terça-feira, 10 de maio de 2016

Ensaio Filosófico vencedor

Ensaio vencedor da III Edição da
Associação Portuguesa de Ética e Filosofia Pratica
Ensaio Filosófico 2015/2016



A Filosofia face à tolerância e paz mundiais - que possibilidade(s)para o imperativo do diálogo?

         
                              

Sumário:

·        Antes de mais...
·        Paz e tolerância mundial - que sentido(s)?
·        Perspetivas filosóficas ao longo do tempo
·        Filosofia, paz e tolerância - O imperativo do diálogo!
·        Questões póstumas....
·        Referências Bibliográficas





Antes de Mais...


Bruxelas, 23 de março de 2016
"Os ataques terroristas mataram pelo menos 31 pessoas e feriram mais de 300. Ataque foi reivindicado pelo Estado Islâmico
- O aeroporto de Zaventem, em Bruxelas, foi abalado por duas fortes explosões perto das 8.00 de terça-feira (7.00 em Lisboa).
- Explosão na estação de metro de Maelbeek perto das 9:10 de terça-feira (8:10 em Lisboa)"
23 de março de 2016,13:34
DN


Comecei a escrever estas palavras que farão nascer uma reflexão critica acerca do tema proposto e noto que em meu redor, além do mundo não estagnar, o que é de particular relevância também e, angustiadamente, os países continuam a sangrar pelas feridas dos atentados terroristas pois não é mais nem menos do que terror que estes propagam de forma dolorosamente inexplicável!
Olhamos em redor e são muitos os temas e problemas que urgem um pensar eticamente responsável como: a fome no mundo, os desequilíbrios sociais e ambientais, questões da bioética nomeadamente no que diz respeito à eutanásia, ao aborto e doação de órgãos, questões como a dos refugiados, da necessária ajuda internacional bem como problemas de moralidade que se converteram em normas legais sob pena de já não ser suficiente o principio moral de ajuda e cuidado, por exemplo, aos idosos!
Não há muito tempo, Peter Singer lembrava-nos que mais que uma filosofia teórica e especulativa, a filosofia deverá virar-se para o campo da ética aplicada, uma fértil área de reflexão argumentativa que aborde de um modo fértil os grandes problemas das PESSOAS no mundo! E Porquê?

"A filosofia é uma atividade viva, caracterizada pelo estudo minucioso dos problemas e pela tentativa de produzir respostas convincentes alicerçadas em argumentos sólidos" (Peter Singer, Ética Pratica).

Ora, como sabemos, desde os primórdios da humanidade que esta tem vivido momentos de constante desarmonia, nos quais o ser humano não consegue viver com o seu igual, cometendo, por vezes, terríveis atrocidades que se aliam a realidades como a competição violenta por recursos como território, bens de subsistência, tão indispensáveis à prosperidade dos povos e, também, tensões culturais e religiosas. Será, por isso interessante e, útil ao desenvolvimento de uma posição crítica, abordar qual a posição da filosofia face à desumanidade e à constante violação da dignidade humana!
O tema/problema revela-se de uma importância peculiar pois nos últimos tempos muitos têm sido os acontecimentos que nos têm feito refletir acerca do que devemos fazer para vivermos num mundo onde imperem a paz e a tolerância e muitas tem sido as opiniões acerca deste importante tema, não só devido à sua relevância atual, mas e sobretudo pela perda do OUTRO que neste mesmo mundo é atirado para o sofrimento que ninguém sabe muito bem compreender e muito menos explicar!
Torna-se, por isso, urgente que todos façamos uma reflexão de cariz profundamente filosófico sob pena de desistirmos da nossa própria essência: não adormecer no (des)conforto das imagens e relatos que, amargamente, nos perturbam!
Neste sentido, começarei por apresentar uma possível conceção de tolerância e paz mundial, para posteriormente clarificar o modo como o tema foi abordado ao longo dos tempos, ou seja, apresentar uma visão histórico-filosófica do tema.
Seguidamente refletirei o papel da filosofia na paz e tolerância mundial, terminando com a fundamentação da minha posição relativamente a este tema.
Por fim e, com a consciência feliz de nada poder concluir (definitivamente), tentaremos  responder ao problema de base deste ensaio, apontando para o papel formativo que a filosofia pode ter no contributo, pelo dialogo, estabelecimento de paz e tolerância mundiais e que, em minha opinião, se prenderá com a sua influência sobre os espíritos crítico e ético. 


