Filosofia e direitos dos animais
Os animais têm
direitos?
Pedro Galvão
Universidade de Lisboa
Quando se pergunta se os animais têm direitos, como deveremos
entender a questão? Dar-lhe uma resposta afirmativa, importa esclarecer desde
já, não implica pensar quetodos os
animais das outras espécies conhecidas, incluindo as ostras e as moscas, têm
direitos. Quando alguém declara que os animais têm direitos, normalmente
pretende dizer apenas que, entre os animais não-humanos, alguns têm direitos. Mas de que direitos
estamos a falar? No contexto do debate em que os ensaios deste livro se inscrevem,
não de direitos legais, mas de direitos morais. A questão geral em que todos
estes ensaios se centram, então, é a de saber como devemos tratar os animais
não-humanos se adoptarmos um ponto de vista ético, independentemente do que as
leis dizem a esse respeito.
A noção de direitos morais é notavelmente ambígua, pelo que a
pergunta “Os animais têm direitos?”, mesmo depois de clarificada da forma
sugerida, admite interpretações muito diferentes.
No sentido mais amplo do termo, dizer que um ser tem direitos é
apenas afirmar que esse ser tem estatuto
moral. Se um ser tem estatuto moral, não podemos ignorá-lo ou tratá-lo como
nos apetecer. Será eticamente errado tratá-lo de certas formas, estaremos a
violar determinados deveres ou obrigações se o tratarmos dessas formas — e isso
porque esse ser “conta” por si mesmo, tem uma importância moral que é
independente de quaisquer relações que mantenha com outros seres. É
praticamente consensual que as pessoas têm estatuto moral, mas não pensamos o
mesmo de muitos objectos físicos comuns, como as pedras, os computadores e os
livros. Podemos ter o dever de não destruir um certo livro, por exemplo. Mas
não parece que tenhamos esse dever para
com o próprio livro. Se temos
esse dever, é porque o livro pertence a alguém que não deseja vê-lo destruído.
O dever que envolve o livro é, na verdade, um dever para com o seu
proprietário. Só este último tem estatuto moral.
No sentido amplo de “direitos”, qualquer perspectiva ética
admite a existência de direitos. As divergências surgem quando se procura
determinar que seres têm direitos. Os fetos humanos terão estatuto moral? E os
seres humanos que ficaram irreversivelmente inconscientes? Se os animais não-humanos
tiverem estatuto moral, teremos de fazer o mesmo juízo acerca das plantas?
Outras questões interessantes dizem respeito a desigualdades de estatuto moral.
No caso dos animais não-humanos, alguns autores defendem que certos animais (e.g.,
os grandes símios) têm um estatuto moral superior ao de outros animais (e.g.,
os répteis e os peixes), o que significa que as nossas obrigações para com os
primeiros são de algum modo mais fortes do que aquelas que os segundos nos
colocam. Há também muitos autores que, embora reconheçam estatuto moral a
alguns animais não-humanos, pensam que o estatuto moral dos seres humanos é
invariavelmente mais elevado.
Entendidos num sentido mais estrito, os direitos são um traço
distintivo das perspectivas éticas de carácter deontológico — não são compatíveis, portanto, com
todas as perspectivas éticas. Quando um deontologista diz que as pessoas
inocentes têm, por exemplo, o direito à vida, está a afirmar que é errado matar
intencionalmente uma pessoa inocente mesmo que isso seja necessário para
produzir um maior bem, como salvar várias pessoas inocentes. Concebidos
deontologicamente, os direitos são assim limites éticos àquilo que podemos
fazer aos outros não só quando perseguimos objectivos pessoais, mas também
quando temos em vista o bem-estar social ou outro fim louvável mais amplo, como
a conservação ambiental ou o alargamento do conhecimento. Para nos referirmos a
esta forma de conceber os direitos, podemos falar de direitos deontológicos. Estes,
note-se, são essencialmente negativos: respeitá-los é não interferirde certas formas
nas vidas dos indivíduos que os possuem. É por isso que por vezes são
comparados a sinais invisíveis de “passagem proibida”.
Temos então duas formas de interpretar a perspectiva de que os
animais têm direitos, que correspondem às seguintes teses:
1.
Alguns animais não-humanos têm
estatuto moral;
2.
Alguns animais não-humanos têm
direitos deontológicos.
