terça-feira, 19 de abril de 2016

Existencialismo de Sartre


O existencialismo de Sartre


Em contraste com o existencialismo de direita de Heidegger, em França, Jean-Paul Sartre, em tempos aluno de Heidegger por um curto período de tempo, desenvolveu um tipo de existencialismo que, politicamente falando, era de acentuado pendor de esquerda. Nascido em Paris em 1905, Sartre foi aluno na École Normale Supérieure entre 1924 e 1928 e, durante alguns anos, proveu ao seu sustento financeiro dando aulas de filosofia no ensino secundário. Foi em Berlim e em Friburgo, entre 1933 e 1935, que começou a dar forma à sua própria filosofia, cuja primeira expressão surge em duas monografias filosóficas publicadas em 1936: A Transcendência do Ego e A Imaginação: Uma Crítica Psicológica. A estes trabalhos, seguiu-se, em 1938, um romance, A Náusea e, em 1939, a publicação de Esboço de uma Teoria das Emoções.
Os ensaios de antes da guerra são estudos meticulosos em filosofia da mente, de matriz fenomenológica. Sartre, como Heidegger, queixava-se de que Husserl não tinha levado a redução fenomenológica suficientemente longe. Husserl aceitara o eu cartesiano, a res cogitans, como um dado da consciência, quando, na verdade, não era nada disso: quando estou absorvido por algo que esteja a ver ou a ouvir, não tenho pensamento de mim mesmo. É quando reflectimos, e apenas nessa altura, que convertemos o eu em objecto, pelo que, se quisermos ser fenomenólogos plenos, temos de começar pela consciência pré-reflexiva. O eu, o sujeito que pensa, está fora da consciência, pertencendo, por isso, não menos do que as outras mentes, ao mundo transcendente.
Em A Imaginação, Sartre ataca a noção (bastante disseminada entre os filósofos, e particularmente explícita em Hume) de que ao imaginar estamos a sondar os conteúdos de um mundo mental interior. Sartre mostrou que é um erro pensar que tanto a percepção como a imaginação consistem na presença mental de imagens ou simulacros, sendo a única diferença entre elas o facto de, na percepção, as imagens serem mais intensas, ou vívidas, do que na imaginação. Defendeu que, pelo contrário, imaginar nos punha em relação com objectos extramentais, e não com imagens interiores; a imaginação fá-lo, tal como a percepção, embora de modo diferente. É fácil constatar que assim é: basta pensar nos casos em que se imagina uma pessoa real, mas ausente; nos casos em que aquilo que imaginamos não existe de facto, o que estamos a fazer é criar um objecto no mundo.
De acordo com Sartre, também se concebe equivocamente as emoções quando as concebemos como sensações internas passivas. A emoção é um modo específico de apreensão do mundo: sentir ódio em relação a alguém, por exemplo, é percepcionar esse alguém como uma pessoa odiosa. Contudo, é óbvio que a emoção não constitui uma tomada de consciência imparcial e isenta do ambiente que nos rodeia; pelo contrário, Sartre chega mesmo a descrevê-la como “uma transformação mágica” das situações em que nos encontramos. Quando estamos deprimidos, por exemplo, como que lançamos um feitiço sobre o mundo, de modo a que todos os esforços para lidar com ele nos pareçam inúteis.
Quando rebentou a guerra, em 1939, Sartre foi recrutado para prestar serviço militar e, em 1940, combateu no exército até ser capturado pelos alemães. Libertado na sequência do armistício, regressou a Paris como professor de filosofia, e tomou parte na resistência contra a ocupação nazi. Em 1943, publicou a sua magnum opus  O Ser e o Nada. Enquanto os ensaios do período anterior à guerra eram de inspiração husserliana, esta obra deve muito a Heidegger, o que é desde logo reconhecido na forma dada ao título. O Ser e o Nada tem passagens tão difíceis quanto o que se lê em Ser e Tempo. Todavia, e como convém a um romancista, Sartre tinha um dom para ilustrar teses filosóficas com narrativas detalhadas e convincentes, coisa que faltava a Heidegger. Depois da guerra, Sartre voltou a apresentar os temas principais do seu trabalho num formato mais abreviado, e em estilo menos erudito, em O Existencialismo é um Humanismo (1946).
Para Sartre, o ser (l'être) é o que precede e subjaz a todas os géneros e aspectos diferentes das coisas que encontramos na consciência. Agrupamos e arrumamos as coisas segundo géneros e classes, de acordo com os nossos interesses e enquanto instrumentos que sirvam os nossos propósitos. Se descartarmos todas as distinções efectuadas pela consciência, ficaremos perante o ser puro, ser em si, l'en soi, que é opaco, massivo, simples e, acima de tudo, contingente. É “sem razão, sem causa, sem necessidade” (O Ser e o Nada, p. 619). Dizer que é sem causa não é afirmar que é causa de si próprio, causa sui; simplesmente está aí — “gratuito” chama-lhe Sartre, e, às vezes, “de trop”.3
O en-soi é um dos dois conceitos cruciais de O Ser e o Nada. O outro é le pour-soi, o para-si, ou seja, a consciência humana. Como se relaciona esta com o nada que aparece no título? Sartre responde que o homem é o ser por meio do qual o nada vem ao mundo. A negação é o elemento que faz a diferença entre le pour-soi e l'en-soi.
