terça-feira, 19 de abril de 2016

O existencialismo de Heidegger


O existencialismo de Heidegger



Dois anos antes, um dos alunos de Husserl tinha publicado um livro que viria ter um impacto muito maior do que qualquer daquelas duas obras. O Ser e Tempo, de Martin Heidegger (1889-1976), defendia que, até então, a fenomenologia tinha sido demasiado frouxa: propunha-se examinar os dados da consciência, mas empregava noções como “sujeito”, “objecto”, “acção” e “conteúdo” — itens que não tinha descoberto na consciência, antes herdado da filosofia anterior. O aspecto mais importante era o facto de Husserl ter aceitado o quadro de referência de Descartes, no qual havia dois domínios correlativos de consciência e realidade. Husserl adoptara apenas um destes — a consciência — na fenomenologia. Todavia, a primeira tarefa da fenomenologia era, segundo Heidegger, estudar o conceito de Ser (Sein), conceito este que era anterior à separação entre consciência e realidade. A experiência que nos leva a contrastar a consciência e a realidade como dois pólos opostos é, justamente, o primeiro fenómeno a examinar.
Temos portanto de recuar até antes de Descartes para clarificar a natureza da filosofia, e tomar como ponto de partida, não a consciência, mas sim o Ser. No entanto, Heidegger adverte que não basta simplesmente regressar às categorias de Platão e de Aristóteles, pois estas contêm já um elemento de sofisticação artificial. Os pré-socráticos oferecem ao fenomenólogo radical os melhores exemplos a seguir, na medida em que o período em que filosofaram é anterior ao da formação do vocabulário filosófico profissional, e a todos os pressupostos que um tal vocabulário implica. Heidegger chamou a si a tarefa de inventar um vocabulário impoluto que permitisse, por assim dizer, filosofar “ao natural.”
Dos vários termos inventados por Heidegger, o mais importante foi Dasein. O Dasein é o tipo de ser que é capaz de fazer perguntas filosóficas e, da maneira como Heidegger o elucidou, o conceito de Dasein começou por soar a algo demasiadamente confundível com o eu cartesiano. Contudo, enquanto o eu de Descartes era, na sua essência, uma coisa pensante, uma res cogitans, pensar é apenas uma das formas (e nem sequer a mais importante) que confere ser ao Dasein. O elemento primitivo do Dasein é “ser-no-mundo”, e pensar é apenas uma das formas de interagir com o mundo: actuar sobre ele, e reagir a ele, são elementos pelo menos tão importantes como pensar. O Dasein é anterior à distinção entre pensar e querer, ou entre teoria e prática. Dasein é estar em cuidado com (besorgen). O Dasein não é uma res cogitans, mas uma res curans: não uma coisa pensante, mas uma coisa que se preocupa. Só se eu tiver algum cuidado a respeito do mundo, ou interesse nele, farei perguntas sobre ele, e darei respostas a essas perguntas sob a forma de afirmações de conhecimento.
Conceitos e juízos podem ser concebidos como instrumentos que nos possibilitam lidar com o mundo. Existem, contudo, para este mesmo efeito, instrumentos mais primitivos, coisas que são, literalmente, ferramentas. Um carpinteiro relaciona-se com o mundo por meio da utilização de um martelo. Não precisa de estar a pensar sobre o martelo para o utilizar correctamente; ter consciência do martelo pode, com efeito, atrapalhar a sua concentração no projecto que tem em mãos, projecto este que é a sua genuína interacção com o mundo. As entidades com as quais lidamos de um modo transparente como este são aquilo a que Heidegger chama “coisas-à-mão”. A distinção entre o que é e o que não é coisa-à-mão subjaz à nossa construção da espacialidade do mundo.
Heidegger sublinha a natureza temporal do Dasein: devemos pensá-lo, não como uma substância, mas como o desenrolar de uma vida. A nossa vida não é uma entidade contida em si mesma e que se desenvolve por si só: achamo-nos, desde o primeiro momento, lançados num contexto físico, cultural e histórico. Heidegger chama a este “estar-lançado” (geworfenheit) a “facticidade” do Dasein. De igual modo, a minha vida também não se esgota naquilo que sou agora e que fui até ao presente momento: tenho a possibilidade de ser o que ainda não fui, e as minhas potencialidades são tão essenciais para o meu ser como os meus feitos. Em rigor, na definição do que sou, o futuro toma precedência sobre o passado e presente. O Dasein, diz Heidegger, é “capacidade para ser”, sem que aquilo a que aspiro na minha vida determine a importância da minha situação e das minhas capacidades presentes. Mas, sejam quais forem os meus feitos e as minhas potencialidades, todos se extinguem na morte — e, embora a morte os extinga, não os completa. Qualquer perspectiva da minha vida como um todo tem de tomar em linha de conta a diferença entre o que serei e o que poderia ter sido: daqui resulta a culpa e a ansiedade.
Se Heidegger tiver razão, então há qualquer coisa de absurdo nas tentativas dos filósofos, de Descartes a Russell, para demonstrar a existência de um mundo exterior. Não somos observadores que tentam, por meio da experiência, obter conhecimento de uma realidade da qual estamos separados. Somos, desde o primeiro momento, elementos do mundo, “sempre já seres-no-mundo”. Somos seres no meio de outros seres, seres estes sobre os quais agimos e aos quais reagimos. E as nossas acções e reacções não precisam, de modo algum, de ser guiadas pela consciência. Na verdade, é apenas quando as nossas acções espontâneas de alguma maneira nos falham que tomamos consciência do que estamos a fazer. E é nessa altura que as “coisas-à-mão” passam a “coisas-perante”.
Para Heidegger, a actividade do Dasein reveste-se de três aspectos fundamentais. Primeiro, temos aquilo a que chama “sintonia”: as situações nas quais somos lançados revelam-se atraentes, ou alarmantes, ou aborrecidas, etc., e respondemos-lhes com disposições de diversos géneros. Segundo, o Dasein é discursivo; isto significa que opera no seio de um mundo de discursos, entre entidades que nos são articuladas e interpretadas pela linguagem e cultura que partilhamos com outros. Terceiro, Dasein é “compreender” num sentido especial — as actividades dele são direccionadas (não necessariamente de modo consciente) para um determinado objectivo, uma espécie de “em-prol-de” que dotará de sentido uma vida inteira no seio do seu contexto cultural. Estes três aspectos do Dasein correspondem ao passado, presente e futuro do tempo: o tempo que empresta a Sein und Zeit a segunda metade do título.
Embora o Dasein opere no seio um contexto biológico, social e cultural, não existe propriamente uma natureza humana que origine as actividades do ser humano individual. Heidegger afirma que a essência do Dasein é a sua existência. Ao fazer esta afirmação, Heidegger tornou-se o pai do “existencialismo”, a escola filosófica que sublinha que os indivíduos não são meros membros de uma espécie e não são determinados por leis universais. Aquilo que sou essencialmente é aquilo que, livremente, escolho ser. A falta de fundamento desta escolha é alarmante, e posso perfeitamente refugiar-me numa conformidade não pensante. Contudo, enveredar por esta escolha é uma decisão inautêntica — é trair o meu Dasein. Para ser autêntico, tenho de viver a minha vida completamente ciente de que não há fundamento, nem na natureza humana nem na prescrição divina, para as escolhas que faço, e que nenhuma escolha trará qualquer espécie de sentido transcendental à minha vida.
Ser e Tempo é um livro de leitura difícil, e um intérprete que deseje que as ideias contidas neste livro sejam apresentadas de modo a parecerem acessíveis e inteligíveis terá de escrever num estilo muito diferente do adoptado por Heidegger. Saber se o vocabulário idiossincrático e a sintaxe convoluta de Heidegger eram de facto essenciais ao seu projecto, ou, em alternativa, um exercício desnecessário de autogratificação, constitui matéria de grande controvérsia. Seja como for, não há dúvidas quanto ao seu trabalho ter sido não só original como importante. Um dos opositores mais cáusticos de Heidegger, Gilbert Ryle, admite, nas últimas linhas de uma recensão crítica, que não tinha senão admiração pela “análise fenomenológica dos mecanismos básicos da alma humana” proposta pelo autor.

