Jean-Paul Sartre
O problema de Deus em Jean-Paul
Sartre
O filósofo francês
Jean-Paul Sartre (1905-1980) não escreveu apenas obras filosóficas, mas também
ensaios, romances e peças de teatro. Em sua obra de caráter existencial, Sartre
não deu uma importância excessiva ao problema religioso, pois não estava
preocupado em discutir acerca da existência ou não existência de Deus. Antes
disso, sua filosofia consiste em colocar o homem como responsável por todos os
seus atos. Lançado num mundo sem justificativa, o indivíduo projeta-se no
futuro, escolhe um sentido para sua vida, já que ela não possui um sentido a priori. Desta forma, o
existencialismo de Sartre está inteiramente estruturado no fato de que a existência
humana precede sua essência, e esta é construída através da liberdade
responsável que o homem manifesta ao escolher sua própria vida. Nada, nem mesmo
Deus, pode justificar o homem ou retirá-lo de sua liberdade total e absoluta,
ou ainda salvá-lo de si mesmo. No presente texto, buscamos fazer uma análise de
sua obra filosófica e literária à procura dos fatores que explicam e
fundamentam o ateísmo sartreano.
O existencialismo de Sartre e a
condição do homem no mundo
Em
1946, alguns anos após a publicação de sua obra mais importante e de caráter
puramente filosófico, O ser e
o nada, Sartre profere uma conferência intitulada O existencialismo é um humanismo,
na qual pretende defender seu pensamento de uma série de críticas e explicitar
com mais clareza suas idéias. Nesta conferência, ao colocar o homem como pura
subjetividade, Sartre demonstra que sua filosofia tira todos os subsídios de
uma postura absolutamente atéia, o que consiste em considerar que a existência
humana precede sua essência. Para tal, Sartre cita o exemplo de um objeto
fabricado, mais precisamente um corta-papel.
Ao
concebermos um corta-papel, devemos admitir que esse objeto foi fabricado por
um artífice, que já possuía uma idéia prévia, um conceito do que seria este
objeto, pois é impossível imaginar a fabricação de algo sem saber exatamente
para que irá servir. No caso do objeto, a sua produção precede sua existência,
isto é, antes de o objeto ser fabricado, já possuíamos um conceito dele. Deste
modo, quem crê em Deus, considera-o como um Artífice superior, no qual estaria
implícito a noção do homem. De forma análoga, há alguns ateus que, como os do
século XVIII, mesmo negando a existência de um Criador, admitem que o homem
possui uma natureza humana, um conceito humano, que colocaria todos os homens
numa mesma definição, pois são possuidores das mesmas características básicas.
A essência, neste caso, continua a preceder a existência, e este é um princípio
que podemos observar em quase toda a história da filosofia.
Sartre
afirma o contrário. Dizer que a existência precede a essência não é
simplesmente suprimir Deus e negar a natureza humana em função da realidade
humana. Dizer que a existência precede a essência é colocar o homem como um
nada lançado no mundo, desprovido de uma definição. O homem surge no mundo e,
"de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo
que ele fizer de si mesmo" (Sartre, O
Existencialismo é um Humanismo. São
Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 6.). Ora, isso implica também o fato de que o
homem só se faz num constante projeto, num incessante lançar-se no futuro.
Somente assim o homem irá se definir como ser existente e consciente de si
mesmo.
O
existencialismo impõe ao homem a inteira responsabilidade no exercício de suas
ações. Ao escolher sua vida, o homem também escolhe todos os homens. O valor de
sua escolha é determinado pelo fato de que ele não pode escolher o mal. Nas
palavras de Sartre: "o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom
para nós sem o ser para todos" (idem, p. 7). A imagem que moldamos
de nós deve servir, em última instância, para todos os homens. Nesse sentido, o
homem não é só responsável por si, mas também pela humanidade inteira.