Pode-se aceitar 1 sem aceitar 2, mas não fazer o inverso. A tese
2 é mais forte. Compromete-nos não com a simples existência de obrigações
morais para com os animais, como o dever de não os maltratar por prazer, mas
com a ideia mais precisa de que algumas dessas obrigações consistem em deveres
muito fortes, ou até absolutos, de não interferir ofensivamente na vida dos
animais mesmo quando fazê-lo fosse muito vantajoso para nós ou para os seres
humanos em geral.
A perspectiva cartesiana
O pensamento ocidental tem sido bastante hostil à perspectiva de
que os animais têm direitos, por vezes até em oposição ao senso comum. De
acordo com o senso comum, muitos animais são dotados de uma vida mental
consciente: sentem prazer e dor, têm diversos tipos de experiências sensoriais,
são capazes de sentir medo, fúria ou alegria, agem segundo memórias, desejos e
intenções. No século XVII, René Descartes desafiou esta convicção ao sugerir
que os animais não passavam, na verdade, de máquinas particularmente
intrincadas. Em seu entender, eram autómatos destituídos de pensamento ou de
qualquer consciência.
Mesmo entre os filósofos, a perspectiva cartesiana nunca foi
muito influente. Mas continua a ter alguns defensores, que argumentam de forma
semelhante à de Descartes: os animais não dominam nenhuma linguagem; na
ausência de linguagem não há pensamento (ou, pelo menos, não há razões para
atribuir pensamento); e na ausência de pensamento não pode haver consciência;
logo, os animais não têm consciência — ou, pelo menos, não temos razões
suficientemente boas para lhes atribuir consciência.
É fácil perceber que a perspectiva cartesiana, se fosse
verdadeira, tornaria muito difícil acreditar que os animais têm estatuto moral.
As razões que teríamos para nos preocupar com o que lhes fazemos não seriam
muito diferentes das nossas razões para nos preocuparmos com as máquinas. E é
de presumir que as máquinas — excluindo algumas das que vemos em filmes de
ficção científica — não têm estatuto moral.
Contudo, o argumento cartesiano afigura-se pouco convincente. Um
dos autores incluídos neste livro, Tom Regan, responde-lhe desta forma:
As crianças humanas têm de estar conscientes das coisas
antes de aprenderem a usar uma linguagem. Se não estivessem, se não pudessem
ver, ouvir ou sentir antes de aprenderem a falar, nunca poderiam aprender a
falar. Não valeria a pena — não poderiavaler
a pena — segurar num gato e dizer “gatinho” apontando para ele, se as crianças
pré-verbais fossem incapazes de ver o gato ou de ouvir a nossa voz. As crianças
humanas têm de estar pré-verbalmente (e assim não-verbalmente) conscientes do
mundo para que se tornem linguisticamente proficientes.
(Tom Regan, Animal Rights, Human Wrongs:
An
Introduction to Moral Philosophy, Lanham,
Rowman & Littlefield, 2003,
p. 35)
Deste modo, conclui Regan, a proficiência linguística não é uma condição necessária para a
consciência: se um animal não domina uma linguagem, isso não o impede de ser
consciente, de ter experiências subjectivas como dores, emoções e recordações.
A maior parte dos filósofos da mente actuais concordaria com
Regan, ainda que alguns deles tenham muitas reservas quanto à possibilidade de
sabermos como será estar na pele de outros animais. E
nesta matéria também a ciência parece estar do lado senso comum. As semelhanças
entre o nosso sistema nervoso e o de muitas outras espécies oferecem boas
razões para crer que os animais dessas espécies (os mamíferos e as aves, pelo
menos) têm consciência. De um ponto de vista darwinista, aliás, seria espantoso
que a consciência se restringisse aos seres humanos: isso significaria que a mente
humana, extraordinariamente rica e complexa, teria irrompido do nada, por assim
dizer, em vez de ter evoluído de forma muito lenta e gradual a partir de mentes
mais simples de animais de outras espécies.
