Introdução: o que a filosofia é
Eis uma coisa que o leitor deve sempre
evitar tentar explicar. Mas pode desejar ficar com duas coisas claras desde o
início.
Em primeiro lugar, a filosofia não é um
assunto — é uma actividade. Consequentemente, não se estuda: faz-se. É assim
que os filósofos, pelo menos os da tradição anglo-saxónica (que por qualquer
razão histórica obscura parecem incluir os finlandeses), têm tendência para pôr
a coisa. Em segundo lugar, a filosofia é em grande parte uma questão de análise
conceptual — ou seja, pensar sobre o pensamento. Por agora, limitemo-nos ao
mais básico.
Isto é algo que no sentir de alguns
filósofos é impossível, mas não há razão para o leitor lhes seguir o exemplo.
Para o visitante casual que observa rapidamente a paisagem, a filosofia parece
desconcertantemente difícil. Uma das suas maiores dificuldades é o facto de os
filósofos, salvo raras e honrosas excepções, acharem praticamente impossível
usar uma linguagem compreensível para as pessoas comuns, como por exemplo o
português. Acontece até que quando um filósofo quer referir-se à Pessoa Comum
(uma espécie que é improvável que ele tenha conhecido em primeira mão, apesar
de poder ter ouvido lendas de viajantes acerca dela), usa a expressão “o homem
que apanha a carreira 45 para a Damaia”, aparentemente sem se dar conta de que
já ninguém usa a palavra “carreira”, excepto para referir o percurso vicioso
dos políticos, nem que a Damaia já não é também o exemplo ideal da mediocridade
suburbana lisboeta.
A sua tarefa, portanto, é alcançar pelo
menos uma ténue compreensão do mais profundo alcance do vocabulário técnico,
tal como é usado, de forma tão enigmática, pelo filósofo contemporâneo. Não se
preocupe. A competência linguística, tal como o segundo Wittgenstein teria dito
(que não deve confundir-se, é claro, com o primeiro Wittgenstein, que não diria
tal), é uma questão de pôr as palavras na ordem certa. O leitor não terá
realmente de compreender o que quer dizer a maior parte disto, se é que quer
dizer alguma coisa.
As vidas dos filósofos
A filosofia é um assunto (perdão, uma
actividade) que tem uma história; e como progride tão pouco, se é que progride
realmente alguma coisa, a sua história é, consequentemente, mais importante do
que a história de outras disciplinas. O especialista instantâneo bem-sucedido
tem de se equipar com um conhecimento prático desta história, se quiser singrar
na charlatanice.
Para os propósitos deste livro,
confinar-nos-emos quase exclusivamente à filosofia ocidental, essa admirável
tradição que começou na Grécia no século VII a.C. Há uma boa razão para esta
opção. A filosofia da tradição ocidental é um tipo de projecto muito diferente
da filosofia oriental. Numa próxima secção daremos alguns conselhos sobre como
ser apropriadamente evasivo acerca de temas como a Meditação, o Budismo, a
Religião Indiana, as Pessoas com Cabeças Rapadas e Túnicas Amarelas Imundas, e
outras ameaças sociais do género.
Portanto, esta
secção contém factos mais ou menos interessantes sobre alguns filósofos mais ou
menos famosos, factos esses de natureza tanto biográfica como filosófica,
dispostos de maneira mais ou menos cronológica.
Os primeiros
filósofos gregos são geralmente conhecidos por pré-socráticos,
apesar de isto ser enganador: nem todos viveram antes de Sócrates,
e, em qualquer caso, não constituíram uma escola coerente; na verdade, a
maioria deles não constituíram sequer indivíduos coerentes.
Ninguém sabe por
que começou a filosofia quando começou; o especialista instantâneo ambicioso
com inclinações marxistas pode tentar oferecer uma explicação em termos de uma
dialéctica inexorável de forças históricas, mas nós não o recomendamos. Uma
característica notável de muitos pré-socráticos é a sua tentativa de reduzir os
constituintes materiais do Universo a uma ou mais Substâncias básicas, tais
como a Terra, o Ar, o Fogo, as Sardinhas, os Gorros de Lã Velhos, etc.
Tales
de Mileto (c.
620-550 a.C.) foi o primeiro filósofo reconhecido. Poderão ter existido outros
antes dele, mas ninguém sabe quem foram. Ele ficou conhecido principalmente por
defender duas coisas:
1) Tudo é feito de Água; e
2) Os ímanes têm alma.
2) Os ímanes têm alma.
O leitor poderá
pensar que não foi um princípio muito prometedor.
Anaximandro (c. 610-550)
pensava que tudo era feito do Apeiron,
uma concepção que tem um certo encanto espúrio, até percebermos que não quer
realmente dizer coisa alguma.
Anaxímenes (c. 570-510)
aventurou-se corajosamente numa direcção completamente nova, apesar de não
menos arbitrária, ao afirmar que na realidade tudo era feito de Ar, uma
perspectiva talvez mais plausível na Grécia do que, por exemplo, no Barreiro.
Heraclito (c. 540-490)
discordou, defendendo antes que tudo era feito de Fogo. Mas ele avançou um
passo mais, afirmando que tudo estava num estado de fluxo e que tudo era
idêntico ao seu oposto, acrescentando que não podemos entrar duas vezes no
mesmo rio, e que não existe qualquer diferença entre o Caminho a Subir e o
Caminho a Descer, o que mostra que nunca foi ao Bairro Alto numa sexta-feira à
noite. Vale por vezes a pena referir de passagem (o que constitui sempre a
melhor maneira de nos referirmos ao que quer que seja em filosofia) a
“Metafísica de Heraclito”, para falar da sua doutrina do fluxo, desde que não
tenhamos de explicar seja o que for. Heraclito era muito admirado por Hegel (q.v.),
o que nos diz talvez mais sobre Hegel do que sobre Heraclito.
Pitágoras (c. 570-10),
como qualquer aluno da primária sabe, inventou o triângulo rectângulo; na
verdade foi mais longe, ao acreditar que tudo era feito de números. Acreditava
também numa forma extrema de reincarnação, defendendo que uma larga gama de
coisas improváveis, incluindo os arbustos e os feijões, têm alma, o que tornava
a sua dieta bastante problemática, acabando por ser indirectamente responsável
pela sua bizarra morte (q.v.).
Empédocles (c. 500-430), um
notável médico e político siciliano do século V, completamente doido (veja-se
Mortes para mais detalhes), pensava que tudo era feito de Terra, Ar, Fogo e
Água, misturando-se ou separando-se tudo através do Amor e da Discórdia, ganhando
cada um, à vez, a proeminência no ciclo do eterno retorno, espelhando assim o
cosmos, em grande escala, o casamento suburbano típico.
Depois vêm os eleatas, Parménides (520-430)
e Melisso (480-420),
que foram ainda mais além. Em vez de afirmarem que tudo era na realidade feito
de uma substância, defenderam antes que na realidade só havia uma única Coisa,
grande, esférica, infinita, imóvel e imutável. Toda a aparência de variedade,
movimento, separação entre objectos, etc., era uma Ilusão. Esta teoria
extraordinariamente contra-intuitiva (por vezes conhecida por Monismo,
da palavra grega “mono”, que quer dizer “dispositivo antiquado de gravação”)
revelou-se surpreendentemente popular, sem dúvida por estar de acordo com a
experiência que as pessoas têm com algumas instituições, como os Correios e a
EDP.
O seu sucessor, Zenão (500-440),
avançou um conjunto de argumentos paradoxais para mostrar que nada pode
mover-se. Aquiles e a Tartaruga são ainda discutidos, tal como a Flecha:
argumentou ele que esta não podia realmente mover-se, o que, a ser verdade,
teria sido uma boa notícia para S. Sebastião. Os argumentos tratam de saber em
grande parte se o Espaço e o Tempo são infinitamente divisíveis, ou se um
deles, ou ambos, é feito, ou são feitos, de quanta indivisíveis
— mencione isto para dar a Zenão um ar moderno; se lhe pedirem explicações,
mude de assunto.
Os últimos dos
pré-socráticos são os atomistas Demócrito (c.
450-360) e Leucipo (450-390).
Diz-se por vezes que eles anteciparam a teoria atómica moderna. Isto é
completamente falso, e o especialista instantâneo ganha alguns pontos ao
dizê-lo, pela simples razão que o que há de crucial nos átomos democritianos é
a sua indivisibilidade, ao passo que o que há de crucial nos átomos modernos é
o facto de não serem indivisíveis. O leitor pode também fazer notar que
Demócrito não gostava de sexo, apesar de não se saber se tal se devia a razões
teóricas ou a algum infeliz revés pessoal.
É tudo quanto
aos pré-socráticos; vamos agora ao próprio homem que lhes deu o nome,Sócrates (469-399).
Sócrates não escreveu coisa alguma: dependemos de Platão no que respeita a
qualquer informação sobre ele, e é uma vexata quaestio (uma
boa expressão) saber até que ponto Platão reproduziu as ideias de Sócrates, ou
se limitou unicamente a usar o seu nome. Não se deixe enredar nesta questão:
uma boa manobra é afirmar, com um certo desdém arrogante, que o que conta é o
conteúdo filosófico, e não a sua origem histórica.
Platão (427-347)
acreditava que os objectos comuns do quotidiano, como as mesas e as cadeiras,
eram meras cópias “fenoménicas” imperfeitas de Originais perfeitos que existiam
no Céu para serem apreciados pelo intelecto, as chamadas Formas. Também há formas
de itens abstractos tais como a Verdade, a Beleza, o Bem, o Amor, os Cheques
Carecas, etc. Esta posição trouxe algumas dificuldades a Platão: se tudo o que
vemos, sentimos, tocamos, etc., deve a sua existência a uma Forma Perfeitamente
Boa, têm de haver Formas Perfeitamente Boas de Coisas Perfeitamente Horríveis.
