terça-feira, 19 de abril de 2016

Fenomenologia de Husserl





A fenomenologia de Husserl


A vida de Edmund Husserl assemelha-se à de Sigmund Freud em vários pontos cruciais. Era três anos mais novo do que Freud e, como este, nasceu na Morávia, no seio de uma família judaica, e estudou em Viena. Ambos dedicaram a maior parte das suas vidas a um projecto pessoal que visava apresentar-se como o primeiro estudo verdadeiramente científico da mente humana. No final das suas vidas, ambos esbarraram com o anti-semitismo nazi; Freud foi forçado a abandonar a Áustria, vindo a morrer no exílio, e os livros de Husserl foram queimados pelas tropas alemãs que marcharam sobre Praga em 1939.
No entanto, a vida profissional de Husserl foi muito diferente da de Freud. Começou por estudar, não medicina, mas matemática e astronomia. Enveredou depois por uma carreira académica ortodoxa em filosofia, leccionando numa sucessão de departamentos universitários. Embora tivesse obtido o doutoramento pela Universidade de Viena, Husserl optou por fazer as provas de agregação na Universidade de Halle, e as cátedras de que veio mais tarde a ser titular foram sempre em universidades alemãs e não austríacas.
O interesse de Husserl pela filosofia foi despertado pelas aulas de Franz Brentano em Viena, entre 1884 e 1886. Brentano (1838-1917) era um ex-sacerdote, um académico erudito que procurou relacionar a filosofia da mente de Aristóteles com a investigação experimental contemporânea no livro A Psicologia de um Ponto de Vista Empírico (1874), que veio mais tarde a ter grande impacto. Nesta obra, explica-se que os dados da consciência são de dois tipos: fenómenos físicos e fenómenos mentais. Os fenómenos físicos são entidades como as cores e os cheiros; os fenómenos mentais, como sejam os pensamentos, caracterizam-se por terem um conteúdo, ou objecto, imanente. Esta característica, para a qual Brentano reintroduz o termo escolástico “intencionalidade”, constitui a chave para a compreensão dos actos mentais e da vida.
Ainda que influenciado pela abordagem da psicologia por parte de Brentano, Husserl continuou inicialmente a focar a sua atenção na matemática. A tese submetida em Halle para efeitos de agregação dizia respeito ao conceito de número, e o seu primeiro livro, publicado em 1891, intitulava-se Filosofia da Aritmética. Nesta obra, Husserl procurou explicar os nossos conceitos numéricos, identificando os actos mentais nos quais radicava a sua origem psicológica. O nosso conceito de pluralidade, por exemplo, era apresentado como algo que derivava de um processo de “combinação colectiva” que agrupava itens em agregados. Em virtude do seu desejo de encontrar uma base para a matemática na psicologia empírica, Husserl viu-se forçado a assumir algumas conclusões muito pouco atraentes. Entre estas, e a título de exemplo, a negação de que zero e um são números. Viu-se também obrigado a traçar uma distinção rigorosa entre a aritmética dos números pequenos e a aritmética dos números grandes. Mentalmente, só conseguimos ver grupos diminutos, pelo que apenas parte da aritmética poderá ter uma base intuitiva; quando se trata de lidar com números grandes, afastamo-nos da intuição e entramos num domínio meramente simbólico.
Os pares de Husserl que recensearam o livro, com destaque para Frege, queixaram-se de que o livro confundia imaginação e pensamento. Os eventos mentais que constituíam o objecto de estudo da psicologia, sendo pertença privada do indivíduo que deles tem experiência, não podiam constituir-se como fundamento de uma ciência pública como a aritmética. Esta teria de alicerçar-se em pensamentos que fossem propriedade comum a toda a humanidade. Husserl anuiu às críticas e abandonou o seu psicologismo anterior. Em Investigações Lógicas, de 1900-1901, argumentou que a lógica não podia ser derivada da psicologia, e que qualquer tentativa nesse sentido envolveria necessariamente um círculo vicioso, pois teria de apelar à lógica no decurso da sua dedução. De então em diante, e à semelhança do que acontecera com Frege, Husserl manteve o plano lógico e o plano psicológico estritamente separados. Todavia, enquanto Frege, seguido pela tradição analítica, centrou a filosofia no quadrante analítico, Husserl, seguido pela tradição continental, viu no quadrante psicológico a verdadeira morada da filosofia. Não obstante, naquela altura, Frege e Husserl estavam de acordo quanto a basear a filosofia — fosse ela lógica ou psicológica — num realismo platónico explícito.
No início do século XX, Gilbert Ryle descreve vividamente, ainda que não com total imparcialidade, a “fotografia de conjunto”:
