quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Retórica no Fedro de Platão






Retórica no Fedro de Platão

A oratória
(…)
SÓCRATES: - Não te parece que a retórica seja a arte de dirigir as almas por meio de palavras, não só nos tribunais e outras reuniões públicas, mas também entre particulares, tanto nos grandes como nos pequenos assuntos? Não te parece ser tão louvável empregá-la, assim como deve ser empregada, nos negócios importantes como nos de pouca monta? Não é o que tens ouvido dizer sobre este assunto?
FEDRO: - Não é bem isso, por Zeus! Acima de tudo, fala-se e escreve-se com arte nos julgamentos e nas assembleias do povo. Quanto ao mais, nunca ouvi qualquer referência.
SÓCRATES: - Acaso não ouviste falar nas regras de retórica que Nestor e Ulisses escreveram perto de Ílion durante suas folgas? Não te falaram, também, das regras de Palamedes?
FEDRO: - Por Zeus que não! Nem das de Nestor e de Ulisses, a não ser que o teu Nestor seja Górgias e Trasímaco e Teodoro um Ulisses. 
SÓCRATES: - Talvez. Mas deixemos de lado esses homens. Diz-me tu: como procedem nos tribunais os advogados dos litigantes? Não contradizem um ao outro? Ou não será bem assim? 
FEDRO: - É exatamente assim.
SÓCRATES: - Eles contradizem pois um ao outro a respeito do justo e do injusto?
FEDRO: - Sim.
SÓCRATES: - E quem fizer isso com arte não conseguirá que a mesma coisa pareça aos mesmos homens ora justa, ou injusta, como melhor lhe convier?
FEDRO: - Sim.
SÓCRATES: - E nas assembleias do povo ele não conseguirá que que mesma coisa pareça aos cidadãos do Estado, por vezes boa e outras má?
FEDRO: - É justamente o que sucede.
SÓCRATES: - Não sabemos nós que o Palamedes eleático falava com tanta arte que a mesma coisa parecia aos seus ouvintes semelhante e dessemelhante, unidade e diversidade, imóvel e em movimento?
FEDRO: - Sim, sabemos.
SÓCRATES: - Ora, não só em tribunais e nas assembleias do povo há discussões e contradições; em toda sorte de discursos a arte, caso exista, deve ser a mesma, permitindo que tudo se possa comparar e lançar luz sobre as comparações, tornar claro o que o adversário procura confundir ou obscurecer.
FEDRO: - Como a entendes tu, Sócrates?
SÓCRATES: - Nossa indagação vai esclarecê-lo. Entre quais coisas é mais fácil que haja engano: nas que diferem muito ou pouco entre si?
FEDRO: - Nas que diferem pouco.
SÓCRATES: - E o engano será menos notado se passarmos gradualmente de uma causa para o seu contrário, do que se o fizermos de um só salto?
 FEDRO: - Evidentemente.
SÓCRATES: - Pois bem: quem quer iludir alguém, sem se deixar iludir, deve conhecer com exatidão e detalhadamente a semelhança e dissemelhança dos objetos.
FEDRO: - Sim.
SÓCRATES: - Um homem que não conhece as verdadeiras qualidades de cada coisa será capaz de perceber a maior ou menor semelhança entre um objeto desconhecido e os que já lhe são familiares?
FEDRO: - É impossível.
SÓCRATES: - Torna-se pois evidente que aqueles cuja opinião não corresponde à realidade e que têm dela conceito errôneo, caem em tal erro porque foram iludidos por certas semelhanças. 
FEDRO: - Sim, claro.
SÓCRATES: - E se um homem ignorar as verdadeiras qualidades das coisas não poderá passar pouco a pouco da realidade ao seu contrário, utilizando a sua arte por meio de semelhanças. Ou ser-lhe-á possível defender-se contra isso?
FEDRO: - Nunca.
SÓCRATES: - Logo, meu caro amigo, quem não conhece a verdade, mas só alimenta opiniões, fará naturalmente da arte retórica uma coisa ridícula que não merece o nome de arte.
FEDRO: - Parece que sim.
SÓCRATES: - Queres que procuremos agora, no discurso de Lísias que trazes contigo, bem como nos outros dois que pronunciamos, quais as coisas que chamamos de arte e quais as que não o são?