O próprio Platão menciona o cabelo, a lama e a sujidade; mas nós podemos pensar
em exemplos muito melhores, tais como peúgas brancas com sapatos pretos,
caramelos de Badajoz e galos de Barcelos.
Platão parece
ser imensamente sobrestimado como filósofo; se não acredita em mim, veja o
seguinte argumento tipicamente platónico, tirado do Livro II da República:
1. Aquele
que distingue as coisas com base no conhecimento (presumivelmente, em vez de
ser com base no mero preconceito) é um filósofo;
2. Os
cães de guarda distinguem as coisas (neste caso, os visitantes) consoante os
conhecem ou não (esta é uma verdade cara aos carteiros); ergo
3. Todos
os cães de guarda são filósofos.
Experimente usar
de vez em quando este argumento, para ver como se sai.
Outra manobra
útil de aproximação a Platão é argumentar uma das duas ideias seguintes:
1. Que
ele era um feminista;
2. Que
não era.
Ambas as
afirmações podem ser sustentadas e acabar por revelar-se úteis (em ocasiões
diferentes, claro). O indício para 1 é o facto de Platão afirmar no Livro 3 da República que
as mulheres não devem ser discriminadas em questões de emprego unicamente por
serem mulheres. A favor de 2 é o facto de, imediatamente a seguir, Platão
comentar que uma vez que as mulheres são por natureza muito menos talentosas do
que os homens, esta “liberalização” não faz de qualquer maneira diferença
alguma.
Depois de Platão
vem Aristóteles (382-322),
por vezes conhecido como o Estagirita, que ao contrário do que pode parecer não
é o embrião de um estagiário, mas um nativo de Estagira, na Macedónia. Foi
aluno de Platão e esperava suceder-lhe como director da Academia. Sentiu-se,
por isso, ultrapassado quando Espeusipo (não é necessário saber seja o que for
sobre ele) ficou com o lugar, abandonando ofendido a Academia para fundar a sua
própria escola, o Liceu — que não deve ser confundido com o lugar misterioso
onde os nossos pais perderam a inocência.
Aristóteles era
estupidamente brilhante. Desenvolveu a Lógica (na verdade, inventou-a), a
Filosofia da Ciência (que também inventou), a Taxonomia Biológica (sim, também
foi inventada por ele), a Ética, a Filosofia Política, a Semântica, a Estética,
a Teoria da Retórica, a Cosmologia, a Meteorologia, a Dinâmica, a Hidrostática,
a Teoria da Matemática e a Economia Doméstica. Não é aconselhável dizer seja o
que for que não seja elogioso em relação a ele, mas o especialista instantâneo
atrevido pode aventurar-se a lamentar a inclinação excessivamente Teleológica
da sua Biologia, ou comentar que apesar de a sua teoria lógica ser um feito
notável, ela foi no entanto, como é óbvio, ultrapassada pelos desenvolvimentos
modernos devidos a Frege e Russell (q.v.). Mas tenha cuidado com estas afirmações,
e nunca as produza se estiver a falar com um matemático, mesmo que este seja
muito novo. Uma linha de abordagem muito mais segura consiste em depreciar
moderadamente os aspectos mais caricatos da Biologia de Aristóteles, dos quais
o seguinte argumento sobre a estrutura dos genitais das cobras é um exemplo:
As cobras não têm pénis porque não têm pernas; e
não têm testículos por serem tão compridas. (De Generatione Animalum)
Aristóteles não
oferece qualquer argumento para sustentar a sua primeira alegação, a não ser a
suposição geral a que somos conduzidos de que caso contrário o órgão em causa
seria penosamente arrastado pelo chão; mas a segunda deriva da sua teoria da
reprodução. Para Aristóteles, o sémen não é produzido nos testículos, mas na
espinal medula (os testículos funcionam aparentemente como uma espécie de sala
de espera do esperma vagabundo); além disso, o sémen frio é estéril, e quanto
mais tiver de viajar, mais arrefece (daí o facto conhecido, comenta ele, de os
homens com pénis compridos serem estéreis). Assim, uma vez que as cobras são
tão compridas, se o sémen parasse algures no caminho, as cobras seriam
estéreis; mas as cobras não são estéreis; logo, não têm testículos. Este
esplêndido argumento é um exemplo de Teleologia Excessiva, ou de uma explicação
em termos de fins e objectivos, que neste caso põe na verdade tudo de pernas
para o ar.
Depois de
Aristóteles a filosofia fragmentou-se cada vez mais. Fundaram-se várias escolas
rivais para complementar, e desancar, as já existentes Academia e Liceu. As
grandes novidades do princípio do século III a.C. são os estóicos,
os epicuristas e
oscépticos.
Os estóicos acreditavam
perversamente numa Providência Divina que tudo abarcava, apesar de todos os
dados em contrário, tais como a ocorrência de desastres naturais, o triunfo das
injustiças e a existência de hemorróidas. Crisipo,
talvez o mais proeminente, e sem dúvida o mais palavroso dos estóicos,
argumentou que as pulgas tinham sido criadas por um Providente Benevolente para
não deixar as pessoas dormir de mais. Os estóicos contribuíram também com
alguns desenvolvimentos importantes na teoria da lógica, o que lhes permitiu
formular alguns tipos de argumentos que tinham escapado a Aristóteles. Mas o
especialista instantâneo não deve preocupar-se muito com isso.
Os epicuristas,
assim chamados em nome do seu fundador, Epicuro (342-270)
defendiam que o nosso Fim era o prazer, consistindo este na satisfação dos
desejos, o que era um bom começo. Mas depois deram a volta às coisas, afirmando
que isto não significava que ter muito prazer era uma coisa boa; pelo
contrário, uma pessoa devia limitar o número dos seus desejos, para que assim
não acabasse por ficar com muitos desejos por satisfazer — um projecto que tem
como consequência uma vida miseravelmente chata (e que, a ser cumprido,
implicaria a completa reestruturação das fantasias do adolescente típico). Este
ponto de vista é lógico, e ainda mais divertido, e, é claro, completamente
oposto àquela ideia da filosofia como a procura do Inefável e do Inatingível —
a União Mística com o Criador, a Empatia Total com o Cosmos, ou uma Noite com a
Claudia Schiffer.
Assim:
Assim:
Por prazer entendemos a ausência de dor física e
mental. Não se trata de beber, nem de festas orgiásticas, nem da satisfação com
mulheres, rapazes ou peixe. (Extraído de Carta a Menécio)
Não sabemos
aonde foi ele buscar a ideia do peixe, mas asseguramos-lhe que está no texto. A
outra característica importante do epicurismo era a sua versão da Teoria
Atómica, que era como a de Demócrito, excepto que, para preservar o
livre-arbítrio, os epicuristas defendiam que de vez em quando os átomos davam
uma guinada imprevisível, causando colisões, mais ou menos como os motociclistas
acelerados das cidades. Defendiam também que apesar de os deuses existirem, se
estão nas tintas para os homens porque têm mais que fazer.
A outra grande
escola deste período, os cépticos,
não acreditavam em nada. O seu fundador, Pirro de Elis (c.
360-270), não escreveu quaisquer livros (presumivelmente porque não acreditava
que alguém os leria, se acaso os escrevesse), apesar de alguns cépticos
posteriores — inutilmente, poderemos pensar — o terem feito, sendo de notar Tímon,
que escreveu um livro de sátiras chamado Silloi, Enesidemo e Sexto Empírico.
A linha de argumento principal consistia em afirmar que nenhum dado dos
sentidos era digno de confiança, apesar de poder ser agradável, e que,
consequentemente, ninguém podia ter a certeza fosse do que fosse. Na verdade,
ninguém podia ter a certeza que não se podia ter a certeza fosse do que fosse.
Para sustentar esta ideia, ofereceram algumas versões do Argumento da Ilusão,
que Descartes iria usar mais tarde.
Diz-se que o
cepticismo de Pirro era tal que os amigos tinham de o impedir, repetidamente,
de cair nos precipícios e nos rios e de caminhar de encontro a carros em
andamento, o que não devia dar-lhes qualquer descanso, apesar terem sido
aparentemente muito eficientes, pois morreu com uma idade bastante avançada.
Diz-se que visitou os gimno-sofistas indianos, ou “filósofos nus”, assim
chamados devido ao hábito de fazerem seminários em pêlo. Uma vez ficou tão
irritado com as perguntas insistentes que lhe dirigiam em público que se despiu
completamente (talvez por influência dos gimno-sofistas), mergulhou no ilusório
Rio Alfeu, e nadou vigorosamente para longe, uma táctica que o especialista
instantâneo fortemente pressionado pode considerar imitar.
Havia mais
algumas escolas menores que tentavam alcançar a ribalta, nomeadamente os cínicos,
que eram os mestres do comentário sarcástico, e uma desgraça se apareciam para
jantar. Um deles, Crates,
era conhecido por irromper nas casas das pessoas para as insultar. O cínico
mais famoso foi Diógenes,
que vivia numa barrica para fugir aos impostos, e que ficou conhecido por ter
uma vez dito a Alexandre Magno, com uma certa aspereza, para lhe sair da frente
para não lhe tapar o sol. Costumava também escandalizar as pessoas por comer,
fazer amor e masturbar-se em locais públicos, quando e onde lhe dava vontade.