Paz e tolerância mundiais - que sentido(s)?


Que me desculpem a franqueza das palavras, mas... o século XX é um século de profunda vergonha! E porquê?
Duas guerras mundiais e muitos genocídios: genocídio arménio, genocídio judeu, genocídio ruandês e outros!
Ainda é possível a utopia da Tolerância e Paz para e no mundo? Começaremos por esclarecer os conceitos de paz e tolerância mundiais.
Desde sempre os filósofos, das mais variadas correntes de pensamento se têm debruçado sobre esta questão, sem, no entanto, terem conseguido uma definição unânime dos conceitos.
A nosso ver, a melhor forma de conceptualizar paz é como o momento em que nos encontramos num pleno estado de calma e equilíbrio isentos de qualquer perturbação, seja ela algum tipo de guerra ou violência.
Contudo, e em meu entender, a ausência de paz é difícil de compreender, perplexamente até, pois é o Homem quem pode criar ou destruir a Paz que vive no mundo que é de todos, pelo exercício da sua vontade, ou seja: porque age a Humanidade contra os seus próprios interesses coletivos?
Retomando o parágrafo anterior, este conceito refere-se a algo que o Homem constrói e que é vivido tanto física, já que está relacionada com fatores sociais, políticos, económicos e demográficos, como psicologicamente.
No que concerne ao conceito de tolerância poderemos dizer que este está imbricado nos conceitos de Estado/Cultura de Paz.
Em termos gerais, podemos definir tolerância como sendo o respeito, a consideração e a aceitação da diferença do OUTRO, isto é, a capacidade de aceitarmos que outros vivam, pensem e ajam de modo diferente de modos com os quais podemos (ou não) discordar.
Herdeiros da tradição grega, vivemos numa sociedade que se considera democrática, liberal e pluralista, que permite a existência e manifestação de diferentes pontos de vista sobre os mais diversos assuntos de índole moral, religiosa e política; valorizamos a livre discussão de ideias, o espírito crítico, a pluralidade de opiniões.
Não devemos, contudo, pensar que esta abertura e respeito pela diversidade significa que nada é proibido e que tudo é permitido. Tolerância não deve ser considerada sinónimo de permissividade e indiferença, isto é, não se pode permitir tudo, a promoção da tolerância não implica tolerar tudo, que neste caso seria considerado niilismo, uma ausência completa de princípios morais que, ao constituir uma tolerância absoluta lançaria as sociedades humanas no caos e na anarquia.


Perspetivas filosóficas ao longo dos tempos


Os temas da paz e da tolerância são, sem dúvida, desencadeadores de questões muito preocupantes neste novo milénio. Têm, inclusive, suscitado o interesse quer da opinião pública, quer de políticos, religiosos, instituições internacionais e nacionais e, especialmente, dos filósofos, em cujo discurso estes conceitos sofreram uma alteração, passando da compreensão da paz e tolerância como ausência de guerra, para não-violência e, para na atualidade serem compreendidos como a realização de uma cultura de paz e tolerância.
O estudo dos conceitos de paz e tolerância começou no século XVIII, sendo Immanuel Kant a principal referência, visto que foi um dos primeiros a tratar a questão da paz e tolerância, de forma a garanti-la perpetuamente, em contextos políticos e jurídicos.
Em Ka nt, a paz deixou de ser tratada de forma religiosa, para receber um tratamento jurídico-político. É também a partir da proposta kantiana de paz que começa a ser utilizada a ideia de construção para definir a paz como uma "obra», ou seja, passou a ser entendida como um ideal para o qual se labora. Até então, paz e guerra eram consideradas realidades inalteráveis da filosofia, do Direito e da Moral.
            Podemos afirmar que é nos dois últimos séculos, principalmente no século XX, que têm ocorrido as maiores reflexões acerca dos conceitos base da reflexão do nosso ensaio, tendo havido grandes mudanças ao nível da sua compreensão nas mais diversas disciplinas.
Assim, no século XX, a conceção de paz era restrita e negativa já que se definia exclusivamente como a ausência de guerra. No entanto, em virtude dos acontecimentos que se desenrolaram no século XX, tais como as Grandes Guerras, ocorreu uma mudança significativa na maneira de se compreender e abordar o conceito de paz.
No mesmo período, fundou-se a Organizações das Nações Unidas (ONU) e a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), duas organizações que têm como objetivo preservar as futuras gerações do flagelo da guerra, sendo que as guerras nascem nas mentes humanas e é aí que deve começar o seu combate, pela instrução no sentido da defesa da paz, tendo-se estabelecido assim o principio de que a paz deve ser construída, sendo necessária  essa construção no sentido da almejada utopia que muito se liga ao desenvolvimento da Ciência, da Educação e da Cultura.
            Segunda a UNESCO, para estabelecer a paz, uma (simples) assinatura de acordos e tratados não é suficiente, pois os fatores que permitem e favorecem o surgimento das guerras permaneceriam inalterados. Ou seja, para esta organização quando a Cultura, nas suas dimensões económica, política, sociais, emocional, moral, mantém os seus (des) valores de violência e dominação, a paz é apenas o intervalo entre guerras.

