Humanidades, porque não?
Humanidades.
O que vale para a sociedade a sua capacidade de pensar?
O que levou dois bons alunos a apostarem
em cursos que muitos evitam. E o que significa, para José Gil, aprender a
pensar
"Se eu não morresse, nunca! E
eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas!". As palavras
de Cesário Verde - poeta que morreu cedo, aos 31 anos, mas se aproximou tanto
do que perseguia que influenciou gerações - enfeitam uma das paredes da estação
de metro da Cidade Universitária, em Lisboa. Todos os dias são lidas por
centenas de estudantes que por ali passam. Mas talvez sejam poucos os que
absorvem - ou valorizam - aquela ambição estranha de passar uma eternidade a
perseguir a sabedoria.
Tiago Silva, 20 anos, aluno de Artes e
Humanidades na Universidade de Lisboa, será uma dessas exceções. Não vale a
pena recordar-lhe que a área que escolheu não consta da lista das mais
procuradas nos anúncios de emprego. Muito menos procurar-lhe angústias sobre o
futuro. O presente, a "estudar e aprender" é tudo o que o preocupa.
"Quero continuar a aprender ao
longo da vida, isso seria o ideal", lá admite. "Não consigo pensar na
universidade como um percurso para algo. Vejo-a como um fim em si próprio. Isso
é muito importante: influencia a atitude e a postura que temos enquanto estamos
cá. Trabalhamos para isso porque gostamos de facto de estar cá".
Beatriz Saraiva, os mesmos 20 anos,
aluna de Línguas, Literaturas e Culturas, também já deixou há muito para trás
as inquietações. Ainda arriscou seguir um rumo diferente daquele que lhe
apontava a vocação. No 10.º ano, influenciada pela escolha do seu "unido
grupo de amigas", aventurou-se nas Ciências. "Queríamos todas ser
médicas", recorda. Um ano, "com as notas em acentuada descida", bastou
para retomar o caminho.
Quando , no final do secundário,
anunciou à família que iria para Letras, e ainda teve de enfrentar a
preocupação do pai com "as saídas profissionais", já tinha a resposta
para lhe dar: "Nunca serei boa a ciências se tiver 10 ou nove valores".
E, como que para provar que fez a opção certa, tornou-se numa das melhores
alunas do seu curso. "Tenho a crença de que quem é bom no que faz consegue
fazer o seu caminho, arranjar emprego. E tento sempre ser a melhor".
É claro que ambos têm expectativas de
futuro para além da academia. Beatriz vê-se a fazer crítica literária, a
trabalhar numa editora, talvez, um dia, a arriscar mostrar a alguém as palavras
que escreve e para já guarda para si. Tiago talvez dê aulas. Tem temas
prediletos. "Gosto muito de trabalhar as relações entre cinema e
literatura", diz, agradecendo o facto de ter escolhido um curso onde é
possível, "no mesmo semestre, estudar João de Damasco [ou Damasceno] e os
filmes de Bresson. É uma loucura. Mas uma loucura com método".
Para já, o que os preenche mesmo, aos
dois, é a oportunidade de frequentarem cursos onde são incentivados a verem o
mundo pelos seus próprios olhos.
"Gostava de acabar com aquela ideia
de que é importante estudar Humanidades porque nos ajudam a descobrir o nosso
lugar no mundo ou a perceber de onde viemos", diz o estudante.
"Também pode ser isso, mas há muitas coisas na nossa vida que fazem isso
por nós. Eu acho que é importante sobretudo porque nos ajuda a pensar. Nos dá
tempo para pensar".
Têm ambos a consciência de que hoje, na
área em que estão, pertencem a uma minoria. E não apenas por serem bons alunos,
cujas médias teriam sido suficientes para que tivessem entrado em muitos outros
cursos, com outras garantias de segurança. São diferentes, sobretudo, porque
nunca se arrependeram da escolha.
"Nota-se muito, à medida que as
semanas avançam, que as turmas vão-se esvaziando", conta Beatriz.
"Logo de início, distinguem-se as pessoas que percebem que nas Humanidades
se tem de trabalhar tanto ou mais do que nas outras áreas", completa Tiago.
O "erro de reduzir o homem"
José Gil, que estudou Matemática antes
de se licenciar em Filosofia - e que, de acordo com o Nouvel Observateur, é um
dos 25 grandes pensadores do mundo - angustia-se perante os dados (ver texto ao
lado) que mostram que as chamadas Humanidades - "a filosofia e ciências
humanas em geral, as línguas" - passaram a ser uma segunda escolha para a
maioria dos estudantes.
Uma realidade diretamente influenciada
pelos sinais que lhes são transmitidos pela sociedade. "O afastamento que
existe em Portugal entre o ensino e o interesse público e económico e, por
outro lado, as Humanidades, é um erro", avisa. "Mesmo do ponto de
vista da cultura da empregabilidade, do empreendedorismo, do rendimento
económico é um erro", reforça. "Sabemos como essa cultura, nos
Estados Unidos, em Inglaterra, em França, vai buscar humanidades de toda a
espécie, da sociologia à psicologia, para promover e fazer render os seus
produtos. Mesmo do ponto de vista deles, veja como o Pessoa se tornou para o
turismo uma mercadoria tão rentável".
A este soma-se o erro de "acreditar
que o conhecimento é resultado apenas de uma ciência positiva. Há uma espécie
de positivismo ou neopositivismo que leva a que só se dê crédito às ciências
duras: a matemática, a biologia, pensando que se pode pôr de lado, como uma
inutilidade, as humanidades". Este, considera, "é um erro que se paga
caro. O que é que cientistas como [António] Damásio fazem? Vão buscar
referências a Descartes, a Espinoza, para compreenderem os resultados das suas
experiências em neurociências", argumenta.
Há ainda um definitivo erro, diz:
"Reduzir o homem e a sua inquietação, o seu desassossego, a duas ou três
funções elementares. Como se fosse possível isso fazê-lo aprender a
pensar". Sobretudo "quando derrubar barreiras disciplinares é uma
exigência dos tempos de hoje. Quando nos interrogamos sobre a violência que
deflagra no mundo, por exemplo, vamos logo perguntar o que é o instinto de
morte. E porquê a vida, já que a morte faz parte da vida? A nossa cultura de
hoje exige aprender a pensar".
Ou, como disse Cesário Verde , no poema
"O Sentimento de Um Ocidental"- o tal que emprestou uma frase à
parede do metro da Cidade Universitária: "A Dor humana busca os amplos
horizontes".
in DN by Pedro Sousa Tavares
Lola
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