e visando este risco como o mais admirável, quiseram
afrontá-lo para castigar o inimigo e fazer-se dignos destas honras.
Tiveram
confiança neles mesmos no momento da batalha e ao encontrar-se ante o perigo,
sustentados pela esperança ante a incerteza do êxito. Preferiram buscar a sua
salvação na destruição do inimigo, e antes na morte que no covarde abandono;
assim escaparam à desonra e perderam a vida.
No
azar de um instante nos deixaram, alcançando o mais alto cume da glória e não a
baixa recordação do seu medo.
Dessa
forma é que se mostraram filhos dignos da cidade. Os sobreviventes devem fazer
todo o possível para conseguir uma melhor sorte, mas devem-se mostrar ao mesmo
tempo intrépidos contra os seus inimigos, considerando que não se podem limitar
às palavras de um discurso toda a utilidade e proveito.
Também
seria ocioso enumerar diante de gente tão perfeitamente informada, como o sois
vós, todos os esforços dirigidos à defesa do país. Quanto maior lhes pareça o
poder da cidade, mais deveis pensar que existiram homens valorosos, que
souberam praticar a audácia como sentimento de um dever e se conduzir com honra
durante toda a vida.
E
se bem que o sucesso nem sempre tenha correspondido aos seus esforços, não
quiseram privar Atenas do seu valor e sacrificaram a sua virtude como o mais
nobre tributo, fazendo o sacrifício da sua vida e adquirindo, cada um por sua
parte, uma glória imortal que lhes deu a sepultura com honra.
E
esta terra onde agora descansam não é tanto como a recordação imortal sempre
renovada e enfocada em discursos e comemorações. Os homens eminentes têm por
túmulo a terra inteira.
O
que atrai a atenção para eles não são somente as inscrições funerárias gravadas
na pedra; quer na sua pátria, quer nos países mais longínquos, a sua memória
persiste, apesar dos epitáfios, conservada no pensamento e não nos monumentos.
Invejai,
pois, a sua sorte, dizei que a liberdade se confunde com a felicidade e o valor
com a liberdade e não olheis com desprezo os perigos da guerra. Não penseis que
os maus e os covardes, que não têm esperança de melhor sorte, são mais
razoáveis em guardar a sua vida que aqueles cuja existência está exposta ao
perigo e que se aventurara? a passar da boa à má fortuna e que, se fracassam,
verão a sua sorte completamente transformada. Pois para um homem sábio e
prudente é mais doloroso a covardia que uma morte enfrentada com valor e
animada pela esperança comum.
Assim,
não me compadeço pela sorte dos pais que estão presentes, limitar-me-ei a
consolá-los. Eles sabem, eles que cresceram entre as vicissitudes da vida, que
a ventura só é para os que obtêm, como seus filhos, ó fim o mais glorioso ou,
como eles, o luto o mais honroso e para os quais o termo da vida é a medida da
felicidade.
Sei
muito bem o quanto é difícil persuadir-vos. Ante a felicidade dos demais,
felicidade de que haveis gozado, chegareis em muitos momentos a recordar a
memória dos vossos desaparecidos. Sofremos menos quando nos privamos de bens
dos quais não aproveitamos do que com a perda daqueles aos quais estamos
habituados. É preciso, pois, sofrer pacientemente e se consolar com a esperança
de ter outros filhos, vós aos quais a idade ainda o permite. Os novos filhos
substituirão na família os que não existem mais; e a cidade ganhará uma
vantagem dupla: a sua população não diminuirá e a segurança estará garantida,
pois os que entregam seus filhos ao perigo pelo bem da República, como o
fizeram os que perderam os seus nesta guerra, inspiram mais confiança que os
que não fazem.
Agora,
cumpre que cada um se retire, uma vez que chorou na hora dos desaparecidos.
Os
que não têm esta esperança, recordem a sorte que tiveram gozando de uma vida
que na sua maior parte foi feliz; o resto será curto; que a glória dos vossos
console a vossa dor; só o amor da glória não envelhece e, com o passar da
idade, o prazer não consiste, como pretendem alguns, em amontoar riquezas, mas
em inspirar respeito.
E
vós, filhos e irmãos destes mortos, pensai a que vos obriga o seu valor e
heroísmo. Não há homem que não elogie a virtude e o esforço dos que morreram. A
vós, apesar dos vossos méritos, será muito difícil alcançar o seu mesmo nível,
e não digamos superá-lo. Porque entre os vivos, o desejo da emulação provoca
sempre a inveja, enquanto todos elogiam e honram os que morrem.
Também
farei menção às mulheres que ficaram viúvas, expressando o meu pensamento numa
breve exortação: toda a sua glória consiste em não mostrar-se inferiores à sua
natureza e que se fale delas o menos possível entre as gentes, tanto no seu bem
como no seu mal.
Terminarei.
Conforme as leis, as minhas palavras expressaram o que me pareceu útil. Quanto
às honras reais, foram elas rendidas em parte aos que aqui jazem, mais honrados
pelas suas obras do que pelas minhas frases.
Doravante,
os seus filhos, se são menores, serão educados até à adolescência, correndo os
gastos a cargo da República. Uma coroa é oferecida pela cidade a fim de
homenagear as vítimas destas batalhas e seus sobreviventes, pois os povos que
recompensam a virtude com magníficos prémios obtêm também os melhores cidadãos.
Fonte:
Adriano
Moreira, "Ideal Democrático, O Discurso de Péricles",
Legado Político do Ocidente (O Homem e o
Estado),
3.ª ed.,
Estratégia, vol. VIII, 1995, págs. 15-31.
Lola
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