FEDRO: - Nada me daria maior prazer do que isso, pois até agora estivemos falando em regras abstratas; sem mencionar exemplos.
SÓCRATES: - Parece que, por felicidade, os dois discursos contêm este exemplo: aquele que possui a verdade pode, facilmente, iludir seus ouvintes. Eu, porém, caro Fedro, atribuo isso aos deuses deste lugar; mas pode ser também que os arautos das Musas, os cantores acima de nossa cabeça, nos tenham inspirado; porque eu não tenho nenhum conhecimento da arte retórica.
FEDRO: - Pode ser; mas explica o que dizes!
SÓCRATES: - Então lê o exórdio do discurso de Lísias.
FEDRO: - “Conheces os meus sentimentos e, como já me ouviste dizer, acredito que nos será proveitosa a realização deste desejo. Confio em que meu pedido não será feito em vão, pois não sou teu amante. Os amantes, com efeito, ao saciarem sua concupiscência, arrependem-se...”
SÓCRATES: - Basta. Devemos verificar qual é o erro do autor e em que ponto ele não se mostra à altura de sua arte, não é verdade?
FEDRO: - Sim.
SÓCRATES: - Não é evidente que estamos de acordo em certos pontos e em outros temos opiniões diferentes?
FEDRO: - Acho que entendo o que queres dizer, mas fala com mais clareza!
SÓCRATES: - Quando alguém usa as palavras “ferro” ou “prata”, não pensamos todos a mesma coisa?
FEDRO: - Naturalmente.
SÓCRATES: - Mas quando alguém diz “justo” ou “bom”, não pensa um numa coisa e outro noutra? Não discordamos a esse respeito uns dos outros e até de nos mesmos? 
FEDRO: - Sim, muito.
SÓCRATES: - Muito bem; então em alguns assuntos concordamos; em outros não. 
FEDRO: - Assim é.
SÓCRATES: - Em que assuntos podemos ser iludidos com mais facilidade? Em qual dos dois casos a arte retórica tem mais poder?
FEDRO: - Evidentemente, em assuntos incertos e duvidosos.
SÓCRATES: - Segue daí que quem quiser dedicar-se à arte retórica, deve primeiro ter distinguido entre esses dois gêneros de assuntos e compreendido o caráter de cada um deles; deve também saber em que casos a massa do povo duvida e em que casos a dúvida é impossível.
FEDRO: - O orador que alcançasse isso, caro Sócrates, possuiria por certo muita habilidade.
SÓCRATES: - Sim, esse homem nunca teria dúvida, perceberia logo a qual dos dois gêneros pertence o assunto sobre que pretende falar.
FEDRO: - É claro.
SÓCRATES: - Mas então, que diremos de Eros? Será ele um caso de dúvida, ou não?
FEDRO: - Evidentemente, é um dos assuntos sobre os quais paira dúvida. Ou acreditas que Eros te permitiria dizer o que há pouco disseste dele, afirmando primeiro que é uma desgraça para o amado, e depois descrevendo-o como o maior dos bens?
SÓCRATES: - Falaste muito bem. Mas dize-me ainda uma coisa, pois, devido ao meu entusiasmo não me recordo bem: no início do meu discurso, dei uma definição do amor?
 FEDRO: - Sim, por Zeus, e uma definição excelente.
SÓCRATES: - Oh! então as ninfas do Aqueloo e o Pã de Hermes devem possuir muito mais arte quanto a discursos do que Lísias, o filho de Céfalo! Ou porventura estarei enganado? Deu-nos Lísias, no começo do seu discurso sobre o amor, uma definição de Eros? Ordenou ele o discurso de acordo com essa definição para assim o realizar? Queres ver mais uma vez o princípio do discurso?
FEDRO: - Se quiseres, eu o farei; mas o que procuras não está aqui. 
SÓCRATES: - Lê, para que eu mesmo ouça o que ele diz!
FEDRO: - “Conheces os meus sentimentos e, como já me ouviste dizer, acredito que nos será proveitosa a realização deste desejo. Confio em que meu pedido não será feito em vão, pois não sou teu amante. Os amantes, com efeito, ao saciarem sua concupiscência, arrependem-se das vantagens que ofereceram...”