A perspectiva kantiana
Tanto hoje como no passado, a oposição aos direitos dos animais
tem coexistido com o reconhecimento de que os seres humanos não detêm o
monopólio da vida consciente. De um modo geral, essa oposição tem-se baseado
antes na ideia de que, se compreendermos correctamente a natureza da ética,
concluiremos que os animais não têm estatuto moral. Foi esta ideia que, no
século XVIII, levou Immanuel Kant a sustentar que todos os nossos deveres
relativos aos animais são meramente “indirectos”:
Os animais não têm consciência de si
e existem apenas como meio para um fim. Esse fim é o homem. Podemos perguntar
“Por que razão existem os animais?”. Mas perguntar “Por que razão existe o
homem?” é colocar uma questão sem sentido. Os nossos deveres em relação aos
animais são apenas deveres indirectos em relação à humanidade. […] Assim, se um
homem abater o seu cão por este já não ser capaz de o servir, ele não infringe
o seu dever em relação ao cão, pois o cão não pode julgar, mas o seu acto é
desumano e fere em si essa humanidade que ele deve ter em relação aos seres
humanos. Para não asfixiar os seus sentimentos humanos, tem de praticar a
generosidade em relação aos animais, pois aquele que é cruel para os animais
depressa se torna rude também no modo de lidar com os homens. Podemos julgar o
coração de um homem pelo modo como ele trata os animais.
(Excerto de Lições sobre Ética incluído em Tom Regan e Peter Singer,
orgs.,
Animal Rights and Human
Obligations, 2.ª ed.,
Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1989, pp. 23-24.)
Em muitas circunstâncias, então, será errado maltratar animais —
mas isso unicamente porque
maltratar animais fomenta uma atitude ofensiva em relação aos seres humanos.
Kant acrescenta que nada tem a objectar ao uso cruel de animais na investigação
científica, “dado que os animais têm de ser vistos como instrumentos do homem”
(idem, p. 24.) e, nesse âmbito, a crueldade promove um fim louvável. Mas
por que razão haveremos de pensar assim, recusando qualquer estatuto moral aos
animais? A justificação de Kant reside no princípio que, em seu entender, é o
“imperativo categórico” ou lei fundamental da moralidade:
Age de tal maneira que uses a
humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.
(Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos
Costumes (1785)
Lisboa,
Edições 70, 2010, p. 77.)
Este princípio, pelo menos como o próprio Kant o entendeu,
resulta numa ética deontológica. Respeitá-lo implica não tratar os outros como
“meros” meios, mesmo quando fazê-lo fosse a melhor forma de promover fins
socialmente desejáveis. O imperativo kantiano, porém, circunscreve-se às pessoas, concebidas como seres
racionais e autónomos. Da forma como Kant vê a racionalidade e a autonomia, nem
mesmo os animais não-humanos mentalmente mais complexos parecem ter estas
propriedades. Por isso, só os seres humanos têm estatuto moral.
A perspectiva utilitarista
Ainda no século XVIII, Jeremy Bentham pôs em causa a perspectiva
tradicional sobre os direitos dos animais. Como declarou numa passagem
emblemática — que não vale a pena citar aqui integralmente, dado que o leitor
irá encontrá-la logo no primeiro ensaio desta antologia — “A questão não é
“Será que podem raciocinar?” nem “Será que podemfalar?”, mas “Será
que podem sofrer?”” (Jeremy Bentham, Introdução
aos Princípios da Moral e da Legislação, 1823, Cap. XVII.)
Bentham está aqui a sustentar que nem a racionalidade nem a
proficiência linguística são condições necessárias para ter estatuto moral.
Para que um ser seja eticamente considerável, basta que seja senciente, isto é, que tenha a
capacidade de sentir dor ou prazer. Bentham sugere também que o modo como
desconsideramos o sofrimento dos animais não-humanos é comparável à
desconsideração de alguns pelos seres humanos de outras raças. Parece ter sido
assim o primeiro autor a sugerir uma analogia entre o racismo e a atitude que
muito mais tarde seria designada como especismo:
a discriminação baseada na espécie.
No ensaio “Todos os Animais são Iguais”, Peter Singer desenvolve
e defende a analogia que Bentham esboçou, alegando que ambas as formas de
discriminação — bem como o sexismo — resultam de preconceitos indefensáveis.
Singer argumenta que a igualdade moral deve ser entendida como um princípio
prescritivo: devemos considerar imparcialmente os interesses daqueles que serão afectados pelas
nossas acções. Excluir os interesses dos animais não-humanos desta
consideração, ou dar-lhes um peso inferior àquele que atribuímos aos interesses
semelhantes dos membros da nossa espécie, não poderá deixar de ser
inaceitavelmente arbitrário.