“(...) uma paz fundada exclusivamente sobre acordos políticos e económicos,
celebrados entre governos, não conseguirá assegurar a adesão unânime, duradoura e
sincera de todos os povos e, por conseguinte, para que a paz subsista deverá assentar
na solidariedade intelectual e moral da humanidade. (...) a paz não é somente a
ausência de conflitos, ela requer também um processo positivo, dinâmico e
participativo em que se promova o diálogo e se solucionem os conflitos num espírito
de entendimento e cooperação mútuos.” Unesco (1945)
(OLIVEIRA, Ariana BAZZANO DE O PERCURSO DO CONCEITO DE PAZ: de Kant à Atualidade, Universidade Estadual de Londrina, pag,16)

Segundo a UNESCO, a maior garantia de uma paz firme e duradoura é que esta seja inscrita nas culturas dos povos. A partir de uma definição de cultura que contemple cultura não só como arte, linguagem e património, mas também cultura como comportamentos, regras e formas de vivência em sociedade, podemos definir o que é uma cultura de paz, como uma proposta de uma sociedade em que as relações sejam feitas pelo diálogo, tolerância e pela consciência dos indivíduos. Então podemos considerar três elementos fundamentais nesta cultura de paz, que são paz, politica e desenvolvimento, ou seja uma cultura de paz sustenta-se sobre alicerces sociais, económicos e políticos, para além de culturais.
A este propósito lembra a médica e pedagoga Maria Montessori:

"Todos falam de paz, mas ninguém educa para a paz, as pessoas educam para a competição e esse é o principio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e sermos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos a educar para a paz" Maria Montessori, Educação e a Paz, Papirus Editora)

  Há que reinventar continua e continuadamente os conceitos de Tolerância e Paz!
No final do século XX, a humanidade começou a discutir e a perceber que a paz não está ligada apenas à ausência de conflitos, pois estes são apenas consequência da vida social dos povos e nenhuma relação, seja entre os indivíduos, comunidades, partidos políticos ou nações permanece imutável. Surgem sempre novas situações e é destas que provem tensões e problemas que necessitam de uma solução. Aqui...lembro o mar de Calais!
Na busca de soluções para situações limite que se demonstra em que tipo de sociedade vivemos: se numa sociedade de força, rejeição e de intolerância ou se numa sociedade de abertura, diálogo e compreensão face às dificuldades do OUTRO - e isto sim, numa cultura de paz.


Filosofia, paz e tolerância - O imperativo do diálogo!


Que compatibilidade entre o espírito crítico e a tolerância?
Quais os limites da Tolerância?
Que devemos fazer quando ultrapassados determinados limites?
Que razões nos levam à guerra?
Porque e como banalizamos o mal?
Qual o papel preponderante que a filosofia poderá assumir na implementação reflexiva de valores como o da tolerância no sentido de busca de uma cultura de paz mundial?