Pode ser útil
fingir um certo afecto pelos cínicos: estavam-se completamente nas tintas para
o que as outras pessoas pensavam deles, sendo por isso modelos da Temperança
Filosófica, ou idiotas chapados, dependendo do seu ponto de vista. É
irrelevante o ponto de vista adoptado, mas certifique-se de que adopta um
qualquer.
A filosofia
vagueou no mundo greco-romano sob da protecção imprevisível dos imperadores
romanos, cujas atitudes para com os filósofos variavam consideravelmente. Marco
Aurélio, por exemplo, foi ele próprio um filósofo; Nero, por outro lado,
matava-os. A influência do cristianismo começou a fazer-se sentir neste
período, e a filosofia sofreu com isso.
Agostinho,
que por qualquer razão bizarra se tornou um santo, apesar da sua pródiga vida
sexual e da sua famosa oração a Deus (“faz-me casto — mas ainda não”) teve
algumas ideias interessantes: antecipou o Cogito de Descartes (penso, logo
existo; refira-se sempre a
isto como “o Cogito”), e desenvolveu uma teoria do tempo segundo a qual Deus
está fora da corrente temporal de acontecimentos (sendo Eterno e Imutável, não
tinha outra saída), o que quer dizer que o Todo-Poderoso nunca sabe a que horas
são as coisas, mais ou menos como os maquinistas da CP.
Havia também os neoplatónicos,
alguns dos quais eram cristãos, enquanto outros não, mas cujos nomes parecem
todos começar por P.
Os que eram cristãos dedicavam-se a mostrar que Platão tinha na realidade sido
cristão, uma ideia que exige uma reorganização temporal surpreendente, para não
dizer implausível. Os neoplatónicos tinham a tendência para falar de Coisas
Abstractas com Letras Maiúsculas, tais como o Uno e o Ser, de uma maneira que
ninguém percebia. Isto não é um problema exclusivo deles: Heidegger fez o
mesmo, mas é claro que ele era alemão, e isso é o tipo de coisa que se espera
de um alemão. Encontrará talvez pessoas que cultivam alguma admiração por esta
gente; não hesite em afastá-los sumariamente, especialmente Plotino, Porfírio e Proclo,
apesar de poder admitir relutantemente que o último tinha umas ideias
interessantes sobre Causas.
Depois disso
veio a Idade das Trevas, e a chama da filosofia, como os historiadores
palavrosos gostam de dizer, foi mantida no mundo árabe, e em mosteiros que ou
eram tão remotos ou tão pobres que não valia a pena saquear. A pouca filosofia
que existia na Europa sofreu uma viragem depressivamente teológica,
centrando-se sobre disputas tais como se Deus era Uma pessoa em Três ou Três
pessoas Numa, a natureza exacta da Substância do Espírito Santo e quantos anjos
podem dançar na cabeça de um alfinete (no caso improvável de desejarem
realmente fazê-lo).
Vale talvez a
pena chamar a atenção para Córdova, no sul de Espanha, que estava ocupada pelos
árabes, e que era o país natal do maior filósofo judeu, Maimónides,
e do grande filósofo árabe, Averróis.
Algumas pessoas dirão que o maior filósofo árabe foi Avicena, e não Averróis —
mas não se renda (o dogmatismo compensa). Durante várias centenas de anos, os
judeus, os árabes e os cristãos conseguiram viver todos juntos. A intolerância
religiosa, apesar de ser perene, não tem sido um facto invariável da vida.
Na Europa, a
filosofia começou a renascer no século XI com Anselmo,
outro dos santos filosóficos, que ficou famoso por ter inventado o
enganadoramente chamado Argumento Ontológico da existência de Deus, que é
notável pela sua implausibilidade, pela sua longevidade, e pela dificuldade em
ser refutado. É assim: pense numa coisa maior do que a qual nada pode existir;
mas a existência é ela própria uma propriedade que torna uma coisa melhor.
(Esta alegação, implausível quando aplicada à halitose e aos bebés, torna-se
mais persuasiva se a entidade em questão for boa em todos os outros aspectos.)
Logo, se esta coisa maior do que a qual nada pode ser pensado (i.e., Deus) não
existisse, poderíamos imaginar a existência de outra coisa ainda maior,
nomeadamente, um Deus existente, que teria todas as propriedades do primeiro,
mais a existência como bónus. Mas nós podemos conceber este último. Logo, Deus
tem de existir. O próprio Anselmo afirma que foi Deus que lhe enviou uma visão
com o argumento pouco depois do pequeno almoço, no dia 13 de Julho de 1087,
numa altura em que ele estava a passar um mau bocado com a sua fé. Este é assim
o único grande argumento da história da filosofia cuja descoberta pode ser
datada com precisão. A não ser, claro, que Anselmo estivesse a contar lérias.
O próximo santo
filosoficamente importante foi Tomás
de Aquino (1225-74), que
foi responsável em grande parte pela reintrodução de Aristóteles no mundo
ocidental. (Aristóteles foi delicadamente ignorado durante séculos por
académicos que não gostavam de admitir que não sabiam grego.) São Tomás é
também o único filósofo oficialmente reconhecido pela Igreja Católica.
Tornou-se conhecido por propor as Cinco Vias para provar a existência de Deus —
não tinha ficado muito impressionado com Anselmo. Não precisa de saber quais
são essas Cinco Vias, mas pode talvez fazer notar que não existe qualquer
diferença significativa entre as primeiras três, de maneira que Tomás de Aquino
estava a exagerar um bocado.
Ele é também o
autor de dois argumentos interessantes contra o incesto. Em primeiro lugar, o
incesto tornaria a vida familiar ainda mais infernalmente complexa do que já é;
em segundo lugar, o incesto entre irmãos devia ser proibido porque se ao amor
típico dos casais se juntasse o amor típico dos irmãos, o vínculo resultante
seria de tal maneira poderoso que resultaria em relações sexuais anormalmente
frequentes. É uma infelicidade que São Tomás não defina este último conceito
intrigante. Podemos também duvidar seriamente se teve realmente irmãos ou
irmãs.
Quanto ao resto
dos escolásticos medievais, como são conhecidos devido à sua predilecção pedagógica
para o intenso pedantismo, a maioria dos mais importantes parecem ter sido
franciscanos. Deve afastar-se decididamente deles, ou pelo menos dos
pormenores. Poderá recordar que Duns
Escoto (1270-1308) era na verdade
irlandês, e que era além disso, segundo Gerard Manley Hopkins, “o mais dotado
decifrador do real”, seja o que for que isso queira dizer. Outro nome que vale
a pena usar é o de Guilherme
de Ockham (c. 1290-1349),
considerado universalmente o maior lógico medieval, e conhecido sobretudo pela
“Navalha de Ockham”, com a qual pôs fim a séculos de filosofia hirsuta. A
Navalha é usualmente citada segundo a fórmula “As Entidades não devem ser
Multiplicadas sem Necessidade”, ou, melhor ainda, em latim: “Entia non sunt multiplicanda praeter
necessitatem” (i.e., Não
Inventes). O especialista instantâneo ganha alguns pontos extra se comentar que
esta formulação não se encontra, na verdade, em parte alguma da oeuvreextraordinariamente
logorreica de Ockham.
A idade moderna
da filosofia começa efectivamente com a descoberta, na renascença, do cepticismo grego;
foi traduzido por Lorenzo Valla e usado por Michel de Montaigne. Depois de
ascender de Valla para Montaigne, a epistemologia céptica formou a base a
partir da qual Descartes iria reconstruir uma filosofia positiva.
René
Descartes, (1596-1650), como quase
todos os ensaios dos caloiros de filosofia lhe dirão, foi o Pai da Filosofia
Moderna. Descartes foi em muitos aspectos uma personagem apaixonante: tinha
muita dificuldade em levantar-se de manhã, e inventou o Cogito (lembre-se
de o chamar sempre assim)
enquanto estava escondido num quarto aquecido da Baviera, em 1620, para ver se
escapava à tropa. Nunca casou, mas teve uma filha ilegítima. É aconselhável
decorar o famoso slogan filosófico
de Descartes em pelo menos três línguas, pois em português rende muito pouco. O
próprio Descartes publicou-o em latim e em francês: Cogito, ergo sum; “Je pense, donc je suis” (a
versão do Discours
de la Méthode, que é menos conhecida do que
a das Meditações latinas,
constituindo portanto um material melhor para o especialista instantâneo). Os
especialistas instantâneos mais experientes podem divertir-se oferecendo
versões em alemão, servo-croata, hindustani, etc. Descartes chegou à conclusão
que pelo menos isso era certo, depois de tentar sistematicamente duvidar de
tudo o resto, tendo começado com coisas comparativamente simples, como as
laranjas, o queijo e os números reais, avançando depois gradualmente para as
verdadeiramente difíceis, como Deus e a sua senhoria.
Descartes
descobriu que podia duvidar da existência de tudo, excepto da realidade dos
seus próprios pensamentos. (Ele tinha mesmo algumas dúvidas quanto ao seu
próprio corpo, e com razão, a acreditar nos retratos que nos chegaram.)
Partindo desta certeza inabalável, Descartes passou à “reconstrução de uma
ponte metafísica” (use esta expressão: soa bem) para chegar à realidade comum,
por meio da demonstração da existência de Deus (exactamente como fez ele tal
coisa não deve preocupar-nos: basta saber que o fez), acabando assim por deixar
tudo mais ou menos como estava antes. Mas a filosofia é mesmo assim, como mais
tarde diria Wittgenstein. O leitor pode legitimamente perguntar-se no seu
íntimo se valeu a pena o esforço: mas não deixe jamais transparecê-lo.