“No virar do século, Husserl encontrava-se sob muitas das pressões intelectuais a que estavam igualmente sujeitos Meinong, Frege, Bradley, Peirce, G. E. Moore e Bertrand Russell. Todos se insurgiam contra a psicologia das ideias de Hume e Mill; todos exigiam que a lógica se emancipasse da psicologia; todos encontraram na noção de significado a saída que lhes permitia escapar às teorias subjectivistas do pensamento; quase todos advogavam uma teoria platónica de significados, i.e., de conceitos e proposições; todos demarcavam a filosofia da ciência natural, atribuindo as investigações factuais às ciências naturais e as investigações conceptuais à filosofia; quase todos se expressavam como se estas investigações conceptuais da filosofia resultassem em super-inspecções de super-objectos, como se as investigações conceptuais fossem, ao fim e ao cabo, investigações super-observacionais; porém, todos, no exercício concreto das suas investigações conceptuais, necessariamente divergiram das super-observações que as suas epistemologias platónicas requeriam. Husserl falava de intuir essências mais ou menos como Moore falava de inspeccionar conceitos, e como Russell falava de contacto com os universais, mas, como é óbvio, foi por meio de combates intelectuais, e não por mor de quaisquer intuições intelectuais, que dirimiram as suas efectivas dificuldades conceptuais.” (Collected Papers, I, p. 180)
Ryle faz bem em sublinhar o ponto de partida comum das tradições analítica e continental; no caso de Husserl, porém, o combate intelectual foi, na verdade, mais complicado do que esta passagem incisiva sugere.
Husserl aproveitou de Brentano a noção de intencionalidade ou, por outras palavras, a ideia de que o que caracteriza os fenómenos mentais, distinguindo-os dos físicos, é o facto de serem dirigidos a objectos. Penso sobre Tróia, por exemplo, ou preocupo-me acerca dos meus investimentos — a intencionalidade é o traço indicado pelas palavrinhas “sobre” e “acerca”. Qual é a relação entre o que acontece na minha mente e uma cidade há muito defunta, ou entre o que acontece na minha mente e os mercados bolsistas em todo o mundo? Husserl, e muitos depois dele, passaram anos a tentar dar resposta a esta pergunta.1
Para que haja um pensamento, têm de existir dois elementos essenciais: um conteúdo e um possuidor. Imagine que penso num dragão. Há duas coisas que fazem dele o pensamento que efectivamente é: uma, o facto de ser um pensamento de um dragão, e não de uma águia ou de um cavalo; outra, o facto de ser o meu pensamento, e não o pensamento do leitor, ou de Napoleão. Husserl assinalaria estas duas características dizendo que se tratava de um acto praticado por mim sobre um assunto específico (o objecto intencional do meu acto). Outras pessoas também poderão pensar em dragões; nesse caso, e de acordo com Husserl, temos vários actos individuais pertencentes à mesma espécie. O conceito dragão é, com efeito, nada mais do que a espécie à qual todos os actos como aqueles pertencem.
Em Investigações Lógicas, os conceitos são pois definidos com base em itens psicológicos. Mas de que modo se relaciona a lógica com conceitos assim definidos? Segundo Husserl, da mesma maneira que os teoremas geométricos se relacionam com os corpos empíricos tridimensionais. Por meio deste expediente, Husserl podia repudiar o psicologismo que defendera anteriormente, e traçar uma distinção clara entre psicologia e lógica. Posto isto, Husserl foi mais longe e traçou uma distinção entre psicologia e epistemologia. Fê-lo reinventando a psicologia como uma nova disciplina da “fenomenologia”.
A fenomenologia foi desenvolvida ao longo da primeira década do século XX. Em 1900, Husserl foi nomeado professor associado da Universidade de Göttingen. Aí, teve como colega o célebre matemático David Hilbert, mas os colaboradores mais entusiásticos desta nova empresa foram um grupo de filósofos de Munique, que inventaram a expressão “movimento fenomenológico”. Em 1913, a autoconfiança deste grupo enquanto movimento era já suficiente para que tivesse publicado um anuário de investigação fenomenológica. O primeiro número deste anuário continha um texto longo, da dimensão de um livro, escrito por Husserl, texto que fora planeado como o primeiro volume de uma obra a intitular Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica.