A filosofia como estudo da dimensão essencial e ontológica do mundo real, abrangendo em si, também a capacidade humana de refletir profundamente sobre diversos temas, ultrapassando o senso comum que se mantém sempre cativo das realidades empíricas e das aparências sensíveis, poderá relacionar a teoria e prática, isto é, ligar o pensamento humano à realidade circundante, que determinara o seu carácter prescritivo, voltado para a ação concreta e para as suas consequências éticas, políticas ou psicológicas.
Ela devera estar na base da educação, estando esta relacionada intrinsecamente com a prevenção e resolução dos conflitos de uma maneira não violenta, isto é, uma resolução tolerante.
A filosofia relaciona-se igualmente com a politica na resolução dos problemas, pois esta poderá contribuir para que respeitemos os direitos individuais e nos empenhemos em prevenir conflitos resolvendo-os nas suas origens, já que estes também englobam novas ameaças não-militares para a sociedade, quer para a paz, quer para a segurança, taiscomo a exclusão social, a pobreza extrema e a degradação ambiental. Se a sociedade viver segundo estes princípios, os problemas poderão ser resolvidos por meio do diálogo, da negociação e da mediação, de forma a tornar a guerra e a violência inviáveis, desta forma indo ao encontro do que é uma cultura de paz.
Mas estaremos a entrar em contradição ao falar do papel da filosofia na politica? Em questões relativas ao bem-estar da PESSOA não poderá haver contradição, caso contrário o discurso não seria racional pois, tal como afirma Kant, atribui-se uma máxima sabedoria à entidade legisladora, sendo que estes apenas deverão procurar os conselhos dos filósofos quanto aos princípios de comportamento em comparação com os outros estados, ou seja, os filósofos deverão ser convidados a falar livre e publicamente sobre as regras gerais de condução da guerra e de estabelecimento da paz.
Por vezes, parece que o «poder da filosofia" está a um nível muito inferior aos poderes politico e económico das sociedades. Ora o poder de pensar criticamente, de que a Filosofia é a expressão maior não poderá ser submissa a outros saberes, mas sim companheira de um dialogo multidisciplinar e transversal a outros modos de pensar!
Qual o papel que a filosofia devera exercer na politica?

“Não é de esperar nem também de desejar que os reis filosofem ou que os filósofos se tornem reis, porque a posse do poder prejudica inevitavelmente o livre juízo da razão. É imprescindível, porém, para ambos que os reis ou os povos soberanos (que se governam a si mesmos segundo as leis de igualdade) não deixem desaparecer ou emudecer a classe dos filósofos, mas os deixem falar publicamente para a elucidação dos seus assuntos, pois a classe dos filósofos, incapaz de formar bandos e alianças de clube pela sua própria natureza, não é suspeita da deformação de uma propaganda.” (KANT, Immanuel, A PAZ PERPÉTUA Um Projeto Filosófico, Artur Morão, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2008, pág. 35)