Enquanto obra de fenomenologia, Sein und Zeit recebeu uma aclamação muito mais notória do que qualquer das obras do fundador da fenomenologia — Husserl. O relacionamento entre o discípulo e o seu mestre teve um final infeliz. Em 1929, Heidegger sucedeu a Husserl como professor de filosofia na Universidade de Friburgo e, em 1933, assume o cargo de reitor desta universidade. No discurso inaugural escandaloso que proferiu em Maio desse ano, Heidegger saudou o nazismo como o veículo por meio do qual o povo alemão viria, finalmente, a concretizar a sua missão espiritual histórica. Um dos seus primeiros actos enquanto reitor foi banir da biblioteca da universidade todos os membros do corpo docente que fossem judeus, incluindo o Professor Emérito Husserl, que ainda viveria mais cinco anos. Depois da guerra, Heidegger teve de se penitenciar pelo apoio dado a Hitler, e foi impedido de ensinar na universidade de 1945 a 1950. Não obstante, o seu pensamento continuou a influenciar outros, influência esta que não cessou com a sua morte, em 1976.
Anthony Kenny

Tradução de Cristina Carvalho


Notas

1.       A intencionalidade nada tem que ver com “intenção” na acepção moderna do termo. Brentano foi buscar a palavra aos contextos medievais, nos quais intencionalidade derivava do verbo “intendere”, isto é, retesar a corda do arco antes de fazer pontaria a um alvo. Um objecto intencional é, assim, como que o alvo de um pensamento.
2.       Ver o vol. II, p. 203, e a p. 8 supra.
3.       Expressão que significa “a mais”. (N. do R.)
4.       Ver o vol. I, pp. 200 e 214.

Retirado de Nova História da Filosofia Ocidental, vol. IV: Filosofia no Mundo Moderno, de Anthony Kenny (Lisboa: Gradiva, 2011)


                                               Lola


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