O objectivo da fenomenologia era o estudo dos dados imediatos da consciência, sem referência a algo que a consciência nos pudesse porventura dizer, ou pretender dizer, sobre o mundo extramental. Quando penso numa Fénix, a intencionalidade do meu pensamento é exactamente a mesma haja ou não Fénix na realidade. Já em 1901 Husserl havia escrito “Ao objecto que é apresentado e dado à consciência, não traz qualquer diferença essencial o facto de existir, ser fictício, ou mesmo ser completamente absurdo. Penso em Júpiter como penso em Bismarck, na Torre de Babel como na Catedral de Colónia, num polígono regular de mil lados como num sólido regular de mil faces” (Investigações Lógicas, II, p. 99). E o mesmo, acreditava Husserl, quando vejo uma mesa. A intencionalidade da minha experiência é exactamente a mesma quer haja de facto ali uma mesa, quer eu esteja a ter uma alucinação. O fenomenólogo deve fazer um estudo aprofundado dos fenómenos psicológicos e pôr entre parêntesis o mundo dos objectos extramentais. Quanto à existência deste mundo, a atitude do fenomenólogo deve ser a de suspensão do juízo, para a qual Husserl utilizou o termo grego epoche. Chamou-se a isto “a redução fenomenológica”. Era, digamos assim, a filosofia a retrair-se.
Fenomenologia não é o mesmo que fenomenismo. Um fenomenista acredita que nada existe excepto fenómenos e que afirmações acerca de coisas como objectos materiais têm de ser traduzidas para afirmações acerca de aparências. Berkeley e Mill defendiam versões de fenomenismo.2 Husserl, por outro lado, não afirmou em Ideias que não há outras realidades que não os fenómenos; deixou deliberadamente em aberto a possibilidade de existência de um mundo de objectos não fenoménicos. Trata-se apenas de estes objectos não interessarem, ou pelo menos não interessarem à partida, ao filósofo.
De acordo com Husserl, a razão para que assim seja prende-se com o facto de termos um conhecimento infalível e imediato dos objectos da nossa consciência, ao passo que temos apenas informação inferencial e conjectural sobre o mundo exterior. Husserl estabeleceu uma distinção entre percepção imanente, que é evidente em si mesma, e percepção transcendente, que é falível. A percepção imanente é o meu contacto imediato com os meus próprios actos e estados mentais actuais. A percepção transcendente é a minha percepção dos meus actos e estados do passado, de coisas e acontecimentos físicos, e dos conteúdos das mentes de outras pessoas.
A percepção imanente constitui a matéria de estudo da fenomenologia. A percepção imanente é mais fundamental do que a percepção transcendente, não só porque a percepção imanente é evidente em si, mas também porque as inferências e conjecturas que constituem a percepção transcendente se baseiam, e têm de se basear, nas deliberações da percepção imanente. Apenas a consciência tem “ser absoluto”; todas as outras formas de ser dependem da consciência para existirem (Ideias, I, p. 49). A fenomenologia é, assim, a mais básica de todas as disciplinas, pois os itens que constituem o seu objecto de estudo fornecem os dados para todos os outros ramos da filosofia e da ciência.
Husserl projectou Ideias como obra em três volumes, sendo que os últimos dois só seriam publicados após a sua morte. Em 1916, Husserl muda-se para Friburgo, onde permanece como professor na universidade desta cidade até se aposentar, em 1928, tendo rejeitado em 1923 uma proposta da Universidade de Berlim. Na universidade de Friburgo, as suas aulas atraíram um vasto público internacional, contando-se entre os seus alunos alguns que viriam a tornar-se filósofos muitíssimo influentes, como Martin Heidegger e Edith Stein. Ao longo desses anos, desenvolveu o sistema apresentado no volume I de Ideias em várias direcções. Por um lado, ampliou o método fenomenológico de modo a minimizar alguns pressupostos que Descartes assumira acriticamente, o que fez a sua epoche tornar-se mais radical do que a dúvida cartesiana. Por outro lado, envidou esforços para combinar o seu solipsismo metodológico com uma solução para o problema da intersubjectividade que estabelecia a existência de outras mentes. A posição final de Husserl foi um idealismo transcendental que, sustentava, era a conclusão inseparável da fenomenologia (Meditações Cartesianas, p. 42). Alguns dos resultados das suas reflexões tardias foram publicados em duas obras dadas à estampa nos anos que se seguiram à sua aposentação: Meditações Cartesianas e Lógica Formal e Transcendental.


Anthony Kenny

Tradução de Cristina Carvalho


Notas

1.       A intencionalidade nada tem que ver com “intenção” na acepção moderna do termo. Brentano foi buscar a palavra aos contextos medievais, nos quais intencionalidade derivava do verbo “intendere”, isto é, retesar a corda do arco antes de fazer pontaria a um alvo. Um objecto intencional é, assim, como que o alvo de um pensamento.
2.       Ver o vol. II, p. 203, e a p. 8 supra.
3.       Expressão que significa “a mais”. (N. do R.)
4.       Ver o vol. I, pp. 200 e 214.


Retirado de Nova História da Filosofia Ocidental, vol. IV: Filosofia no Mundo Moderno, de Anthony Kenny (Lisboa: Gradiva, 2011)





                                                Lola

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