A partir desta
altura a filosofia começa a mostrar sinais de se dividir em duas tradições, a
britânica e a continental. Este tipo de comentário enfurece os franceses e os
alemães que, não sem alguma razão, gostam de pensar que têm tradições
independentes — por isso vem mesmo a jeito quando falamos com eles.
Os britânicos
tendem a ser agrupados como empiristas,
o que quer dizer que, tal como o nome sugere, constroem os seus sistemas com
base no que pode ser sentido, observado, ou objecto de experiência. As
personagens mais importantes parecem uma anedota racista: era uma vez inglês
(Locke), um irlandês (Berkeley) e um escocês (Hume). Mas quem gosta de anedotas
ficará desapontado ao descobrir que, apesar dos estereótipos, Berkeley era
muito esperto e Hume muito generoso.
Mas comecemos
com John
Locke (1632-1704), que pensava que
os objectos tinham dois tipos de atributos:
1. Qualidades
Primárias, como a Extensão, a Solidez e o Número, tidas como inseparáveis e
inerentes aos próprios objectos, e
2. Qualidades
Secundárias, tais como a Cor, o Sabor e o Cheiro, que parecem estar nos
objectos, mas que estão na verdade em quem percepciona. (Qualquer pessoa que
tenha passado há pouco tempo por um campo recentemente adubado com estrume de
cavalo pode sentir-se na disposição de duvidar disto.)
Que há-de
fazer-se ao certo com atributos como a Extrema Maldade, que parece
simultaneamente estar espalhada e ser objectiva, ninguém sabe: mas ele defendia
que o Feio, tal como o Belo, são relativos, o que significa que ainda podemos
ter esperança.
Locke pensava
também que não tínhamos Ideias Inatas (sendo assim, a mente de um recém-nascido
seria uma tabula
rasa, uma ardósia limpinha: tal como muitas mentes de
adultos, a julgar pelas aparências) e que todo o nosso conhecimento do mundo
exterior ou foi directamente derivado do mundo exterior, ou indirectamente
extrapolado a partir dele. Isto deu-lhe alguns problemas para conseguir dar
conta de conceitos altamente abstractos, como o Número, o Infinito e a Cantina
Universitária. Locke defendeu ideias interessantes sobre a Identidade Pessoal —
como me distingo das outras mentes? Qual é o Conteúdo da Continuidade da minha
Personalidade? Serei eu a mesma Pessoa que casou com a minha mulher à cinco
anos? Se sou, ainda estou a tempo de fazer alguma coisa? etc. —, sustentando
que nem todos os Homens eram Pessoas, pois para se ser uma Pessoa exige-se um
certo nível de autoconsciência, e que nem todas as Pessoas eram Homens. A razão
pela qual ele acreditava nesta última ideia devia-se unicamente à sua crédula
aceitação de uma história de um viajante latino-americano que afirmava ter
conhecido no Rio de Janeiro uma arara inteligente que falava português.
George
Berkeley (1685-1753),
apesar das desvantagens de ser simultaneamente irlandês e bispo, era mais
radical. Defendia que as coisas só existiam se fossem percepcionadas (“Esse est
percipi”: não se esqueça desta), e a razão pela qual ele acreditava nesta ideia
extraordinária, que ao que parece ele pensava ser no entanto simples senso
comum, é que era impossível pensar numa coisa impercepcionada, pois no momento
em que tentamos pensar nela como coisa impercepcionada já estamos, por pensar
nela, a percepcioná-la.
A filosofia de
Berkeley esteve fortemente em voga, e teve a virtude de irritar imenso o Dr.
Johnson, que afirmou tê-lo refutado ao dar um pontapé numa pedra — uma forma
particularmente pouco filosófica de refutação que falhou completamente o que
Berkeley tinha em vista. As pessoas que defendem estas ideias chamam-se idealistas (ver
Glossário). Tal como a maior parte das coisas em filosofia, os idealistas são
mais ou menos lunáticos; G. E. Moore comentou uma vez que os idealistas só
acreditam que os comboios têm rodas quando estão nas estações, uma vez que não
as podem ver quando viajam. Segue-se também, o que é muito interessante, que as
pessoas não têm corpos a não ser quando estão nuas, um facto que, a
verificar-se, tornaria completamente inútil grande parte da especulação
quotidiana.
O sucessor
natural deste género de ideias é uma forma de cepticismo: e é aqui que entra David Hume (1711-76).
Hume publicou o seu primeiro livro, o Treatise of Human Nature,
em 1739, e ficou um bocado ofendido porque ninguém lhe ligou nenhuma. Sem se
deixar abater, no entanto, limitou-se a reescrevê-lo e a publicá-lo com outro
título (Enquiry
Into Human Understanding), e as pessoas
deram-lhe imediatamente importância e atenção.
A perspectiva
geral é que a Enquiry é
muito inferior ao Treatise: o
especialista instantâneo pode tentar opor-se a esta perspectiva (a Enquiry tem
pelo menos a virtude de ser muito mais pequena). Entre as coisas que é útil
saber sobre Hume contam-se o facto de ele ter oferecido um tratamento original
das causas, de acordo com o qual as causas e os efeitos são unicamente os nomes
que damos aos acontecimentos ou itens que foram repetidamente observados
juntos: a “Conjunção Constante”. Tente notar que, na Enquiry,
as três formulações de Hume deste princípio não são equivalentes: uma faz das
causas condições necessárias dos
seus efeitos; uma segunda fá-las condições suficientes;
e a terceira parece ser ambígua. E o leitor pode comentar que este princípio
não consegue distinguir as causas dos efeitos colaterais. Hume pensava também
que o livre-arbítrio e o Determinismo podiam ser compatíveis: duvide disto
delicadamente.
Entretanto, de
volta ao continente, temos de dar conta de indivíduos como Espinosa (1634-77),
um polidor de lentes de Amesterdão. Foi muito admirado (mas não, aparentemente,
pelos seus contemporâneos, que primeiro o excomungaram publicamente, tendo
depois tentado assassiná-lo, quando isso não deu resultado) pelo seu Sistema
Ético, que pôs de pé como um conjunto de deduções formais em geometria. Não é
surpreendente, devido ao seu método, que ele tivesse sido um forte
Determinista, tendo acreditado ainda numa Necessidade Lógica inabalável. A
melhor aproximação a Espinosa é equilibrar uma certa admiração pelo homem, com
um leve sentido de desapontamento por ter usado um sistema tão impróprio para
um tema como a ética. A ética, pode dizer-se sentenciosamente (como na
realidade o fez Aristóteles), não é apropriada para ser exibida num sistema
formal axiomático.
Leibniz (1646-1716) é
popularmente conhecido através da caricatura de Pangloss, noCândido de
Voltaire, o parvo optimista que pensa que estamos no melhor dos mundos
possíveis, o que é um completo disparate. Contudo, Leibniz só escreveu coisas
desse género para reconfortar os monarcas. Podia pensar-se que eles já tinham
conforto suficiente, mas não. Leibniz escreveu também muito sobre assuntos
Lógicos e Metafísicos, mas estas especulações não foram publicadas durante a
sua vida, porque não eram muito reconfortantes para os monarcas. No caso
improvável de este nome vir a lume, reflicta tristemente na diferença entre a
qualidade do pensamento privado de Leibniz, e a pobreza das suas afirmações
públicas.
O espaço não nos
permite dizer muito sobre os filósofos franceses do século XVIII, cujas figuras
de proa foram Voltaire,
Rousseau e Diderot.
Eles são notáveis por terem sido todos presos ou exilados, ou ambas as coisas.
Está cada vez mais na moda exaltar a originalidade, o instinto, a humanidade e
a excelente prosa erótica de Diderot, desprezando os outros, acrescendo ainda
que vale a pena cultivá-lo mais que não seja porque pouco do que ele escreveu,
excluindo La
Réligieuse, está correntemente
disponível em português. Experimente introduzir na conversa La Reve de d’Alembert ou Jacques Le Fataliste —
e nunca se esqueça de mencionar que ele vivia da escrita de textos porno.
O Marquês de Sade é
um bom investimento, parcialmente por ser um exemplo de um aristocrata maluco
com um comportamento extravagantemente desviante, mas também devido ao seu tipo
particularmente louco de filosofia do estado de natureza: o seu mote poderia
ter sido qualquer coisa como “se sabe bem, não hesites”. Sabia bem, ele não
hesitou e acabou preso por causa disso. Pode mencionar a Philosophie dans le Boudoir,
uma mistura extraordinária de filosofia política, moral e sócio-biológica com
muito sexo sadomasoquista imaginativamente coreografado. Pode perguntar-se
suspeitosamente se a sua filosofia terá sido levada suficientemente a sério (na
verdade foi: mas não precisa de o mencionar).
O que nos conduz
aos alemães do século XIX. O nosso conselho é este: evite-os a todo o custo.
Tudo o que precisa de saber do seu precursor, Kant,
pode encontrar-se noutra secção (ver Ética). Tudo o que todas as pessoas sabem
sobre Hegel pode
escrever-se num postal ilustrado, e mesmo assim seria ininteligível. Ele
possuía, de forma muito avançada, esse talento comum aos advogados, entusiastas
de computadores e filósofos alemães, que consiste em tornar o basicamente
simples fantasticamente complexo.
Começou por usar
a palavra “dialéctica” para referir as inter-relações das forças históricas
opostas, sendo assim importante para a pré-história do marxismo. Para além
disso, a terminologia filosófica alemã pode impressionar bastante, quando usada
convenientemente (v. glossário). O mesmo se pode dizer, mais ou menos, deSchopenhauer.
Nietzsche (1844-1900) era
um excêntrico, sendo por isso o assunto ideal para asvernissages.
