Retórica no Fedro de Platão
A oratória
(…)
SÓCRATES: - Não te
parece que a retórica seja a arte de dirigir as almas por meio de palavras, não
só nos tribunais e outras reuniões públicas, mas também entre particulares,
tanto nos grandes como nos pequenos assuntos? Não te parece ser tão louvável
empregá-la, assim como deve ser empregada, nos negócios importantes como nos de
pouca monta? Não é o que tens ouvido dizer sobre este assunto?
FEDRO: - Não é bem
isso, por Zeus! Acima de tudo, fala-se e escreve-se com arte nos julgamentos e
nas assembleias do povo. Quanto ao mais, nunca ouvi qualquer referência.
SÓCRATES: - Acaso não
ouviste falar nas regras de retórica que Nestor e Ulisses escreveram perto de
Ílion durante suas folgas? Não te falaram, também, das regras de Palamedes?
FEDRO: - Por Zeus que
não! Nem das de Nestor e de Ulisses, a não ser que o teu Nestor seja Górgias e
Trasímaco e Teodoro um Ulisses.
SÓCRATES: - Talvez. Mas deixemos de lado esses homens. Diz-me tu: como procedem nos tribunais os advogados dos litigantes? Não contradizem um ao outro? Ou não será bem assim?
FEDRO: - É exatamente assim.
SÓCRATES: - Talvez. Mas deixemos de lado esses homens. Diz-me tu: como procedem nos tribunais os advogados dos litigantes? Não contradizem um ao outro? Ou não será bem assim?
FEDRO: - É exatamente assim.
SÓCRATES: - Eles
contradizem pois um ao outro a respeito do justo e do injusto?
FEDRO: - Sim.
SÓCRATES: - E quem
fizer isso com arte não conseguirá que a mesma coisa pareça aos mesmos homens
ora justa, ou injusta, como melhor lhe convier?
FEDRO: - Sim.
SÓCRATES: - E nas
assembleias do povo ele não conseguirá que que mesma coisa pareça aos cidadãos
do Estado, por vezes boa e outras má?
FEDRO: - É justamente
o que sucede.
SÓCRATES: - Não sabemos
nós que o Palamedes eleático falava com tanta arte que a mesma coisa parecia
aos seus ouvintes semelhante e dessemelhante, unidade e diversidade, imóvel e
em movimento?
FEDRO: - Sim,
sabemos.
SÓCRATES: - Ora, não
só em tribunais e nas assembleias do povo há discussões e contradições; em toda
sorte de discursos a arte, caso exista, deve ser a mesma, permitindo que tudo
se possa comparar e lançar luz sobre as comparações, tornar claro o que o
adversário procura confundir ou obscurecer.
FEDRO: - Como a entendes
tu, Sócrates?
SÓCRATES: - Nossa
indagação vai esclarecê-lo. Entre quais coisas é mais fácil que haja engano:
nas que diferem muito ou pouco entre si?
FEDRO: - Nas que
diferem pouco.
SÓCRATES: - E o engano será menos notado se
passarmos gradualmente de uma causa para o seu contrário, do que se o fizermos
de um só salto?
FEDRO: - Evidentemente.
SÓCRATES: - Pois bem:
quem quer iludir alguém, sem se deixar iludir, deve conhecer com exatidão e
detalhadamente a semelhança e dissemelhança dos objetos.
FEDRO: - Sim.
SÓCRATES: - Um homem
que não conhece as verdadeiras qualidades de cada coisa será capaz de perceber
a maior ou menor semelhança entre um objeto desconhecido e os que já lhe são
familiares?
FEDRO: - É
impossível.
SÓCRATES: - Torna-se
pois evidente que aqueles cuja opinião não corresponde à realidade e que têm
dela conceito errôneo, caem em tal erro porque foram iludidos por certas
semelhanças.
FEDRO: - Sim, claro.
FEDRO: - Sim, claro.
SÓCRATES: - E se um
homem ignorar as verdadeiras qualidades das coisas não poderá passar pouco a
pouco da realidade ao seu contrário, utilizando a sua arte por meio de
semelhanças. Ou ser-lhe-á possível defender-se contra isso?
FEDRO: - Nunca.
SÓCRATES: - Logo, meu
caro amigo, quem não conhece a verdade, mas só alimenta opiniões, fará naturalmente
da arte retórica uma coisa ridícula que não merece o nome de arte.
FEDRO: - Parece que
sim.