O
existencialismo ateu de Sartre busca manter sua coerência atribuindo ao homem o
compromisso de construir a sua própria essência. Lançado no mundo sem
perspectivas, o homem determina sua vida ao longo do tempo, e descobre-se como
liberdade, ou seja, como escolha de seu próprio ser no mundo. Ao falar da condição
do homem, Sartre relaciona-o com a angústia, o desamparo e o desespero. Mas o
que significa definir o homem nestes termos?
A
angústia consiste simplesmente na descoberta de que o homem, quando escolhe,
não é apenas o legislador de si mesmo, mas alguém que, ao mesmo tempo, escolhe
a si mesmo e a humanidade inteira. O homem que descobre isso não consegue
escapar de sua total e absoluta responsabilidade, que gera o sentimento
original de angústia. Por isso é o próprio homem quem determina o valor de sua
escolha, pois ele tem o constante dever de se perguntar: "o que
aconteceria se todo mundo fizesse como nós?" (ibidem, p. 7) Assim,
a ação do homem, vista como a escolha constante de seu destino, é propriamente
constituída por angústia.
Ao
falar de desamparo, Sartre quer simplesmente dizer que "Deus não existe e
que é necessário levar esse fato às últimas conseqüências" (idem,
p. 8). Desamparo significa que o homem não possui nada a que possa se segurar,
nem dentro nem fora dele; não existem bases para direcionar suas ações, a não
ser sua liberdade e responsabilidade. Não existem valores eternos
preestabelecidos que impedem o homem de agir, nenhuma justificativa ou desculpa
que o retire de sua escolha. Em qualquer situação, somos nós que escolhemos,
subjetivamente, aquilo que provém de nossa própria vontade. O homem está só:
"o desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser.
Desamparo e angústia caminham juntos" (ibidem, p. 12). Não
obstante, o desespero está ligado ao fato de que o existencialista não espera
nada de um mundo transcendente. Se o desamparo é ausência de Deus, o desespero
é não esperar por ele. As circunstâncias, deste modo, não podem servir como
evasivas para nossos atos, nem como subterfúgios para nossos fracassos.
Des-espero: o que torna nossa ação possível é apenas a nossa própria vontade.
Por isso Sartre escreve: "o homem nada mais é do que o seu projeto; só
existe na medida em que se realiza; não é nada além do conjunto de seus atos,
nada mais que sua vida" (idem, p. 13). Projeto, liberdade,
responsabilidade, e existência que escolhe sua essência são termos constantes
na obra de Sartre, e que também se interagem e são correlatos. Assim, podemos
dizer que é inerente à condição do homem sua situação autêntica de angústia, desamparo,
desespero.
A gênese do ateísmo: a literatura e
a influência familiar
Sartre
abandonou a crença quando possuía apenas 11 ou 12 anos. Numa entrevista
concedida à Simone de Beauvoir (A Cerimônia do Adeus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1981), reconhece que o pensamento da não existência de Deus surgiu
naturalmente, de repente:
"...e sob a forma de uma pequena intuição, lembro-me
muito bem que disse a mim mesmo: Deus não existe. É notável pensar que pensei
isso aos onze anos, e nunca mais tornei a fazer-me a pergunta até hoje, isto é,
durante sessenta anos (...). Não recordo haver-me jamais lamentado ou
surpreendido pelo fato de Deus não existir". (Idem, p. 589-590.)
Sartre
considera essa intuição como algo concreto, uma verdade evidente e sem
pensamentos prévios. Com sua família de cunho católico (a avó) e protestante (o
avô), mas uma religiosidade aparente, Sartre freqüentava a igreja, mas nada
disso era realmente convicção. Por si só, e aos poucos, a simpatia por Deus
perdeu seu efeito: "eu tinha necessidade de Deus, ele me foi dado, eu o
recebi sem compreender o que procurava. Por não deitar raiz em meu coração,
vegetou em mim algum tempo, depois morreu" (As Palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984,
p. 75). Ao invés de adorar a Deus, Sartre adorava as palavras.