As opiniões contemporâneas têm tendência para o classificar juntamente com
Wagner como um proto-fascista; ele era sem dúvida alguma anti-semita, mas na
Prússia do século XIX toda a gente o era. Ele achava que Deus estava morto, ou
pelos menos de férias, e odiava fanaticamente as mulheres, apesar de ser
duvidoso se ele chegou realmente a conhecer alguma.
Avançou também a
doutrina do Eterno Retorno, de acordo com o qual tudo acontece repetidamente,
uma e outra vez, exactamente da mesma maneira. Ele achava que isto era
reconfortante, mas na verdade condena-nos a uma eternidade de um tédio
repetitivo, ou, alternativamente, se cada retorno for precisamente igual
a todos os outros de maneira a que nenhum contenha memórias de nenhum outro,
não faz qualquer diferença. Nietzsche ficou definitivamente louco em 1888
(algumas pessoas diriam que já estava louco há muito mais tempo) e começou a
escrever livros com capítulos intitulados Por Que Sou Tão Esperto,
ePor Que Escrevo
Livros Tão Bons.
Entre os não
alemães do século XIX, deve mencionar Kierkegaard,
mais que não seja para mostrar que sabe pronunciar o nome: “Quírquegôr”.
O filósofo
francês mais notável deste período foi Henri Bergson.
Era um Vitalista, acreditando portanto que o que distinguia a matéria animada
da inanimada era a presença na primeira de um misterioso Élan Vital,
uma força misteriosa e indefinível que por alguma razão desaparece do corpo
humano na adolescência. Conseguiu também, o que é notável, escrever um longo
livro sobre o riso que não contém uma única boa piada.
O que nos conduz
aos americanos.
A contribuição
originalmente americana para a filosofia foi o pragmatismo, que não é, como na
política, uma designação alternativa para uma rejeição esfarrapada e indulgente
de quaisquer princípios, mas antes a crença de que a verdade e a falsidade não
são absolutas mas sim uma questão de convenção, ou que, como alguns filósofos
modernos gostam de dizer, “estão em aberto.” Pensando melhor, talvez o
pragmatismo tenha afinal qualquer coisa a ver com a política. Esta ideia foi
defendida por William
James e John Dewey.
Se citar estes nomes, não se esqueça que James era irmão do romancista Henry
James.
Isto conduz-nos
ao fim da secção histórica desta exposição: os filósofos do século XX serão
tratados numa outra secção (e com um bocado mais de cuidado, uma vez que muitos
deles ainda estão vivos, podendo portanto vir a processar-me).
As mortes dos
filósofos
Acabámos
portanto a vida dos filósofos. Segundo os epicuristas, a morte nada é para nós
— mas apesar da opinião deles, incluímos a seguinte lista de mortes filosóficas
bizarras, para efeitos de completude.
Há duas
tradições no que respeita à morte de Empédocles.
De acordo com uma delas, ele morreu de uma perna partida; mas a outra defende
que ele saltou para a cratera do Monte Etna para provar assim que era um deus.
Não se sabe como poderia isto constituir tal prova.
Heraclito,
contudo, contraiu hidropisia em resultado de viver de erva e de outras plantas
numa encosta de uma montanha, numa veneta misantrópica. Ao ser informado pelos
médicos que o seu estado não tinha cura, tomou o tratamento a seu cargo,
obrigando-se a ser coberto da cabeça aos pés com estrume, sendo depois deixado
na rua (ou talvez tivesse acontecido apenas que ninguém o queria em casa).
Segundo o historiador Diógenes Laércio, “ele não conseguiu tirar o estrume, e,
estando assim irreconhecível, foi devorado pelos cães”. Talvez os cães não o
tivessem devorado se soubessem quem era.
Nunca mencione a
morte de Sócrates com
cicuta numa cela ateniense; mas se tiver a infelicidade de alguém lho
mencionar, tente fazer notar que a descrição da sua morte noFédon de Platão é
completamente inconsistente com os efeitos conhecidos da cicuta: por isso,
alguém estava a mentir.
Pitágoras foi uma vítima
do seu próprio vegetarianismo extremo. Ao ser perseguido por vários clientes
insatisfeitos, chegou a um campo de feijão, e, para não o pisar, ficou onde
estava, acabando assim por ser morto.
Crínis,
o estóico (uma
escola famosa pela sua atitude imperturbável e indiferente em relação aos
aspectos terrenos) morreu de medo com um guincho de um rato. A filosofia
estóica nunca conseguiu recuperar completamente deste revés.
Crisipo,
o estóico, por outro lado,
morreu a rir de uma das suas terríveis anedotas. Um macaco de uma velha, assim
reza a história, comeu uma vez uma grande quantidade dos figos de Crisipo, após
o que este lhe ofereceu o seu odre, dizendo “É melhor ele dar um golo para
acompanhar os figos”, após o que desatou às gargalhadas. Depois morreu. Com um
sentido de humor assim, não temos de nos sentir culpados se pensarmos que foi
uma sorte nenhum dos seus 700 livros ter sobrevivido.
Diógenes terá morrido de
uma das seguintes três maneiras:
1. Porque
não se deu ao trabalho de respirar.
2. Devido
a uma grave indigestão em resultado de comer polvo cru.
3. Por
ter sido mordido no pé ao dar polvo cru aos seus cães.
Depois do
período antigo a qualidade das mortes filosóficas decaiu consideravelmente,
apesar de valer talvez a pena registar que Tomás de Aquino morreu
na retrete, tal como já tinha acontecido a Epicuro. Francis Bacon morreu
em resultado de uma pneumonia que apanhou quando tentava congelar uma galinha
na neve, em Hampstead Heath. É talvez o único homem que morreu em resultado de
uma investigação relacionada com a comida, e não por a ter efectivamente
comido.
Finalmente, Descartes teve
a pouca sorte de morrer por se levantar demasiado cedo. Atraído pela corte da
Rainha Cristina da Suécia, descobriu para seu horror que ela queria ter
explicações diárias e que a única hora que tinha livre era às cinco da manhã. O
choque matou-o.
As questões
básicas da filosofia
A sua primeira
apreciação da Filosofia tem de incluir a Ontologia,
que é o estudo sobre O Que Há, e a Epistemologia,
que é o estudo de como chegamos a saber disso. Estas palavras podem ser usadas
de várias maneiras; o filósofo instantâneo em princípio de carreira deve
cingir-se a algumas regras básicas para evitar meter-se em trabalhos; os mais
avançados podem fazer as suas próprias regras.
A Epistemologia
surge muitas vezes ligada aos nomes dos filósofos, tal como “a epistemologia de
Platão” ou “a epistemologia de Kant”, apesar de devermos ter sempre muito
cuidado em relação a Kant,
ou, na verdade, em relação a qualquer outro filósofo alemão.
A Ontologia é
menos frequentemente atribuída a filósofos individuais, por isso não se
arrisque, a não ser que tenha a certeza que a pessoa com quem está a falar é
mais ignorante do que você. Em filosofia, esta é geralmente uma suposição
segura, mas tenha cuidado: os erros acontecem, e podem sair bastante caros. As
ontologias, contudo, podem ser mais ou menos ricas: em termos simples, quanto
mais rica for uma ontologia, mais coisas se defende que existem.
Quine (Willard van
Orman Quine: chame-lhe “Quine”, ou, caso se sinta particularmente à vontade,
“van Quine”) observou uma vez que todas as questões importantes da filosofia
são regularmente formuladas por crianças de quatro anos. São elas:
1. “Que
há ali?” (ontologia)
2. “Como
é que sabes?” (epistemologia)
3. “Por
que hei-de fazer isso?” (que pode ser interpretada como uma questão da ética)
Mas as crianças
não se aventuram na Metafísica (q.v.), o que é sem dúvida sensato da parte
delas. No entanto, a pergunta juvenil mais comum e irritante de todas,
“Porquê?”, é a Questão Básica da Filosofia.
Níveis e
Metaníveis
“Meta” é uma
palavra, ou melhor, um prefixo, absolutamente essencial para o especialista
instantâneo ambicioso. O seu uso teve origem na invenção da Metafísica por
Aristóteles. O significado literal de “meta” em grego é “com” ou “depois”, e a
“Metafísica” de Aristóteles era apenas aquelas coisas que vinham depois da
“Física”. Pensa-se por vezes que se chamava assim a essas coisas por conterem
verdades de um nível mais profundo, fundamental e recôndito do que as da
“Física”. Mas isto é completamente falso. A verdade é que na primeira edição
canónica de Aristóteles (feita por um tal Andronico de Rodes), os volumes da Metafísica vinham depois
dos volumes da Física.
Como resultado desse incidente histórico, combinado com o facto de ninguém ser
capaz de apresentar um nome alternativo aceitável para a misturada de lógica,
teologia, epistemologia e matemática que constitui a “Metafísica” de
Aristóteles, o termo “meta” acabou por significar qualquer estudo de um nível
mais profundo do que o estudo que prefixa.
Assim, quando o
leitor faz metamatemática, e o nosso conselho é não o fazer, não estuda os
teoremas e as demonstrações da própria matemática, mas as bases para os aceitar
e a Estrutura
Formal que exemplificam. O mesmo
acontece com a metaética, que não estuda o que devemos fazer, mas antes a
natureza das teorias que nos dizem o que devemos fazer. É claro que, usada como
deve ser, a palavra “meta” é um instrumento de uma força conversacional
devastadora.