SÓCRATES: - Queres que procuremos agora, no
discurso de Lísias que trazes contigo, bem como nos outros dois que
pronunciamos, quais as coisas que chamamos de arte e quais as que não o são?
FEDRO: - Nada me daria maior prazer do que
isso, pois até agora estivemos falando em regras abstratas; sem mencionar
exemplos.
SÓCRATES: - Parece
que, por felicidade, os dois discursos contêm este exemplo: aquele que possui a
verdade pode, facilmente, iludir seus ouvintes. Eu, porém, caro Fedro, atribuo
isso aos deuses deste lugar; mas pode ser também que os arautos das Musas, os
cantores acima de nossa cabeça, nos tenham inspirado; porque eu não tenho
nenhum conhecimento da arte retórica.
FEDRO: - Pode ser;
mas explica o que dizes!
SÓCRATES: - Então lê
o exórdio do discurso de Lísias.
FEDRO: - “Conheces os
meus sentimentos e, como já me ouviste dizer, acredito que nos será proveitosa
a realização deste desejo. Confio em que meu pedido não será feito em vão, pois
não sou teu amante. Os amantes, com efeito, ao saciarem sua concupiscência,
arrependem-se...”
SÓCRATES: - Basta.
Devemos verificar qual é o erro do autor e em que ponto ele não se mostra à
altura de sua arte, não é verdade?
FEDRO: - Sim.
SÓCRATES: - Não é
evidente que estamos de acordo em certos pontos e em outros temos opiniões
diferentes?
FEDRO: - Acho que
entendo o que queres dizer, mas fala com mais clareza!
SÓCRATES: - Quando
alguém usa as palavras “ferro” ou “prata”, não pensamos todos a mesma coisa?
FEDRO: -
Naturalmente.
SÓCRATES: - Mas
quando alguém diz “justo” ou “bom”, não pensa um numa coisa e outro noutra? Não
discordamos a esse respeito uns dos outros e até de nos mesmos?
FEDRO: - Sim, muito.
FEDRO: - Sim, muito.
SÓCRATES: - Muito
bem; então em alguns assuntos concordamos; em outros não.
FEDRO: - Assim é.
FEDRO: - Assim é.
SÓCRATES: - Em que
assuntos podemos ser iludidos com mais facilidade? Em qual dos dois casos a
arte retórica tem mais poder?
FEDRO: -
Evidentemente, em assuntos incertos e duvidosos.
SÓCRATES: - Segue daí
que quem quiser dedicar-se à arte retórica, deve primeiro ter distinguido entre
esses dois gêneros de assuntos e compreendido o caráter de cada um deles; deve
também saber em que casos a massa do povo duvida e em que casos a dúvida é
impossível.
FEDRO: - O orador que
alcançasse isso, caro Sócrates, possuiria por certo muita habilidade.
SÓCRATES: - Sim, esse
homem nunca teria dúvida, perceberia logo a qual dos dois gêneros pertence o
assunto sobre que pretende falar.
FEDRO: - É claro.
SÓCRATES: - Mas então, que diremos de Eros?
Será ele um caso de dúvida, ou não?
FEDRO: -
Evidentemente, é um dos assuntos sobre os quais paira dúvida. Ou acreditas que
Eros te permitiria dizer o que há pouco disseste dele, afirmando primeiro que é
uma desgraça para o amado, e depois descrevendo-o como o maior dos bens?
SÓCRATES: - Falaste
muito bem. Mas dize-me ainda uma coisa, pois, devido ao meu entusiasmo não me
recordo bem: no início do meu discurso, dei uma definição do amor?
FEDRO: - Sim, por Zeus, e uma definição excelente.
FEDRO: - Sim, por Zeus, e uma definição excelente.
SÓCRATES: - Oh! então
as ninfas do Aqueloo e o Pã de Hermes devem possuir muito mais arte quanto a
discursos do que Lísias, o filho de Céfalo! Ou porventura estarei enganado?
Deu-nos Lísias, no começo do seu discurso sobre o amor, uma definição de Eros?
Ordenou ele o discurso de acordo com essa definição para assim o realizar?
Queres ver mais uma vez o princípio do discurso?
FEDRO: - Se quiseres,
eu o farei; mas o que procuras não está aqui.
SÓCRATES: - Lê, para que eu mesmo ouça o que ele diz!
SÓCRATES: - Lê, para que eu mesmo ouça o que ele diz!
FEDRO: - “Conheces os
meus sentimentos e, como já me ouviste dizer, acredito que nos será proveitosa
a realização deste desejo. Confio em que meu pedido não será feito em vão, pois
não sou teu amante. Os amantes, com efeito, ao saciarem sua concupiscência,
arrependem-se das vantagens que ofereceram...”