Os estados apenas deverão tomar em conta as máximas defendidas pelos filósofos quanto à obtenção da paz, e não deverão ser os filósofos a por em prática estas mesmas máximas numa sociedade, na qual o seu poder é muito reduzido.
A Filosofia deverá também agir de forma a que numa sociedade se aceitem todas as opiniões, sendo possível justificar e fundamentar teses contraditórias.
“Tu não és insuportável, deixo-te um lugar em minha casa, mas não te esqueças, estás em minha casa”, esta é uma expressão que retrata o tipo de tolerância que o pensamento, assumidamente critico, deverá evitar dentro de uma sociedade.
Esta é uma tolerância em sentido negativo, de indiferença e apologia do ostracismo tão desenquadrado de uma (con)vivência saudável entre os povos!
 Pelo contrário, devemos defender a máxima de, apesar de não concordarmos com a aquilo que o OUTRO diz, defendermos que ele possa sempre dizer a sua opinião, ou seja, em nosso entender, a realização plena do ideal da tolerância implica o diálogo e opõe-se a relações de dominação e dominadoras de poderes desequilibrados.
Poderão as nações compreender este aspeto? Sinceramente, não sabemos!
Procuremos, então, estabelecer, agora, uma possível ligação entre o criticismo e a tolerância, sendo que ambos os conceitos e sua expressão pratica, podem coexistir sem qualquer problema para a sociedade.
E o que entendemos por criticismo?
O criticismo consiste no processo de examinar ou investigar a opinião de outrem de uma forma crítica e cética moderada, mas nunca cínica.
Tal posição fundamenta-se na noção de que, neste caso, devemos apenas considerar um critério de valor, o valor da liberdade. Devemos considerar que todo o ser é livre de expressar a sua opinião, mesmo que não sejamos a favor da mesma.
Mas para além desta possibilidade, existe uma outra, a de criticarmos a opinião do outro de forma a reforma-la, não necessariamente de encontro à nossa, mas de forma a que o interlocutor possa contra-argumentar racionalmente até que ambos as partes cheguem a um compromisso.
Falemos, então, com Voltaire quando defende que a tolerância é património da razão, pois ser tolerante exige argumentação bem fundamentada, ou seja, desta forma estamos a promover a tolerância através de um meio não violento que é o diálogo. 
Nas sociedades atuais por vezes vamos perdendo o valor da tolerância por sermos radical e exageradamente críticos, não sabendo então ouvir o outro, e partindo por vezes para conflitos que de insignificantes se tornam dolorosos para o ser humano!
E os limites à tolerância? Existem? Se sim, quais são?
Em nosso entender, a tolerância também apresenta limites apesar de, à primeira vista, dar a ilusão de envolver contradição no meu texto, pois nem todas as opiniões tem o valor da liberdade e, por vezes, algumas apesar de não colocarem em causa a liberdade do orador, colocam em causa a liberdade do OUTRO, isto é a invasão do direito alheio.
Para além disso, devemos considerar como moralmente intolerável algumas das atrocidades levadas a cabo pelo ser humano em nome da tradição como a excisão genital, o casamento entre meninas e adultos e a tortura (em publico) de tantas PESSOAS que as imagens nos deixam irremediavelmente inertes!
Mas teremos nós o direito à intolerância? Será que a intolerância vai contra o conceito de liberdade?
Ao sermos intolerantes estamos a pôr em causa a liberdade do outro e a causar problemas na sociedade, estamos também a retirar ao OUTRO a possibilidade de exprimir a sua opinião livremente?
            Ouçamos, mais uma vez, Voltaire:  

“O direito da intolerância é, portanto, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, sendo bem mais horrível também, porque os tigres dilaceram suas presas para comer, enquanto nós nos exterminamos por causa de alguns parágrafos.”(VOLTAIRE, TRATADO SOBRE A TOLERANCIA, William Lagos, Porto Alegre, 2011, pág. 28)


       A intolerância leva-nos a esquecermos a paz e a aceitação do OUTRO, passando de uma guerra de argumentos para uma guerra onde nos “exterminamos” uns aos outros, em que estamos contra a nossa própria espécie apenas porque não aceitamos uma opinião diferente da nossa e nos julgamos, ilusoriamente, o centro da verdade!

            Imaginemos agora uma situação real de diferenças entre duas culturas, uma oriental e uma ocidental. No luto a cultura ocidental utiliza cores escuras, já na cultura oriental a cor privilegiada é o branco, caso duas pessoas destas duas sociedades diferentes se encontrem, elas argumentarão sempre a favor da sua cultura, sendo que será difícil que considerem viável a forma como o outro compreende neste caso a morte.
            Mas será, então, esta diferença entre padrões culturais motivo para sermos intolerantes? É obvio que todos nós apresentamos diferenças nas mundividências, as sociedades são diferentes entre si e baseiam-se em contextos diferentes, mas isso não é motivo para sermos intolerantes com o OUTRO devemos aceitar a sua cultura no que ela eleva a dignidade da pessoa humana, concordemos ou não, e mesmo que ele esteja perante a nossa cultura, não lhe deverá ser exigido que mude de costumes, que a sua ação seja baseada nos nossos padrões culturais, esta deverá ser tolerada e respeitada, devemos então aceitar a sua diferença que sempre se nos apresenta como riqueza culturalmente colorida dos povos!
Tal como afirma André Comte-Sponville, a tolerância tem como limite a justiça e o horror que é proporcionado ao outro, tal como mencionado anteriormente a liberdade poderá limitar a tolerância.
           