Uma metalinguagem
é uma linguagem na qual se discute a estrutura de outra linguagem, conhecida
como “linguagem objecto”. Pode tentar fazer notar que a linguagem objecto está
muitas vezes contida na metalinguagem, mas nunca vice-versa: não se preocupe
com o que isto quer dizer. Assim, as últimas frases, nas quais discutimos a
metalinguagem, são na verdade um exemplo de uma metametalinguagem; e esta última
frase... bom, já está a apanhar a ideia. Há assim a possibilidade de uma regressão ao infinito,
que é o equivalente filosófico de bater repetidamente com a cabeça numa parede.Alfred Tarski,
um lógico do período que medeia entre as duas guerras, quando todos os lógicos
pareciam ser polacos (apesar de não ser verdade, é claro, que todos os polacos
eram lógicos), defendeu mesmo que só podemos explanar (uma boa palavra) como
funciona a noção de verdade na linguagem comum se postularmos uma hierarquia
teoreticamente infinita de linguagens. As razões disto são extremamente
complexas e difíceis, e só podem ser dominadas depois de anos de estudo, por
isso vale a pena referi-lo.
Facilmente
relacionado com Tarski, apesar de igualmente difícil (há quem diga mesmo
impossível) de compreender, é o filósofo americano Donald Davidson,
que começou por ser psicólogo de investigação, mas achou que isso era na
verdade demasiado fácil, tornando-se por isso filósofo. Adoptou e expandiu o
programa de Tarski, numa tentativa de fornecer à filosofia e às linguagens
naturais uma Teoria
do Significado. Pode tentar perguntar-se
delicadamente se a extensão de Davidson da semântica de Tarski é realmente
viável: mas não se deixe atolar no tema por nada deste mundo.
Com alguma
prática, pode facilmente criar as suas próprias metadisciplinas, e até mesmo
mais do que isso: G. E.
L. Owen costumava referir-se ao seu
“metadiário”, que era o pedacinho de papel onde ele apontava onde tinha deixado
o diário. Não há dúvida, contudo, que de todas as “metas” legítimas, a
metafísica é a maior.
Metafísica
A metafísica
trata do que realmente há
(e não do que meramente há, que é o tema, claro, da ontologia), aquilo a que as
pessoas tendem distraidamente a referir como a Estrutura Fundamental do mundo.
Dito assim, soa a física contemporânea das partículas, apesar de não ser tão
obviamente atomista, e há na verdade um sentido segundo o qual a metafísica
tradicional foi substituída pela ciência moderna. A metafísica é difícil; se os
Positivistas tiverem razão, é impossível. É de facto cada vez mais comum chegar
ao fim de uma licenciatura em Filosofia sem chegar a ter a mínima ideia da sua
natureza. O leitor, como bom especialista instantâneo, só precisa de ter a mais
vaga das noções — mas é importante, como sempre, ter ideias firmes.
A questão de
saber se Deus existe, ou qual a natureza da Substância, ou a estrutura das
conexões causais, ou se a Carris existe ao Domingo — pode dizer-se de todas
estas questões que são em grande parte metafísicas, o que é o mesmo que dizer,
entre outras coisas, que não há respostas claras para elas. Por isto é que os Positivistas Lógicos,
um grupo de filósofos vienenses com nomes absurdos do período que medeia entre
as duas guerras, não gostavam da metafísica.
Quando falar, ou
(o que é muito mais seguro) quando mencionar a metafísica, é melhor adoptar uma
de duas estratégias. Pode recusar pura e simplesmente a existência de tal
assunto (resulta melhor com um sorriso paternalista), caso em que os Positivistas vêm
mesmo a calhar; ou, alternativamente, pode tentar atacar o tema produzindo os
seus comentários com o ar de quem está a penetrar num mistério inefável. O
primeiro Wittgenstein (q.v.) é ideal para a primeira estratégia; o segundo dá
para a última. Wittgenstein é sempre um bom investimento pela excelente razão
de que, apesar de quase toda a gente ter ouvido falar dele, quase ninguém
chegou a lê-lo, e ainda menos pessoas podem afirmar convictamente que o
compreenderam.
Com os
Positivistas, o melhor material vem do seu Princípio da Verificabilidade, que afirma
que só sabemos o significado de uma frase se soubermos o que tornaria tal frase
verdadeira. Se não houver qualquer método para verificar a sua verdade, pelo
menos em princípio, a frase não fará sentido. Esta estratégia tem o efeito
devastador, e nada desagradável, de tornar quase toda a metafísica tradicional,
assim como a maior parte do que dizem os economistas e os padres portugueses,
literalmente sem sentido.
Ética
Um dos grandes
prazeres da vida dos filósofos é poder dizer a toda a gente (e não apenas às
crianças e aos cães) o que devem fazer. A ética é isto. Em geral, podemos
afirmar, e afirme sempre seja o que for em geral, que há basicamente dois tipos
de Teoria Ética (o Comunitarianismo e a chamada Ética da Assistência,
recentemente em voga, representam na verdade pouco mais do que afirmar que é
simpático — e feminista, e não paternalista, etc. — ser simpático com as
pessoas: isto só dificilmente pode qualificar-se como uma teoria).
O leitor pode
ser um Consequencialista ou
um Deontologista.
O primeiro sustenta que a qualidade moral de uma acção é unicamente determinada
pelos seus resultados. O segundo, por outro lado, sustenta que há coisas que
devemos fazer, e outras que não devemos fazer, independentemente dos resultados
reais ou prováveis da acção. A versão mais famosa do consequencialismo é o
Utilitarismo, cuja formulação clássica se deve aBentham e Mill,
surgida no século passado, mas que ainda mexe. A forma clássica da ética
Utilitarista sustenta que se deve agir de maneira a produzir o maior bem para o
maior número. Como definir esse bem, e por quem, que fazer no caso de bens
incompatíveis, e a questão de saber se o número total das pessoas envolvidas
deve ou não contar, e se contar, como é que conta, são apenas alguns dos
problemas iniciais na interpretação da doutrina.
O problema
principal do Utilitarismo, ou, na verdade, de qualquer das suas variedades (há
vários sabores), consiste em conduzir, em alguns casos problemáticos, a
resultados “contra-intuitivos”. Experimente o seguinte com uma pessoa que
afirma ser Utilitarista. Suponha-se que temos três pessoas, cada uma das quais
sofre de uma doença terminal num dos seus órgãos vitais, ao passo que o leitor,
por outro lado, é um animal escandalosamente saudável. Como Utilitarista, deveria
considerar seriamente a ideia de ser arrastado para o hospital, para ser
aberto, de maneira a transplantar os seus órgãos saudáveis para os corpos dos
seus infelizes amigos, assegurando assim um ganho inequívoco de duas vidas. Os
Anti-utilitaristas sentem, talvez plausivelmente, que o leitor poderia não
ficar propriamente exultante com a ideia.
A vantagem do
Utilitarismo, ou pelo menos da sua ideia básica, é ser razoavelmente simples,
apesar de se objectar por vezes que se levarmos o consequencialismo a sério,
passamos todo o tempo a tentar calcular o efeito preciso de cada acção,
acabando assim por não fazer seja o que for. Em geral não é uma boa ideia
defender que isto é, em si mesmo, uma vantagem da teoria.
Os Deontologistas,
pelo contrário, levantam ainda mais problemas. A dificuldade óbvia consiste em
dizer exactamente o que são os deveres, e os direitos concomitantes. Há sobre
isto muito pouco consenso, e a coisa acaba por ir parar ao debateSubjectivismo/Objectivismo:
a moral é descoberta, como defende o objectivista, por uma faculdade peculiar,
ou é a moral apenas uma questão de costumes, criados mais ou menos
arbitrariamente, de maneira a tornar possíveis as actividades sociais, tal como
a maior parte das anti-sociais? É uma boa ideia ter uma opinião qualquer a este
respeito.
Caso se decida
pelo subjectivismo, deve ter consciência de que isso o comprometerá quase
certamente, a não ser que consiga inventar uns labirintos bastante inesperados,
com o Relativismo
Cultural, uma posição que tem os seus perigos. Um
Relativista Cultural sustenta que nenhuma sociedade tem o direito de dizer o
que está bem ou mal em qualquer outra sociedade, o que torna a vida um bocado
aborrecida, para além de tornar as relações internacionais, tal como são
correntemente praticadas pela Casa Branca, completamente impossíveis. Isto
implica que apesar de o infanticídio e a castração feminina poderem ser um
bocadinho desapropriados em Freixo de Espada à Cinta, podem ser perfeitamente
aceitáveis na Nova Guiné. Isto pode trazer-lhe sérias dificuldades,
especialmente com as feministas.
Talvez a melhor
estratégia a adoptar seja a de Dick
Hare, que comentou nunca ter conseguido perceber a
diferença entre as duas coisas — acrescentando devastadoramente que também
nunca tinha conhecido ninguém que percebesse. Este é um exemplo brilhante de
uma das técnicas mais úteis do especialista instantâneo avançado: fingir que o
claramente óbvio é de facto inescapavelmente obscuro — acontecendo apenas que
os menos dotados não conseguem detectar a sua complexidade inerente.
Wittgenstein usou este método de tempos a tempos, mas o mestre é sem dúvida
Hare, que uma vez chegou mesmo a dizer que não conseguia realmente compreender
o significado da palavra inglesa it.
Mas sejam quais
forem as suas ideias sobre a origem da moral, deve sempre tomar uma posição em
relação à teoria moral — o que nos conduz outra vez às Deontologias. Kant é o
nome a evocar para as versões clássicas desta teoria, juntamente com o seu
famoso Imperativo Categórico. Há várias formulações diferentes do Imperativo na
obra de Kant (o que é óptimo para o especialista instantâneo: a pergunta “Sim,
mas que versão do Imperativo Categórico tens em mente?” funciona às mil
maravilhas), mas a sua formulação mais usual, ainda que obscura, é a seguinte:
Age apenas de acordo com aquela máxima que possas
ao mesmo tempo querer que se torne numa lei geral.