SÓCRATES: - Este
homem, ao que parece, está muito longe de oferecer-nos o que procuramos. Não
começa o discurso pelo princípio, mas pelo fim, como alguns que tentam nadar de
costas. Começa por examinar o que o amante poderia dizer ao amado depois de
terminado o amor. Ou não será assim, Fedro? FEDRO: - Sim, Socrates, ele só
trata do fim.
SÓCRATES: - E que mais diremos? Não te parece
que as frases do discurso estão mal ordenadas? Nota-se que a segunda frase
deveria necessariamente ocupar o segundo lugar, mas que o mesmo se poderia
dizer das demais frases. Não sou competente em matéria de discursos, mas este
me deu a impressão de que o autor deitou ao papel sem muito cuidado o que lhe
veio à cabeça. Conheces tu alguma regra de retórica que possa justificar a
ordem adotada por ele?
FEDRO: - Lisonjeias-me se pensas que eu seja capaz de penetrar todos os artifícios da eloquência de Lísias.
FEDRO: - Lisonjeias-me se pensas que eu seja capaz de penetrar todos os artifícios da eloquência de Lísias.
SÓCRATES: - Mas acho
que convirás nisto: todo o discurso deve ser constituído como um ser vivo e ter
um organismo próprio; não deve lhe faltar a cabeça nem os pés, e tanto os
órgãos centrais como os externos devem estar dispostos de modo a se ajustarem
uns aos outros, e também ao conjunto.
FEDRO: - Naturalmente.
SÓCRATES: - Ora,
examina o discurso do teu amigo; diz-me se ele é assim! Verás que se assemelha
muito à inscrição que, segundo alguns, foi gravada no sepulcro de Midas, rei da
Frígia.
FEDRO: - Que
inscrição?
SÓCRATES: - Esta:
“Sou uma virgem de bronze e repouso no sepulcro de Midas. Enquanto correr a
água e as altas árvores voltares a ser verdes. De pé, sobre este túmulo regado
de lágrimas, Direi a todos que passam: aqui repousa Midas.” Sem dúvida, já
deves ter notado que qualquer desses versos pode ocupar indiferentemente o
primeiro ou o último lugar.
FEDRO: - Estás zombando do nosso discurso,
caro Sócrates!
SÓCRATES: - Vamos
então deixá-lo de lado, para que não te enfades, embora esse discurso ofereça
vários exemplos cujo exame poderia ser muito útil a alguém que quisesse
imitá-lo. Dirigiremos nossa atenção aos outros discursos, pois, a meu ver, eles
contêm uma particularidade importante para os que desejam discutir sobre a arte
oratória.
FEDRO: - A que te
referes?
SÓCRATES: - Os dois
discursos se contradizem. Um afirmava que se devem conceder favores ao
apaixonado, e o outro, ao não apaixonado.
FEDRO: - E
afirmaram-no com muita habilidade.
SÓCRATES: - Esperava
que falasses a verdade, dizendo com muito furor: Não dissemos justamente que o
amor é uma espécie de delírio?
FEDRO: - Sim. SÓCRATES: - Mas há dois tipos de
delírio: um nasce de uma moléstia da alma, o outro de um estado divino que nos
leva além das regras habituais.
FEDRO: - Perfeitamente.
SÓCRATES: - Em
seguida, classificamos o delírio divino em quatro espécies: um era o sopro
profético de Apolo; outro, a inspiração mística de Dionísio; o terceiro, o
delírio poético inspirado pelas Musas,e finalmente, a quarta espécie de delírio
devia-se à influência de Afrodite e de Eros. Afirmamos que o delírio causado
pelo amor é o melhor de todos. Não só como, nós que também somos atingidos pelo
sopro do deus do amor, afastando e aproximando-nos da verdade ao fazer um
discurso ao qual não faltava sentido - pudemos compor um hino mitológico ao
amor, o deus dos jovens, o teu, o meu deus.
FEDRO: - Não foi sem
prazer que ouvi esse panegírico. (...)
Para consultar a obra:
O que distingue a visão platónica da retórica no Górgias e no Fedro?
"A intolerância juvenil de Platão, expressa em Górgias numa crítica acerba e
implacável à retórica, amacia-se com a experiência e maturidade e, em Fedro,
transmuta-se numa qualificada aceitação da retórica, e mesmo, em sua incorporação à
filosofia." (...)
Lola
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