Ao rejeitar o especismo, Singer reconhece estatuto moral a todos
os animais sencientes, seja qual for a sua espécie. Mas não lhes atribui
direitos deontológicos, e isto porque simplesmente nega a existência destes
direitos. À semelhança de Bentham, Singer é um utilitarista. Embora no ensaio
aqui incluído não se empenhe em defender uma interpretação especificamente
utilitarista do princípio da igual consideração de interesses, essa é a
interpretação que julga correcta. Atender imparcialmente aos interesses dos
seres sencientes, em seu entender, consiste sempre em agir da forma que resultará nas
melhores consequências, isto é, num maior bem-estar geral. O utilitarismo — ou
este tipo de utilitarismo, pelo menos — é incompatível com qualquer perspectiva
deontológica da ética. Se promover o bem-estar geral implicar, em certos casos,
maltratar seriamente alguns indivíduos, humanos ou de outra espécie, ainda
assim não deveremos abster-nos de os maltratar.
Note-se que Singer, apesar de repudiar o especismo, não defende
que todos os seres sencientes têm o mesmo estatuto moral. Não pensa, por
exemplo, que matar um rato seja tão grave como matar um membro paradigmático da
nossa espécie. Admitindo que os seres humanos, em virtude da sua constituição
psicológica, têm normalmente um interesse muito mais forte em continuar a viver
do que os ratos, à partida será muito pior matar um ser humano. Quem rejeita o
especismo não está a presumir que devemos tratar todos os animais com a mesma
consideração, independentemente da sua espécie; está apenas a sustentar que as
diferenças de tratamento nunca podem justificar-se simplesmente em termos da
pertença à espécie. Se julgarmos que é aceitável infligir um certo mal a um
cão, mas que seria inaceitável proceder dessa forma em relação a um ser humano,
não podemos justificar o nosso juízo observando apenas que o cão não pertence à
nossa espécie. A justificação, a existir, terá de ser outra.
“Nem só os seres humanos têm direitos”
Peter Singer tem exercido uma influência profunda não só na
discussão filosófica sobre o estatuto dos animais, mas também no próprio
movimento da sua defesa. Podemos dizer o mesmo de Tom Regan, que resume o seu
argumento central a favor dos direitos dos animais no primeiro dos capítulos de Animal Rights, Human Wrongs incluído nesta antologia. Apesar de
haver uma convergência apreciável entre estes autores no que respeita a muitas
questões estritamente práticas, eles divergem profundamente na sua posição
ética fundamental. Regan acredita em direitos deontológicos, opondo-se assim ao
utilitarismo. Mas, criticando também a moralidade tradicional, defende que não
podemos restringir estes direitos aos seres humanos.
Regan entende que a perspectiva deontológica de Kant é insatisfatória
por excluir muitos seres humanos da esfera da consideração moral. As crianças
mais novas e muitos deficientes mentais, por exemplo, não são racionais ou
autónomos — e assim, se Kant tivesse razão, poderiam ser tratados como meros
meios. Como pensa que isso seria inadmissível, Regan propõe que adoptemos um
critério mais inclusivo na atribuição de direitos, o que o leva a introduzir o
conceito de sujeito-de-uma-vida.
Aqueles que são sujeitos-de-uma-vida têm uma vida mental caracterizada por um grau
apreciável de unidade psicológica, o que não significa que sejam racionais ou
autónomos. Podem não ter muitas das capacidades cognitivas que encontramos na
maioria dos seres humanos, mas não são meramente sencientes. Regan elucida
desta forma o conceito em questão:
Os indivíduos são
sujeitos-de-uma-vida se têm crenças e desejos; percepção, memória e uma noção
do futuro, incluindo do seu próprio futuro; uma vida emocional com sensações de
prazer e dor; interesses de preferências e de bem-estar; a capacidade de
iniciar acções na persecução dos seus desejos e objectivos; uma identidade
psicofísica ao longo do tempo; e um bem-estar individual no sentido em que sua
vida experiencial lhes corre melhor ou pior, de forma logicamente independente
da sua utilidade para os outros ou de serem objecto dos interesses de outros.