“Tolerar o sofrimento dos outros, tolerar a injustiça de que não somos vítimas, tolerar o horror que nos poupa não é mais tolerância: é egoísmo, é indiferença, ou pior. Tolerar Hitler era ser seu cúmplice, pelo menos por omissão, por abandono, e essa tolerância era já colaboração.”(COMTE-SPONVILLE, ANDRÉ, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1999, Tradução de Eduardo Brandão, pág. 85)

Algumas questões se nos colocam, tais como:
Como devemos agir perante a intolerância?
Podemos e devemos ser tolerantes com os intolerantes?
Como devemos responder aos que ultrapassam os limites de intolerância?

A resposta não se apresentando fácil, tentaremos responder reflexivamente a estas questões tendo em conta o enquadramento do texto que nos propusemos elaborar.      
Em primeiro lugar, consideramos que não devemos tolerar os intolerantes, mas ao mesmo tempo também não devemos ser intolerantes com os mesmos, pois ao ser intolerantes estamos a agir de forma incorreta, isto é, ao ser intolerantes estamos a agir da mesma forma que os outros e isto irá causar mais intolerância, e caso fundamentemos esta ação em intolerância, acabaremos por resvalar para uma atitude de intolerância sem retorno, contudo devemos sempre agir perante a intolerância com base no diálogo e na tentativa de compreensão do diferente para facilitar o processo de mudança de pensamento.
Não podemos nem devemos agir de forma violenta ou de uma forma menos correta perante uma ação de outrem o que nos pode levar a pensar: como se lida com alguém que recusa a comunicação? Só tentando o saberemos!
Relativamente ao ultrapassar dos limites de tolerância, devemos estar sempre atentos e chamar à atenção aqueles que ultrapassam esses mesmos limites, faze-los desta forma ver que a sua ação é a menos correta, que a sua ação está a pôr em causa vidas que não são a sua, mais uma vez esta ação será fundamentada no dialogo, nunca se deveria ter em conta uma ação violenta, pois violência apenas traz mais violência e desta forma estaríamos a agir globalmente sem benefício.
Assim, é no seguimento do conceito de violência que tentaremos procurar os motivos pelo qual o ser humano leva a cabo uma serie de atrocidades contra si mesmo, procuraremos os motivos pelos quais guerreamos e tentaremos buscar uma justificação esses atos.
"Será que os homens guerreiam por necessidade?" A resposta a esta questão é obvia: claramente Não; os homens guerreiam por diversos motivos, mas a necessidade não é um desses fatores essenciais. As razões causadores de conflitos, neste caso da guerra, são do foro económico, religioso, ideológico, cultural, geográfico ou até mesmo de vingança ou posse.
            O tipo de guerra varia conforme a situação, área de abrangência, tipo de confronto e até mesmo tipo de armamento, mas apesar disso as origens da guerra são   as mesmas, o motivo económico é a origem predominante das guerras, pois estes relacionam-se bastantes com o poder que o ser humano procura, a ganância. Estas guerras podem ter como objetivo a conquista de territórios, recursos e mercados ou a até o controle de recursos económicos estratégicos, pelo que têm em conta a relação custo-benefício. Outro dos motivos causadores de guerra são a cultura e a religião e tal como mencionado anteriormente isto deve-se ao facto de termos dificuldades quase "genéticas" em aceitar a forma de viver do OUTRO.
Estes conflitos podem ser justificados por rivalidades étnicas e religiosa, ou até mesmo pela rejeição de outra cultura, sendo este o tipo de guerra mais facilmente causado pela intolerância, por outro lado, as guerras religiosas são as mais antigas e permanecem atuais. Este tipo de guerra relaciona-se com a vontade de imposição de ideia que o Homem tem, sendo que este se considera superior ao outro e quer que o outro o aceite.
Não podemos então esquecer o tipo de guerra que atualmente tem acontecido, que para além de ser uma guerra de poder e de imposição de ideias, tem em si a base "guerrear contra o incitamento à violência", ou seja estamos a agir em prol da não violência, com violência. Todos estes motivos para guerrearmos não deveriam ser validos, pois o ser humano ao causar guerras está a agir contra a própria espécie.
            Então será o mal causado pelo homem algo de banal?
Para responder esta questão Hannah Arendt desenvolveu o conceito de banalidade do mal que ainda hoje é polémico e, por vezes,  incompreendido. Através deste   a filosofa caracteriza o mal como algo que não pode ser explicado como uma fatalidade, mas sim caracterizado como uma possibilidade da liberdade humana. Enquanto que o conceito de banalidade não quer abrir precedentes para uma suposta inocência do criminoso, quer tão somente entender um fenómeno. Para chegar a tais conclusões Arendt baseou-se no processo e julgamento de Adolf  Eichmann, homem que era responsável por enviar os judeus para os campos de concentração. Mas Hannah Arendt compreendia Eichmann não como um monstro, mas sim como um homem normal, tão normal como tantos outros sendo que foi esta moralidade que motivou Hannah Arendt a procurar uma teoria explicativa para o mal cometido. A  filosofa, de origem judaica, apresentava o mal como algo sem inspiração própria, mas apesar da ausência de inspiração este mal não deixava de ser monstruoso, pois apesar deste ser banal não significa que o réu seja inocente ou mesmo que esta banalidade do mal seja normal no ser humano. Dito de outro modo, a expressão banalidade do mal não é justificativa para as atrocidades cometidas.
Mas, então, como pode o mal tornar-se banal?
A resposta a esta questão assenta numa sociedade superficial e supre fluida, ou seja, uma sociedade em que o pensamento seja superficial, facilitando assim que cada individuo ceda mais facilmente ao mal e uma sociedade supre fluida, isto é uma sociedade que apenas pensa em termos utilitários e que absorve o pensamento politico vigente, sendo que o mal causa guerras, seja considerado como algo banal, tal a vulgaridade com que nos lidamos e o "aceitamos" nas sociedades!