Sartre
cresceu no meio dos livros. Aprendeu a ler na biblioteca particular de seu avô,
onde encontrou na literatura um refúgio à religião. Numa poética passagem de As palavras, Sartre descreve sua relação
primeira com os livros:
"Nunca esgravatei a terra nem farejei ninhos, não
herborizei nem joguei pedras nos passarinhos. Mas os livros foram meus
passarinhos e meus ninhos, meus animais domésticos, meu estábulo e meu campo; a
biblioteca era o mundo colhido num espelho; (...) Eu achara minha religião:
nada me pareceu mais importante do que um livro. Na biblioteca, eu via um
templo". (Idem, p. 37-44.)
Este
contato com os livros e o amor pelas palavras fez de Sartre o escritor que
conhecemos hoje. É o que podemos observar em sua autobiografia As palavras, onde ele descreve
não só a experiência de seu ateísmo, como também a influência de sua família
que, para ele, representava apenas um caráter superficial ou ainda artificial
da fé. Em seu ambiente familiar, Sartre descobriu um cristianismo que não se
baseava na fé, mas na questão social. Os fiéis alimentavam tradições que não
tomavam a cargo, nem refutavam: eram cristãos que nunca haviam se tornado
cristãos. O ateu era alguém que também possuía convicções religiosas, um
indivíduo que
se obrigava a provar a verdade de sua doutrina pela
pureza de seus costumes (...), um maníaco de Deus que via em toda parte. (sic)
Sua ausência e que não conseguia abrir a boca sem pronunciar Seu nome. (Ibidem,
p. 72.)
Desta
forma, Sartre reconheceu na família uma religião pouco convicta, confundida com
os valores espirituais e morais, e ainda, com a pureza da arte encontrada nas
igrejas: "Não sabiam, imagino, se era a música que as influenciava, por
ser religiosa, ou se era a religião, por ser harmoniosa" (Diário de uma
Guerra Estranha. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 94). Os seguidores, sob este aspecto, eram
pessoas mascaradas, ocultas na face de um cristianismo sociológico, expresso na
indiferença e na contradição familiar: "julgava-se então muito mais
difícil ganhar a fé do que perdê-la" (As Palavras, p. 73). No
entanto, apesar de Sartre discordar do cristianismo, este não encerra o homem
na coagulação abstrata onde Deus seria aquele que impede a ação do homem. Para
os cristãos, a causa da liberdade humana está em Deus, que o lança no mundo
através do amor, e este representa a relação primeira dos homens entre si e da
busca de seu futuro.
A contingência e a gratuidade da
existência
Segundo
Sartre, fé e necessidade são termos análogos. O homem, nascido sem razão e sem
propósito, descobre-se como angústia e sente necessidade de encontrar um
sentido para sua vida, necessidade esta que se reflete na crença. Ter fé em
Deus significa alienar-se diante da própria liberdade, imputar a algo
Transcendente um motivo para agir, esquecer-se que a vida humana nada mais é do
que contingência e gratuidade. Em A
náusea, Sartre situa o homem como uma "paixão inútil", demais em
relação ao mundo. A náusea existencial é o próprio homem, o que ele sente em
relação à gratuidade da existência, à possibilidade existencial, absurda em
última instância, pois desprovida de significado. A totalidade do mundo, nua
perante os olhos do homem, torna-se absurda por seu caráter contingente. Nesse
sentido, Sartre afirma que
"o essencial é a contingência. (...) a existência
não é a necessidade. Existir é simplesmente estar
presente; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. (...) há pessoas
que já compreenderam isso. Só que tentaram superar essa contingência inventando
um ser necessário e causa de si próprio". (A Náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986,
p. 193-194. Rita Braga, tradutora de A
Náusea, pode não ter tido um contato real com a obra filosófica de Sartre:
o termo francês être la na verdade significa estar aí, e não estar presente, como consta
nesta tradução.)