Geralmente,
diz-se que isto quer dizer que só devemos fazer o tipo de coisas que não nos
importaríamos que toda a gente fizesse. Isto arrasta algumas dificuldades. O
leitor pode muito bem querer passar pelas brasas, mas não gostaria muito da
ideia de encontrar toda a gente na sua cama.
Os principais
defensores das deontologias hoje em dia são as igrejas e alguns grupos do
CDS-PP. Os filósofos, que são na sua maioria, pelo menos na sua vida pessoal,
um belo lote de tratantes amorais (isto é particularmente verdade em relação
aos filósofos morais), têm a tendência para pensar menos em termos de deveres
do que em termos de direitos, criando assim Teorias dos Direitos.
O leitor tem um Direito desde que haja qualquer coisa que merece, ou qualquer
coisa de que possa safar-se sem pagar.
Um princípio
importante da maior parte das Teorias dos Direitos é o da
“Universalizabilidade”, que é, por causa do seu tamanho, uma palavra excelente
para esgrimir. Significa que tanto o leitor como eu só temos um direito se
todas as outras pessoas tiverem um direito análogo. Assim, caso se fique pela
Teoria dos Direitos e caso a junte à Universalizabilidade, tem de ter muito cuidado
com os direitos que reivindica para si, não vá outro palhaço qualquer
deitar-lhe as mãos.
No entanto, os
direitos rendem muito. Para começar, quase toda a gente que pensa ter direitos
tem crenças inconsistentes sobre eles (defendendo, por exemplo, que todas as
pessoas têm direito à vida, mas também que os povos oprimidos têm o direito de
matar os tiranos), não sendo geralmente necessária muita criatividade para as
descobrir e explorar. Isto dar-lhe-á uma óptima sensação de superioridade
intelectual, deixando o seu adversário a alimentar um forte desejo, se bem que
moralmente proibido, de lhe arrancar os olhos — que é, afinal de contas, o
objectivo da coisa.
A desvantagem,
claro, é a possibilidade de o próprio leitor ser acusado de sustentar um
Conjunto Inconsistente de princípios. Se isto acontecer, deve dizer que os
princípios que caiu no erro de admitir, têm de ser qualificados; por outras
palavras, não há regra sem excepção, seja o que for que isto quer dizer. Em
certas circunstâncias especificáveis (tente a todo o custo ter de
especificá-las), certos princípios têm precedência sobre outros: o seu conjunto
principal, deverá o leitor comentar sabiamente, é hierarquizado; e poderá mesmo
notar com um ar grave que, no fundo, trata-se de sistematizar a sua teoria
moral.
Outra distinção
técnica bastante útil é a que existe entre as teorias da ética centradas na
acção e as centradas no agente. Como está certamente a ver, trata-se de saber
se o que conta realmente na moral é o tipo de coisas que fazemos, ou antes o
tipo de pessoa que somos (pois todos sabemos que os piores cancros sociais,
como os advogados, podem por vezes fazer coisas que aprovamos). É claro que
nenhuma teoria sensata é exclusivamente qualquer uma das duas coisas; e, em
geral, é seguro afirmar qualquer coisa desse género, sem ter medo de ser
forçado a dizer a exacta proporção que adoptamos de uma e de outra. Outro golpe
útil é perguntar: “Não achas que isso pressupõe uma perspectiva da moralidade
excessivamente centrada sobre os actos (ou sobre o agente, consoante o caso)?”
Como regra
geral, é aconselhável ter um conjunto de opiniões pouco ortodoxas (e
enfurecedoras), em particular sobre os Novos Problemas Morais, se é que são
realmente novos. Os NPM são dificuldades geradas por alguns avanços científicos,
tais como os bebés proveta, as mães de aluguer, as experiências com fetos e
coisas assim. A possibilidade da clonagem em alta escala é outro NPM, ainda que
potencial.
A eutanásia, que
tem sido praticada de uma maneira ou de outra desde a emergência da humanidade,
é frequentemente considerada, por alguma razão estranha, um Novo Problema
Moral. Seja adequadamente evasivo em relação a isto. Há uma distinção corrente
entre a eutanásia activa e a passiva. A primeira é matar de facto, ao passo que
a outra é apenas deixar morrer. Tente defender que esta distinção é espúria.
“Afinal de contas, o médico que recusa tratar pretende que
o paciente morra; e ele tem a possibilidade de prolongar a vida: logo, pela sua
negligência, ele é tão responsável pela morte do paciente como se lhe tivesse
dado com o cutelo do talho.” Uma variação subtil disto é sustentar que a
eutanásia passiva é na realidade mais imoral
do que o seu correlato activo, que afinal de contas pode ser realizada de
maneira humana e indolor; ao passo que com a primeira se assegura a morte
extremamente dolorosa do paciente. Este argumento é particularmente eficiente
junto dos médicos — consegue enfurecê-los, e há poucas coisas na vida tão doces
como o espectáculo de um médico a saltar de raiva.
Quanto aos
outros problemas morais, quer sejam novos, de meia-idade, ou decididamente
velhos, o nosso conselho é tocar a música consoante a ocasião. Se uma feminista
introduzir o tema do aborto, ou qualquer problema relacionado com os Direitos
dos Fetos, o leitor pode perguntar-lhe delicadamente se o Direito de Escolha da
Mulher se alarga até ao Direito de Escolher Matar. O especialista instantâneo
tem de estar preparado para isto e ter boas razões para pensar que os fetos têm
direitos; não basta neste caso ser católico — a ideia de Bentham de que a
capacidade de sofrer dor confere direitos, pode vir mesmo a calhar.
Esta é uma área
em que a criatividade argumentativa compensa. Não é isenta de riscos, mas vale
a pena. Encontre uma opinião moral qualquer, fortifique-a com os argumentos
necessários (que não têm de ser relevantes, mas
convém que sejam válidos —
veja o glossário sobre esta importante distinção) e está lançado. Ao fim de um
bocado irá provavelmente verificar que a maioria dos seus amigos estão também lançados
na discussão. Por exemplo, o leitor pode defender que o casamento é imoral.
Isto é surpreendentemente fácil e deliciosamente irritante, em especial para os
recém-casados e para os seus pais — mas os pormenores terão de ser
desenvolvidos por si. Ser especialista instantâneo é uma actividade criativa.
Lógica
Este é um ramo
importante da investigação filosófica. A lógica, enquanto estudo formal, é
diabolicamente difícil, e portanto o melhor é não lhe tocar. O especialista
instantâneo só precisa de saber que tudo estava a correr bem quando toda a
gente se entregava à Silogística Aristotélica (algumas pessoas, incluindo a
maior parte dos filósofos católicos, parecem estar convencidos que isto é ainda
o caso); mas as coisas ficaram todas de pernas para o ar com os
desenvolvimentos da lógica matemática do século passado, devidos a Gottlob Frege (um excelente
nome para mencionar, apesar de ter sido — muito mais do que Nietzsche — um
anti-semita proto-fascista), Russell e Whitehead (q.v.).
A nova lógica pode fazer muito mais coisas (em termos técnicos, pode lidar com
a lógica das relações; as relações entre as coisas, quero eu dizer, e não os
processos mentais do seu sogro), mas é muito mais difícil.
As coisas
tornaram-se ainda piores com o desenvolvimento das Lógicas Alternativas, por
vezes surpreendentemente chamadas Lógicas Desviantes. Estas lógicas aumentam o
número de valores de verdade e põem em causa a validade de certas leis lógicas
tradicionais, tais como a Lei do Terceiro Excluído, que afirma (mais ou menos)
que as coisas ou são ou não. Nunca se comprometa em circunstância alguma com
isto.
Para além da
Lógica Formal, e é claro, da metalógica, há a Lógica Filosófica.
Tal como muitas outras coisas, isto soa muito melhor com sotaque brasileiro:
experimente e verá. A Lógica Filosófica é uma área vasta e confusa, mais ou
menos como os terrenos da Expo 98, e, tal como os terrenos da Expo 98, deve ser
decididamente evitada. Pode desejar saber que um dos seus temas centrais é a
Teoria do Significado, mas duvido. Pode chegar mesmo a comentar tristemente que
nenhuma das Teorias Semânticas disponíveis parece muito satisfatória, mas não
tente jamais explicar porquê. Em geral, esta abordagem é segura, pois uma das
características obstinadas da filosofia é não haver nela coisa alguma que seja
inteiramente satisfatória.
Epistemologia
Tudo o que
precisa realmente de saber sobre a epistemologia é como se soletra a palavra.
“Mas como podemos saber que sabemos isso?” é por vezes eficiente, mas não deve
abusar. A epistemologia é hoje em dia frequentemente feita debaixo dos
auspícios de uma coisa chamada Ciência
Cognitiva, um híbrido de lógica,
linguística, psicologia e informática, que tem a ver com a criação de modelos
do raciocínio, quer humano, quer mecânico (a Inteligência Artificial, ou
melhor, a IA), usando muito as Lógicas Desviantes (o que não é surpreendente,
pelo menos no caso da linguística). É também demasiado complicado para poder
ser compreendido (a não ser, talvez, por uma Inteligência Artificial).
Filosofia da
Religião
Tal como a maior
parte das coisas na filosofia, a filosofia da religião é muito melhor como uma
actividade destrutiva do que como uma actividade construtiva. As pessoas com
ideias religiosas muito marcadas são excelentes vítimas para o bom filósofo
instantâneo, uma vez que, apesar de serem usualmente muito sensíveis e de
poderem sentir-se profundamente magoadas com o que lhes dizemos, são quase
invariavelmente demasiado educadas para o confessar.