Algumas questões póstumas...


Paquistão, 27 de março de 2016

O ataque suicida de domingo fez 72 mortos e mais de 300 feridos. Papa pede proteção das minorias no país.
Pouco antes de um bombista se ter feito explodir num parque de Lahore, com a intenção de matar cristãos que ali festejavam a Páscoa, uma multidão forçava a sua entrada no centro de Islamabad para exigir a elevação a mártir de um extremista executado pelo assassínio de um governador liberal. Não há indícios de que os dois acontecimentos estejam ligados, mas ambos ilustram a fragilidade dos progressos reivindicados pelo Governo de Nawaz Sharif na luta contra os extremistas islâmicos, (...)

Publico, 28/03/2016 - 19:05

Desafortunadamente a violência e o terror (ismo) não descansaram enquanto eu refletia as questões que me envolviam no tema problema! Numa sociedade global como a nossa o mundo está perante nos no que de melhor e pior faz acontecer!
Talvez se tenha tornado comum afirmar que vivemos em tempos difíceis ou, para usar uma expressão arendtiana, em "tempos sombrios". Crise económica e financeira, crise de confiança nas instituições, crise de valores, crise energética, crise de sustentabilidade, mudanças climáticas e catástrofes ambientais, crises dos paradigmas, mudanças epistemológicas, guerras e terrorismos, intolerâncias religiosas e, não menos grave, crise do sistema educativo. Tempos tão difíceis ou sombrios que nos leva a relembrara expressão crise de época, para sinalizar que não vivemos, simplesmente e apenas, mais uma época de crises.
Porém e, apesar destes tempos de crise, não nos podemos esquecer que valores como os de paz e tolerância, tem de ser uma aposta das sociedades pois é urgente educar para os valores que elevam uma sociedade à categoria de humana!
Este défice educacional leva a um vazio de pensamento, e é neste vazio que a filosofia encontra o seu papel formativo, um papel formativo comprometido com os valores mais nobres e não esquecendo uma abertura a valores morais fundamentais, como justiça, igualdade, liberdade, solidariedade, diálogo e tolerância.
 A filosofia deverá então educar para o pensamento e, desta forma, cultivar em cada um dos seres, atitudes que possibilitem e promovam o diálogo.
Nesse sentido, o pensamento deverá ter espaço privilegiado nos processos educativos que se desejam morais. Não obstante, é importante observar que nos processos formativos geralmente o pensamento critico, insatisfeito e irreverente não é valorizado.
Os políticos convivem mal com mentes pensantes! E não se pense que é um defeito de hoje, que o diga Sócrates na Grécia antiga, Galileu e a sua determinação em querer observar o universo por si próprio!
Apesar disto, ou mesmo por tudo isto, cabe à filosofia o imperativo moral e legal de ouvir o outro lado - ele terá algo a dizer e, por isso, não podemos desistir do imperativo do diálogo com o OUTRO.
Porquê e para quê?
             Deve educar-se o ser humano para uma reflexão pessoal, profunda, interna, desinteressada e capaz de dar significado(s) ao mundo que habitamos.