Para
Sartre, o absurdo do mundo é absoluto por sua constante possibilidade, isto é,
tudo é gratuito: a vida humana não tem sentido algum, e para superar este
caráter contingente da existência, o homem inventa Deus. Cabe exclusivamente ao
homem dar um sentido à sua vida.
A
contingência faz do homem um ser solitário, que conta somente com sua
subjetividade para agir. É pura ilusão acreditar que a vida humana possui um
sentido dado por Deus. A única coisa que a vida oferece ao homem é sua própria liberdade,
pois já que a vida não possui um significado preestabelecido, só podemos contar
com nossa solidão, nossa absoluta individualidade. "A ausência de Deus era
visível em todos os lugares. As coisas estavam sós, sobretudo o homem estava
só. Estava só como um absoluto" (Beauvoir, op. cit., p. 591). Se Deus não existe, somente o
homem pode decidir, sozinho, o melhor caminho para suas escolhas que
determinarão sua vida e sua essência.
O olhar de Deus
Uma
outra característica importante e decisiva na obra de Sartre é a questão do
olhar de Deus. Se o homem está só, como explicar esse olhar direcionado aos
homens? EmSursis, romance que compõe a segunda parte da trilogia Os caminhos da liberdade,Sartre
descreve a experiência de Daniel, um homossexual que se sente atravessado por
esse olhar:
"um olhar que o perscrutava até o fundo, que o
penetrava a golpes de punhal e que não era no seu olhar; um olhar opaco, a
própria noite, que o esperava no fundo dele mesmo e o condenava a ser ele
mesmo, covarde, hipócrita, pederasta para sempre (...). O olhar (...). Estou
sendo visto, transparente, transpassado". (Sursis. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1983, p. 124-125)
Na
presença do olhar de Deus, Daniel sentia ao mesmo tempo repulsa e
tranqüilidade, pois havia encontrado, no olhar, uma justificação, um lugar que
o livrava de sua culpa. Em outra passagem, Daniel afirma: "Dizer-te o que
é esse olhar ser-me-ia fácil: porque não é nada: é uma ausência" (idem,
p. 366).
Laurent Gagnebin irá situar o olhar de Deus, na obra de
Sartre, como um importuno, que possui uma função que "revient à nous
transformer en chose inerte et sans défense devant un jugement qui nous
transperce sans respect" ("La Foi" in Connaître Sartre. Paris:
Resma, 1972, p. 100; tradução livre: "volta a nos transformar em coisa
inerte e sem defesa diante de uma sentença que nos atravessa sem
respeito"). Em As
palavras, Sartre fala de sua
própria existência quanto a este olhar:
"Uma só vez experimentei a sensação de que Ele
existia. Eu brincara com fósforos e queimara um pequeno tapete; estava
dissimulando meu crime, quando de súbito Deus me viu; senti seu olhar dentro de
minha cabeça e sobre minhas mãos; eu rodopiava pelo banheiro, horrivelmente
visível, um alvo vivo". (As Palavras, p. 75)
Para
Sartre, o olhar de Deus é imaginário, que ele mesmo confessa ter sentido na
infância (Beauvoir, op. cit., p. 589). A presença deste olhar está
no fato de que, ao agir, o ser humano projeta no olhar do homem uma espécie de
"valor transumano" (idem, p. 597.), e este olhar representaria a
aprovação dos homens perante nossos atos. Ao situar sua própria obra neste
plano, Sartre escreve: "de maneira que há como que um olhar sobre a obra,
e que é, no fundo, o olhar dos homens, um pouco multiplicado, um pouco
modificado (...). Ou seja, algo como Deus" (ibidem, p. 598).