(Tom Regan, The Case for
Animal Rights, 2.ª ed.,
Berkeley e Los Angeles,
University of California
Press, 1983, p. 243)
Ser sujeito-de-uma-vida, segundo a “perspectiva dos direitos” de
Regan, é uma condição suficiente para beneficiar da protecção de certos
direitos deontológicos. Regan tem em mente o direito à vida, o direito à
liberdade e o direito à integridade corporal — ou, de um modo mais geral, o
direito a ser tratado com respeito. Quando adoptamos este critério mais
inclusivo para a posse de direitos, sugere Regan, vemos que não podemos parar
na espécie humana. Muitos animais de outras espécies — no mínimo, os mamíferos
e as aves — também são sujeitos-de-uma-vida, pelo que recusar-lhes direitos
seria perfeitamente arbitrário.
No movimento de defesa dos animais podemos discernir duas
correntes principais: uma delas, mais moderada e de inspiração utilitarista,
toma como preocupação central o bem-estar ou os interesses dos animais; a
outra, mais radical e de inspiração deontológica, exige justiça para os
animais, isto é, que os seus direitos sejam respeitados independentemente das
consequências que daí advenham. O pensamento de Regan apoia esta última
corrente. Se as suas propostas fossem implementadas, a generalidade das
práticas humanas de utilização dos animais seriam pura e simplesmente abolidas,
e não reformadas no sentido de uma maior consideração pelo seu bem-estar.
“Só os seres humanos têm direitos”
Seguem-se ensaios de dois dos críticos principais de Regan. Carl
Cohen, um desses críticos, começa por salientar que a perspectiva de Regan tem
implicações práticas que a maior parte das pessoas não aceitaria, especialmente
no âmbito da investigação médica. À semelhança de Regan, Cohen é um deontologista.
Mas, apesar de não negar que alguns animais têm estatuto moral, alega que a sua
importância é muito inferior à dos seres humanos, em grande medida porque só os
membros da nossa espécie beneficiam da inviolabilidade decorrente da posse de
direitos deontológicos. O objectivo de Cohen é mostrar não só que apenas os seres humanos têm estes direitos,
mas também que todosos
seres humanos os têm.
Enquanto Cohen argumenta contra os direitos dos animais sem se
comprometer com nenhuma teoria ética definida, Jan Narveson adopta uma posição
abertamente contratualista. De acordo com o tipo de contratualismo que Narveson
representa, a ética consiste em regras que concordamos aceitar por uma questão
de interesse pessoal. Aceitamo-las de modo a beneficiar da cooperação com os
outros e a evitar que os outros nos prejudiquem seriamente. Nesta ou noutras
versões de contratualismo, é difícil encontrar uma justificação para atribuir
direitos aos animais não-humanos. Pois estes, para começar, parecem incapazes
de participar num acordo. Narveson sustenta assim que os animais não só não têm
direitos deontológicos como são destituídos de estatuto moral.
Um problema geral que se coloca tanto a Cohen como a Narveson é
conciliar as suas perspectivas sobre os animais não-humanos com a opinião, sem
dúvida amplamente consensual, de que devemos uma grande consideração moral a
muitos seres humanos cujas capacidades psicológicas não são superiores às de
muitos animais de outras espécies. Ambos estão conscientes deste problema e procuram
resolvê-lo. Naturalmente, caberá ao leitor avaliar a credibilidade das suas
respostas, bem como, no caso de Narveson, a plausibilidade do seu
contratualismo. Importa não esquecer, por exemplo, que os seres humanos das
gerações futuras não podem participar num acordo connosco, e que nada poderão
fazer para nos prejudicar nem para nos beneficiar, dado que quando existirem já
estaremos mortos. Deveremos, então, ignorar completamente os seus interesses?
Em “Objecções e Respostas”, outro capítulo de Animal Rights, Human Wrongs,
Tom Regan não discute o contratualismo de Narveson. Mas examina tanto os
argumentos de Cohen como diversas objecções gerais e religiosas à sua
perspectiva.
Da biologia à ética
Os ensaios de J. Baird Callicott e de James Rachels sugerem que
os factos da biologia põem em causa a moralidade tradicional e aquilo que esta
nos diz sobre os animais não-humanos. Contudo, as conclusões destes autores a
respeito da importância dos animais, considerados como indivíduos, são muito
diferentes.