Sartre desenvolve aqui um tema de Heidegger. Enquanto os filósofos ingleses encararam o dictum heideggeriano “o nada nadifica” (Das Nichts nichtet) como a quintessência do ridículo, Sartre aceitou a objectificação do nada, e envidou esforços no sentido de lhe atribuir um sentido importante. Quando a consciência articula o mundo, fá-lo por meio da negação. Se tenho um conceito de “vermelho”, então divido o mundo entre “vermelho” e “não vermelho”. Se distingo entre cadeiras e mesas, então tenho de considerar as cadeiras como não mesas e as mesas como não cadeiras. Se pretendo fazer uma distinção entre consciência e ser, terei de dizer que a consciência é não ser: “o ser por meio do qual o nada vem ao mundo tem de ser o seu próprio nada” (O Ser e o Nada, p. 23).
Do ponto de vista do historiador, fica a impressão de que Sartre reintroduz na filosofia um dilema criado por Parménides e há muito solucionado por Platão.4 Em 1945, A. J. Ayer comparou o tratamento que Sartre dá ao néant com a resposta que o Rei dá a Alice numa dada situação de Alice no País das Maravilhas: o Rei pergunta a Alice quem vem lá ao longe na estrada, Alice responde “Ninguém”, e o Rei exclama “Quem me dera ter olhos assim… Ser capaz de ver Ninguém! E ainda para mais a esta distância!” Felizmente, e pese embora o título, O Ser e o Nada contém muitas noções importantes, e perfeitamente independentes da descrição que Sartre avança para “nadificação”. A ideia mais interessante é, uma vez mais, retirada de Heidegger. Enquanto para a maioria dos objectos a essência precede a existência, “existe pelo menos um ser cuja existência vem antes da sua essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer concepção dele. Este ser é o homem.” (O Existencialismo é um Humanismo, p. 66) A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível. Enquanto um carvalho tem de seguir um padrão de vida cuja determinação decorre de ser o tipo de coisa que é, os seres humanos não pertencem a um tipo desta mesma maneira: cabe a cada pessoa decidir que tipo de coisa ser. A liberdade humana cria uma fissura no mundo dos objectos.
De acordo com Sartre, a vida de um ser humano individual não é previamente determinada, nem por um criador, nem por causas necessitantes, nem por leis morais absolutas. A única necessidade a que não posso escapar é a necessidade de escolher. A liberdade humana é absoluta, mas também alarmante, e nós tentamos esquivar-nos de nós mesmos, adoptando um papel predeterminado que nos é oferecido pela moral, pela sociedade ou pela religião. No entanto, os nossos esforços no sentido de nos furtarmos a nós próprios estão condenados a fracassar, do que resulta acabarmos indeterminados: tacitamente cientes da nossa liberdade e, ao mesmo tempo, debatendo-nos para nos reduzirmos à condição de meros objectos. Sartre designa por “má-fé” esta condição.
A atitude alternativa consiste em cada um de nós aceitar e afirmar a sua liberdade, e aceitar a responsabilidade pela sua própria vida e pelos seus próprios actos, sem se apoiar numa ordem moral preexistente e sem se deixar condicionar por quaisquer circunstâncias contingentes. É certo que haverá limites físicos às minhas acções possíveis, mas, ao fazer os devidos ajustamentos aos meus desejos e projectos, sou eu quem confere importância à situação em que me encontro. Tenho de fazer de mim uma escolha radical. “Emirjo sozinho e aterrorizado diante do primeiro e singular projecto que constitui o meu ser: todas as barreiras, todas as protecções, se desintegram, aniquiladas pela consciência da minha liberdade; não tenho, nem posso ter, recurso a qualquer valor contra o facto de que sou eu quem mantém os valores em existência” (O Existencialismo é um Humanismo, p. 66).
Nos anos que se seguiram ao fim da guerra, Sartre, juntamente com Simone de Beauvoir, tornou-se o centro da vida cultural e intelectual da rive gauche de Paris. Sartre fundou e editou um periódico mensal avant-garde, Les Temps Modernes, e escreveu vários romances e peças de teatro de sucesso, a mais conhecida das quais será, porventura,Huis Clos (Sem Saída), na qual se inclui a tão citada deixa “O inferno são os outros”. EmO Ser e o Nada, além do en-soi e do pour-soi, Sartre introduziu ainda a noção de ser-para-os-outros. Trata-se, essencialmente, do modo como eu sou presente a outros e por estes observado, tornando-me nada mais do que um objecto para eles — talvez o objecto da inveja ou do desprezo deles. Sartre havia escrito que o sentido original de ser-para-os-outros é o de conflito. Na obra subsequente, Sartre desenvolveu este tema, dando-lhe grande relevância.
Nos domínios social e político, Sartre adoptou posições próximas das do partido comunista, embora o determinismo marxista não fosse propriamente fácil de conciliar com o libertismo absoluto que constituía a tónica do existencialismo. Numa tentativa de resolver esta tensão, Sartre escreveu, em 1960, a Crítica da Razão Dialéctica. Em 1964, recusou aceitar o Prémio Nobel da Literatura e, em 1968, apoiou as revoltas estudantis que ameaçavam o governo de Charles de Gaulle. Morreu em 1980.

Anthony Kenny

Tradução de Cristina Carvalho

Notas

1.       A intencionalidade nada tem que ver com “intenção” na acepção moderna do termo. Brentano foi buscar a palavra aos contextos medievais, nos quais intencionalidade derivava do verbo “intendere”, isto é, retesar a corda do arco antes de fazer pontaria a um alvo. Um objecto intencional é, assim, como que o alvo de um pensamento.
2.       Ver o vol. II, p. 203, e a p. 8 supra.
3.       Expressão que significa “a mais”. (N. do R.)
4.       Ver o vol. I, pp. 200 e 214.

Retirado de Nova História da Filosofia Ocidental, vol. IV: Filosofia no Mundo Moderno, de Anthony Kenny (Lisboa: Gradiva, 2011)







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