Ou, em outras palavras: pensar e estar completamente vivo são a mesma coisa, e isto implica que o pensamento tem sempre que começar de novo; é uma atividade que acompanha a vida e tem a ver com conceitos como justiça, felicidade e virtude, que nos são oferecidos pela própria linguagem, expressando o significado de tudo o que aconteceu na vida e nos ocorre enquanto estamos vivos.” (Arendt, Hannah, A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. António Abranches. Rio de Janeiro:1995, Pág. 134)

Deste modo, a filosofia poderá e deverá desempenhar um papel preponderante na educação das sociedades, quer para nos elevar enquanto seres humanos, que para nos permitir criar valores, valores mais conscientes, sendo que o papel da filosofia na tolerância e na paz mundiais é sobretudo formativo, isto é, um processo instrutivo ao pensamento, não através da retórica, mas sim do fomento do pensamento individual e coletivo, este processo formativo devera construir uma cultura de e para o diálogo!
O mundo continua a chorar o terror e o medo não poderá vencer!
Um dia, quando tive oportunidade de falar com monsenhor D. Ximenes Belo coloquei-lhe exatamente a questão do Estado Islâmico, perguntando-lhe o que pensava, ao que ele me respondeu com uma questão: não terão eles nada a dizer-nos?

Será que os países ocidentais não deveriam ter uma postura de diálogo para com o Estado Islâmico?
Ou será que os países ocidentais têm interesse que a guerra se propague indefinidamente?
Será que a filosofia deveria intervir nesta guerra, mostrando aos homens de Estado que estão a seguir o caminho errado?
          E que como nos diz Kant:
                       
"No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Se algo tem um preço, pode ser trocado por qualquer outra coisa. O que tem dignidade é único e não pode ser trocado; está além do preço. Há dois tipos de preços, afirma Kant: o preço venal, que está relacionado com a satisfação da necessidade; e o preço de sentimento, relacionado com a satisfação do gosto. (A moralidade está para lá e acima de ambos os tipos de preço». Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Edições 70)

Ainda hoje temos cada vez mais necessidade filosófica e existencial de nos envolvermos nas palavras de Kant para olhar um futuro de diálogo que sabemos ser inevitável, mas que, no entanto,  não se apresenta, pelo menos no imediato, passível de ser concretizado!
E, desavergonhadamente...
.... o preço vai sendo alto, demasiado alto para o ser humano!

Até quando?




Referências bibliográficas


KANT, Immanuel, A PAZ PERPÉTUA : Um Projeto Filosófico, Artur Morão, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2008

COMPE-SPONVILLE, André, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes,  Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1999, Tradução de Eduardo Brandão

OLIVEIRA, Ariana BAZZANO DE,O PERCURSO DO CONCEITO DE PAZ: de Kant à Atualidade, Universidade Estadual de Londrina

VOLTAIRE, TRATADO SOBRE A TOLERANCIA, William Lagos, Porto Alegre, 2011

GUERRA, Marta, tolerar o intolerável, in pravda.ru

ARENDT, Hannah, EICHMANN IN JERUSALEM: a report on the banality of evil; The Viking press, New York

ARENDT; Hannah, A VIDA DO ESPIRITO: O PENSAR, O QUERER, O JULGAR. Trad. António Abranches. Rio de Janeiro, 1995

ANDRADE, Marcelo, A BANALIDADE DO MAL E AS POSSIBILIDADES DA Educação MORAL: contribuições arendtiana, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Educação

Wikipédia -  Definição de Guerra

A banalidade do mal de Hannah Arendt in Ensina Rtp

DEJOURS, CHRISTOPHE, Banalização ou a Injustiça SOCIAL, Editora FGV, Rio de Janeiro

Eikasia, Revista da filosofia, número 50 julho, Oviedo,2013






 Obrigado querido aluno Luís Martins do 11° A por este Prémio para si 
e para a nossa escola!

Muito Orgulhosa de si!

                                                                                                                                      Lola




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