No primeiro dos seus ensaios — precedido de uma introdução
original que o autor preparou para este volume — Callicott defende a chamada
“ética da terra”, tomando como inspiração principal o pensamento do
ambientalista Aldo Leopold e contrastando-a sobretudo com as perspectivas de
Singer e Regan. O princípio básico desta perspectiva, como Leopold o formulou,
é o seguinte: “Uma coisa está certa quando tende a preservar a integridade,
estabilidade e beleza da comunidade biótica. Está errada quando tem a tendência
inversa” (Aldo Leopold, A Sand
County Almanac, Nova Iorque,
Oxford University Press, 1949, pp. 224-225). À semelhança do utilitarismo, a
ética da terra diz-nos que agimos correctamente na medida em que promovemos um
determinado bem. O bem a promover, no entanto, não é de forma alguma o
bem-estar de todos os indivíduos sencientes, mas a “saúde” — por assim dizer —
de uma entidade muito mais ampla: a “comunidade biótica”. Fazem parte desta
comunidade não só animais e plantas, mas também entidades inanimadas, como
cursos de água e montanhas.
O traço da ética da terra que mais a demarca de todas as outras
perspectivas que podemos encontrar neste livro é o seu holismo moral. Segundo
Callicott, o todo em que a comunidade biótica consiste tem prioridade sobre as
partes que o compõem. Isto significa, por exemplo, que os interesses dos
animais individuais podem e devem ser sacrificados em função da integridade,
estabilidade e beleza da comunidade biótica.
Callicott não atribui, pois, quaisquer direitos deontológicos
aos animais. E sugere que estes têm estatuto moral apenas enquanto elementos da
comunidade biótica. Não é assim de estranhar que muitos críticos de Callicott,
incluindo Regan, tenham descrito a sua posição ética como “fascismo ecológico”
ou “ecofascismo”, já que o modo de ver a nação no pensamento político fascista
parece análogo ao modo como a ética da terra nos apresenta a comunidade
biótica.
James Rachels centra a sua atenção não na ecologia, mas no
darwinismo. Sustenta que o pensamento evolucionista torna insustentável a
crença num fosso moral entre os seres humanos e os membros de todas as outras
espécies. Distingue e rejeita duas formas de especismo, contrapondo-lhes um
individualismo moral. O estatuto moral de um indivíduo, alega Rachels, depende
fundamentalmente das suas características particulares, e não da sua pertença a
grupos ou a entidades mais inclusivas.
O segundo dos ensaios de Callicott, publicado quase uma década
depois do primeiro, pode ser visto como uma defesa de uma posição intermédia:
uma posição que, não sendo individualista, também não é radicalmente holista. O
princípio da ética da terra, salienta agora Callicott, capta apenas um segmento
da moralidade. Pois, além de fazermos parte da comunidade biótica, somos
membros de outras comunidades mais específicas e temos obrigações que decorrem
da nossa pertença a essas comunidades. Essas obrigações, aliás, podem ter uma
orientação individual e suplantar o dever de promover a “saúde” dos
ecossistemas. Callicott mantém a sua perspectiva sobre o modo como devemos
relacionar-nos com os animais selvagens, mas revê a sua opinião acerca do
tratamento devido aos animais domésticos, sugerindo que estes, como participam
connosco em certas comunidades restritas, estão habilitados a uma consideração
especial.
Matar animais
Jeff McMahan é o filósofo que tem investigado de forma mais
profunda e sistemática as questões éticas sobre o acto de matar. No último
ensaio desta antologia, aborda o problema da moralidade de matar animais,
discutindo uma prática que designa como “carnivorismo benigno”.
Há uma oposição cada vez mais forte ao modo prevalecente de
criar animais para nos alimentarmos, mas esta oposição assenta sobretudo no
sofrimento que os animais têm de suportar antes de chegarem ao nosso prato.
McMahan convida-nos a examinar uma prática em que os animais seriam criados em
condições bastante aprazíveis antes de serem mortos. Ainda assim, seria errado
matá-los? Pode parecer que não, até porque esses animais nunca teriam chegado a
existir se não desejássemos comê-los. McMahan, no entanto, argumenta que o
carnivorismo benigno só seria aceitável em condições muitíssimo peculiares e
que, para descobrirmos o que há de errado nesta prática, não precisamos sequer
de supor que os animais têm um direito deontológico à vida: basta que atendamos
devidamente aos seus interesses.
Pedro Galvão
Extraído de Os Animais têm Direitos?
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