A negação de Deus e a
impossibilidade de sua existência
O
existencialismo ateu de Sartre também encontra seu fundamento e sua
consistência no fato de que o homem só é realmente livre quando ele contesta
Deus e recusa a alienação religiosa. Em As
moscas, podemos observar como o pensamento sartreano atribui à religião e à
superstição um caráter anulatório da prática da liberdade dos homens. Gagnebin
situa esta obra como a expressão original do receio e da escravização humana,
pois "le peuple sur lequel règne ce Dieu est un peuple servile et
terrorisé, obsédé par ses fautes et annihilé par ses remords toujours
égocentriques" (Gagnebin, op.
cit., p. 104; tradução livre:
"o povo sobre o reinado de Deus é um povo servil e aterrorizado, obsidiado
por suas faltas e anulado por seus remorsos sempre egocêntricos"). É
preciso ser mais que isso: se o homem é livre, ele só pode escapar e se
distanciar de Deus. Orestes, personagem de As
moscas, representa o caminho que deve conduzir o homem à negação de Deus,
isto é, Júpiter. Com efeito, Orestes afirma: "não sou senhor, nem escravo,
Júpiter. Sou a minha liberdade. Mal tu me criaste,
deixei de te pertencer" (As Moscas. Lisboa: Editorial Presença, 1986, p.
165). A liberdade humana faz da idéia de Deus uma possibilidade contraditória,
pois nega de modo prático sua presença (Gagnebin, op. cit., p. 105), tomando como encargo a
recusa referencial à transcendência. A vida do homem "começa para além do
desespero" (Sartre, op.
cit, p. 165), e este pode ser
evitado aceitando sem restrições a angústia da própria gratuidade existencial.
O crente, neste caso, está condenado ao desespero, pois só encontra o
fundamento de sua existência em sua relação com o Eterno. Contudo, a fé em Deus
não prejudica o homem, pois corresponde à possível construção de sua vida
enquanto parte da humanidade.
A
idéia de que o homem só se realiza enquanto negação da divindade será retomada
emO Diabo e o Bom Deus, obra onde a existência de Deus e a do homem
livre são, na realidade, desprovidas de qualquer relação concreta, isto é, para
que o homem viva, é necessário que Deus desapareça. O homem é o indivíduo que
deve escolher a si mesmo e, consequentemente, amar a humanidade em oposição ao
amor a Deus. Antes de ser um ataque radical à religião, O Diabo e o Bom Deus reflete o aspecto da moral
existencialista, que suprime os valores preestabelecidos num céu inteligível e
situa o Bem e o Mal como relativos. Para Sartre, o Bem "é o que se presta
à liberdade humana", enquanto o Mal "o que prejudica a liberdade
humana" (Beauvoir, op.
cit., p. 596). Neste
contexto, Deus seria então um mal para os homens?
Em
torno da noção de Deus, Sartre irá justificar a impossibilidade de sua
existência em sua obra O ser e
o nada. O homem, possuidor de uma consciência, definido como
"para-si" ou consciência de si próprio e captador das coisas
exteriores, busca a consistência do ser "em-si", fechado em si mesmo,
sem consciência de sua existência. Deus seria algo como "a impossível
síntese do para-si e do em-si" (O Ser e o Nada. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 140).
Ora, a consciência existe somente na medida de consciência e captação do
"em-si". Por isso, o conceito de Deus é contraditório, pois é
impossível existir, num mesmo ser, a plenitude como causa de si mesmo e a
consciência de si como fundamento necessário de si mesmo, isto é,
"um ser que seria seu próprio fundamento, não
enquanto nada, mas enquanto ser, e manteria em si a translucidez necessária da
consciência, ao mesmo tempo que a coincidência consigo mesmo do ser-em-si. (Idem,
p. 140)
Analogamente,
o ser humano acaba por tornar-se fracassado em seu projeto, pois o que ele
busca é exatamente ser esta síntese: possuir a consciência de si mesmo e a
fixidez do em-si. A consciência, como nadificadora da realidade, não suporta o
seu próprio vazio, procurando assim realizar-se em termos de absoluto
(Bornheim, Sartre. São Paulo:
Perspectiva, p. 307). "Ser homem é propender a ser Deus; ou, se
preferirmos, o homem é fundamentalmente desejo de ser Deus" (Sartre, op. cit., p. 693).