SÓCRATES: - Este homem, ao que parece, está muito longe de oferecer-nos o que procuramos. Não começa o discurso pelo princípio, mas pelo fim, como alguns que tentam nadar de costas. Começa por examinar o que o amante poderia dizer ao amado depois de terminado o amor. Ou não será assim, Fedro? FEDRO: - Sim, Socrates, ele só trata do fim.
SÓCRATES: - E que mais diremos? Não te parece que as frases do discurso estão mal ordenadas? Nota-se que a segunda frase deveria necessariamente ocupar o segundo lugar, mas que o mesmo se poderia dizer das demais frases. Não sou competente em matéria de discursos, mas este me deu a impressão de que o autor deitou ao papel sem muito cuidado o que lhe veio à cabeça. Conheces tu alguma regra de retórica que possa justificar a ordem adotada por ele? 
FEDRO: - Lisonjeias-me se pensas que eu seja capaz de penetrar todos os artifícios da eloquência de Lísias.
SÓCRATES: - Mas acho que convirás nisto: todo o discurso deve ser constituído como um ser vivo e ter um organismo próprio; não deve lhe faltar a cabeça nem os pés, e tanto os órgãos centrais como os externos devem estar dispostos de modo a se ajustarem uns aos outros, e também ao conjunto.
FEDRO: - Naturalmente.
SÓCRATES: - Ora, examina o discurso do teu amigo; diz-me se ele é assim! Verás que se assemelha muito à inscrição que, segundo alguns, foi gravada no sepulcro de Midas, rei da Frígia.
FEDRO: - Que inscrição?
SÓCRATES: - Esta: “Sou uma virgem de bronze e repouso no sepulcro de Midas. Enquanto correr a água e as altas árvores voltares a ser verdes. De pé, sobre este túmulo regado de lágrimas, Direi a todos que passam: aqui repousa Midas.” Sem dúvida, já deves ter notado que qualquer desses versos pode ocupar indiferentemente o primeiro ou o último lugar.
 FEDRO: - Estás zombando do nosso discurso, caro Sócrates!
SÓCRATES: - Vamos então deixá-lo de lado, para que não te enfades, embora esse discurso ofereça vários exemplos cujo exame poderia ser muito útil a alguém que quisesse imitá-lo. Dirigiremos nossa atenção aos outros discursos, pois, a meu ver, eles contêm uma particularidade importante para os que desejam discutir sobre a arte oratória.
FEDRO: - A que te referes?
SÓCRATES: - Os dois discursos se contradizem. Um afirmava que se devem conceder favores ao apaixonado, e o outro, ao não apaixonado.
FEDRO: - E afirmaram-no com muita habilidade.
SÓCRATES: - Esperava que falasses a verdade, dizendo com muito furor: Não dissemos justamente que o amor é uma espécie de delírio?
 FEDRO: - Sim. SÓCRATES: - Mas há dois tipos de delírio: um nasce de uma moléstia da alma, o outro de um estado divino que nos leva além das regras habituais.
 FEDRO: - Perfeitamente.
SÓCRATES: - Em seguida, classificamos o delírio divino em quatro espécies: um era o sopro profético de Apolo; outro, a inspiração mística de Dionísio; o terceiro, o delírio poético inspirado pelas Musas,e finalmente, a quarta espécie de delírio devia-se à influência de Afrodite e de Eros. Afirmamos que o delírio causado pelo amor é o melhor de todos. Não só como, nós que também somos atingidos pelo sopro do deus do amor, afastando e aproximando-nos da verdade ao fazer um discurso ao qual não faltava sentido - pudemos compor um hino mitológico ao amor, o deus dos jovens, o teu, o meu deus.

FEDRO: - Não foi sem prazer que ouvi esse panegírico. (...)



Para consultar a obra:





 O que distingue a visão platónica da retórica no Górgias e no Fedro?


"A intolerância juvenil de Platão, expressa em Górgias numa crítica acerba e implacável à retórica, amacia-se com a experiência e maturidade e, em Fedro, transmuta-se numa qualificada aceitação da retórica, e mesmo, em sua incorporação à filosofia." (...)




                                             Lola

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