O
homem, na sua relação com o mundo, só se apreende e se realiza na sua relação
com o outro, pois o outro é o único que pode apreendê-lo como objeto. O homem
tem consciência de sua existência através do olhar do outro, e vice-versa. Ao
conceber a humanidade como um todo, só podemos imaginar Deus como o
"Outro", pois este seria o único possível em presença atuante em toda
a humanidade. Mas se Deus é ausência radical, o projeto da humanidade em se
fixar como objeto resulta num fracasso incessante. Nesse sentido, Sartre afirma
que "o conceito-limite da humanidade e o conceito-limite de Deus implicam-se
mutuamente e são correlatos" (idem, p. 524).
Conclusão
O
percurso que fizemos até aqui permitiu-nos observar que a afirmação de Sartre
acerca da condição humana perpassa toda a sua obra, e se resume no fato de o
homem ser um Deus fracassado, pois projeta-se na realização de uma síntese
impossível. Desta forma, a recusa de Deus, ainda que pouco evidente, está
presente em todo seu pensamento.
É
importante novamente ressaltar que o homem só descobre o peso de sua liberdade
quando, de fato, elimina Deus de seus horizontes. Apesar de o homem,
psicologicamente, representar o desejo de realizar-se enquanto Deus, ou seja,
consciência e plenitude, acreditar na existência de Deus não deixa de ser um
exercício de liberdade, de escolha da própria ação do homem.
Partindo
do pressuposto de que o homem contemporâneo vive mais em função da ciência e da
técnica do que propriamente da religião, Sartre também vê no significado da
crença em Deus um certo anacronismo, a sobrevivência de uma noção já
ultrapassada:
"Penso que houve um tempo em que era normal crer em
Deus, no século XVII, por exemplo. Atualmente, considerando a maneira pela qual
vivemos, o modo pelo qual tomamos consciência e pelo qual percebemos que Deus
nos escapa, não há intuição do divino. Penso que neste momento a noção de Deus
é uma noção anacrônica já, e sempre senti algo de caduco, de ultrapassado nas
pessoas que me falaram de Deus acreditando nisso. (Beauvoir, op. cit., p. 601)
Ao
afirmar em As Palavras que "o ateísmo é uma empresa
cruel e de longo fôlego" (p. 181), Sartre se reporta à questão de ter
abandonado o ateísmo idealista em função do ateísmo materialista. E esta
passagem, ao contrário do que se pode pensar, é um exercício difícil, pois o
ateísmo idealista é simplesmente a negação de uma idéia, a recusa da idéia de
Deus em substituição à um nada espiritual, enquanto o ateísmo materialista é
uma nova concepção de um ser, isto é, a visão do universo sem Deus (Beauvoir, op. cit., pp. 591, 594, 595, 598). E já que
acreditar em Deus representa uma escolha, seria conveniente escolhê-lo para
imputar a Ele a obra da síntese do mundo, onde todas as ações e sofrimentos
humanos seriam "uma provação tolerada ou desejada pelo Ser supremo" (idem,
p. 602). De maneira semelhante, Sartre vê no fato de ser ateu um certo
enriquecimento moral e psicológico para o homem, mas isso é algo que está a
caminho e ainda vai levar tempo para se concretizar. Antes, é preciso esquecer
o princípio do Bem e do Mal, que é Deus, e "reconstruir um mundo liberado
de todas as noções divinas que se apresentam como uma dimensão do em-si" (ibidem,
p. 604), pois mesmo aqueles que não crêem em Deus possuem ainda certos valores,
noções "divinas" que são difíceis de eliminar e fazem com que o
ateísmo não alcance seu real objetivo. Sartre encontrou na descrença a
afirmação de sua própria liberdade, que fez com que ele mesmo determinasse suas
ações e tivesse uma relação direta com os homens, sem a necessidade de passar
pelo infinito. Não crer em Deus é a primeira das desalienações do homem, pois
este, ao se desalienar, torna-se medida e futuro da humanidade. O homem só
desenvolve uma verdadeira relação consigo mesmo quando elimina Deus de sua
vida, pois passa a ter uma relação direta com o mundo, e não efetivamente com
algo de Transcendente.
O
ateísmo de Sartre lembra a filosofia de Feuerbach, o qual afirma que não é Deus
que cria o homem, mas o homem quem cria Deus (Feuerbach (1804-1872), com a
polêmica de sua filosofia, buscou em toda sua trajetória demonstrar que a
religião era simplesmente um fato humano, criação do homem a partir da
consciência que ele tinha de si mesmo. Sua obra mais importante, A Essência do Cristianismo,
reflete seu desejo em transformar a teologia e a religião em uma verdadeira
antropologia). A fé religiosa representa assim as próprias qualidades e
aspirações do homem que, ao se sentir fracassado, aliena-se e constrói uma
divindade superior. No esforço de Feuerbach, Sartre pretende desenvolver um
pensamento puramente humano, que explique o próprio ser do homem em sua relação
concreta com a humanidade.
Sartre
não quer matar Deus, pois a morte, em extensão, deixa resquícios da presença de
quem morreu na consciência das pessoas. O que Sartre pretende com seu ateísmo é
suprimir Deus simplesmente, retirar do mundo todos os obstáculos transcendentes
que impedem o exercício do homem em ser livre, fundamentar na vida humana uma
real antropologia, onde a Transcendência e a teologia se transformariam em
descoberta do humano. Suprimir Deus é situar o homem como pura subjetividade,
liberdade, responsabilidade.
Visto
isso, pode-se afirmar que o existencialismo não quer mergulhar o homem no
desespero, pois o desespero é superado quando aceita-se a angústia de viver a
liberdade e a gratuidade da vida. O problema existencial não é tão ligado,
nesse sentido, na questão da existência de Deus. O que Sartre quer dizer é que,
mesmo que Deus realmente exista, nada vai mudar na vida do homem, pois nada
pode salvá-lo de si mesmo. "Nesse sentido, o existencialismo é um
otimismo, uma doutrina da ação, e só por má fé é que os cristãos, confundindo o
seu desespero com o nosso, podem chamar-nos de desesperados" (O
Existencialismo é um Humanismo, p. 22).
Rogério A. Bettoni
Bibliografia
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· Bornheim, Gerd A. Sartre:
Metafísica e Existencialismo. São
Paulo: Perspectiva, 1984.
· Gagnebin, Laurent. "La
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Paris: Resma, 1972.
· Jeanson, Francis. Sartre. Trad.: Elisa Sales. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
· Nogare, Pedro Dalle. Humanismos
e Anti-Humanismos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.
· Sartre, Jean-Paul. A Náusea. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
· ——. As Moscas.
Trad. Nuno Valadares. Lisboa: Editorial Presença, 1986.
· ——. As Palavras.
Trad. J. Guinsburg. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
· ——. Diário de uma
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Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
· ——. O Diabo e o Bom
Deus. Trad. Maria Jacintha. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965.
· ——. O Existencialismo é
um Humanismo. Trad.: Rita Correia Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
(Os Pensadores).
· ——. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997.
· ——. Sursis: Os Caminhos da Liberdade, 2. Trad. Sérgio Milliet. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
Comunicação apresentada na V Semana de Filosofia,
FUNREI, 1999. Publicado integralmente na Revista Anais de Filosofia (SJDR), e parcialmente na revista Idéias Bizarras (BH).
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