Se não quiser
embrenhar-se na questão de saber se Deus existe, e caso exista, que pensa Ele
que anda a fazer, a melhor área para a qual deve conduzir a conversa é o
Problema do Mal: se Deus nos ama, a nós e ao mundo, por que razão somos nós, e
o mundo, tão indizivelmente grotescos?
Lactâncio forneceu uma
bela e elegante versão formal deste argumento:
Dado que o mal existe (e tendo em conta os
atributos atribuídos a Deus), então ou
1. Deus
sabe o que se passa, preocupa-se com isso, mas não pode fazer seja o que for;
ou
2. Ele
preocupar-se-ia com isso, poderia fazer alguma coisa, mas não sabe o que se
passa; ou
3. Ele
sabe o que se passa e poderia fazer qualquer coisa, mas está-se nas tintas.
Filosofia da
Ciência
Uma vez que a
filosofia é essencialmente uma meta-actividade, podem existir filosofias mais
ou menos de tudo, e a ciência não é uma excepção. Como desenvolvem os
cientistas as suas teorias? Qual é a relação entre a teoria e a experiência? Em
que consiste o método experimental? Como ganha uma teoria precedência sobre
outra sem haver aumentos súbitos de riqueza? Estas, e outras questões
semelhantes, são o domínio da Filosofia da Ciência. A Filosofia da Ciência
desenvolveu-se muito nos últimos cinquenta anos, em parte porque dá aos
filósofos a sensação, para eles nova, de que aquilo que estão a fazer tem uma
certa relevância para alguma coisa, e em parte porque é mais uma área na qual
têm o prazer de dizer às pessoas que se enganaram.
Karl
Popper (um
bom nome) foi uma figura de proa no desenrolar dos debates, com a sua ideia de
que as teorias nunca podem ser verificadas (i.e., demonstradas como
verdadeiras); só podem ser falsificadas (i.e., denunciadas como
irrevogavelmente sem esperança). A razão para isto é que nenhuns dados
empíricos poderão jamais mostrar para lá de quaisquer dúvidas que o mundo irá
continuar a comportar-se da maneira como parece ter-se comportado sempre; ao
passo que basta um só mau resultado, como por exemplo a água ferver aos doze
graus, ou um filme português bem feito, para falsificar toda uma teoria.
Isto é assim,
segundo Popper, porque as teorias científicas são feitas de generalizações
universalmente quantificadas que não admitem excepções, ou, por outras
palavras, porque consistem em frases com a forma “Toda a coisa é outra coisa qualquer”.
Segundo Popper, a ciência progride por meio de Conjecturas Ousadas (“O mundo é
feito de manteiga”), seguidas de Refutações Conclusivas (“Não pode ser: este
bocado não se consegue barrar no pão”).
O problema desta
ideia é que, em geral, quanto mais ousada for a conjectura, mais obviamente
refutável é. Várias pessoas ofereceram perspectivas diferentes: um bom nome
para invocar é o de T.
S. Kuhn, que prefere falar de Revoluções Científicas, que
envolvem o que ele chama Mudanças de Paradigma. Esta ideia é
extraordinariamente difícil de formular claramente, sendo por isso mesmo de um
valor inestimável. Significa, vagamente, que as pessoas decidem, pura e
simplesmente, parar de olhar para o mundo de uma maneira e começam a olhar para
ele de outra maneira. Mas mais devastador para Popper foi Hilary Putnam,
que comentou que se Popper tivesse razão, também nenhuma teoria seria
falsificável, uma vez que nenhuma teoria, tal como nenhum homem, é uma ilha. As
teorias envolvem sempre Hipóteses Auxiliares sobre a natureza do universo, de
maneira que, confrontado com uma Anomalia, podemos sempre escolher: ou deitamos
fora a teoria, ou uma Hipótese Auxiliar, ou até ambas, se estivermos num dia
não.
A propósito,
Putnam é talvez o filósofo americano contemporâneo mais distinto. E é muito
útil para o especialista instantâneo por causa do seu hábito encantador de
abandonar completamente as suas ideias extremamente subtis e complexas
precisamente quando os outros filósofos começam a pensar que finalmente as
conseguem compreender — mais ou menos de dez em dez anos —, conseguindo mesmo
ultrapassar o próprio Wittgenstein. O especialista instantâneo pode assim
prefixar a qualquer afirmação que fizer as palavras “como diz Putnam”, com a
certeza de que houve ou haverá um período qualquer, numa obra qualquer, em que
Putnam o terá dito ou irá dizer.
Outros nomes
bons para deitar na fervura são Imre
Lakatos, se conseguir pronunciá-lo, e Paul Feyerabend,
um anarquista metodológico assumido, que exorta os cientistas a adoptar como
mote da sua investigação a máxima “vale tudo”. Para além de ter trazido Cole
Porter para a filosofia, uma coisa que mais ninguém tinha conseguido fazer,
Feyerabend era um excêntrico notável: costumava acabar as suas aulas na School
of Economics de Londres saltando de uma janela (felizmente no rés-do-chão) para
a sua potente moto, afastando-se depois ruidosamente.
A cena
contemporânea: Os filósofos anglo-saxónicos
Os filósofos
anglo-saxónicos (incluindo, é claro, os finlandeses), têm tendência para negar
que fazem parte de uma qualquer escola ou corrente: na verdade, costumam
encarar o sectarismo filosófico como um perigoso hábito continental, devendo
por isso ser desprezado. No entanto, têm realmente tendência para se juntar,
como se precisassem de apoio, acreditando talvez, possivelmente com razão, que
precisam dele. São invariavelmente classificados em bloco como “Filósofos
Analíticos”, mesmo que nunca tenham na verdade analisado seja o que for.
Antes da
Primeira Guerra Mundial, as duas personalidades mais importantes da filosofia
britânica eram provavelmente (lembre-se, nunca se comprometa, se o puder
evitar) Bertrand
Russell e G. E. Moore.
Russell conseguiu a sua reputação com a publicação de Principia Mathematica,
cujo co-autor foi A. N.
Whitehead, e que por isso é por vezes
conhecida como “Russell e Whitehead”, à maneira dos grandes estudos sobre sexo.
Esta obra é uma exposição extremamente pormenorizada da lógica simbólica
formal, e como tal não é uma leitura recomendável para viagens longas de comboio;
na verdade, não é uma leitura recomendável seja em que situação for.
Moore, para não
ser ultrapassado no que respeita a títulos latinos sonoros e portentosos,
reagiu com o seu influente tratado Principia
Ethica, no qual sustentava que a palavra “bem” é
indefinível, apesar de ser o nome de uma qualidade não natural. Um conceito de
Moore muito discutido neste contexto é o da “Falácia Naturalista”. No entanto,
é muito difícil dizer exactamente o que é isto: a ideia de Moore parece ser que
não podemos definir termos éticos em termos de termos não éticos, e que não se
podem deduzir proposições éticas de proposições factuais, não éticas.
Esta confusão
faz com que a Falácia Naturalista seja extremamente útil, especialmente se o
leitor seguir os passos do próprio Moore, e nunca argumentar a favor da ideia
de que isto é uma falácia, mas se limitar ao invés a asseverar que é. O leitor
pode complementar isto de maneira muito útil, numa conversa de café, com outro
conceito de Moore, o Argumento da Questão em Aberto. Este argumento defende
que, seja o que for factualmente o caso em relação a um objecto ou propriedade
particular (que as pessoas gostam dele, por exemplo; ou que sabe a queijo),
continua a ser uma Questão em Aberto se isso é um bem ou não. Moore era famoso
pela sua robusta aproximação à filosofia, não admitindo disparates sem sentido;
uma vez informou uma turma atónita que nada era mais certo do que o facto de
ter duas mãos. Não se sabe claramente quem tinha estado disposto a duvidar
disso.
Quanto a
Russell, as outras grandes contribuições suas para a filosofia (para além das
outras actividades suas, que incluíam o pacifismo e a promiscuidade, podendo
assim ser definidos pelo slogan dos
anos sessenta “Make Love Not War”, o que Russell fez até uma idade
invejavelmente avançada) incluem a descoberta do Paradoxo de Russell, com o
qual pôs fim a uma coisa depreciativamente conhecida por “teoria ingénua dos
conjuntos”, assim como a Teoria das Descrições. A Teoria das Descrições é uma
tentativa de analisar a lógica da linguagem natural (não se esqueça desta
expressão) e em particular o problema dos Nomes Próprios. Este último, tal como
a maioria dos problemas filosóficos, não é um problema para mais ninguém a não
ser para os filósofos. Russell usou como exemplos algumas frases regularmente
usadas pelos ingleses, como “O actual Rei de França é careca” ou “Scott
escreveu o Waverley”.
Esta última, segundo Russell, significa na realidade que “alguém escreveu o Waverley;
só uma pessoa escreveu o Waverley;
e se alguém escreveu oWaverley,
essa pessoa era Scott”. Com isto uma pessoa pode sentir-se tentada a inferir
que os filósofos sabem tanto acerca da linguagem comum como sabem acerca das
pessoas comuns (v. introdução).
A atitude
correcta em relação à History
of Western Philosophy de Russell é
elogiar o seu estilo, lucidez e humor, ao mesmo tempo que se manifestam algumas
reservas quanto ao seu conteúdo: “Uma leitura maravilhosa, claro, mas não
pensas que é um pouco tendenciosa?” A expressão “não pensas” faz parte de uma
pergunta de retórica e nunca deve ser tomada literalmente.
Talvez o mais
influente encontro filosófico ocorrido antes da Primeira Guerra Mundial tenha
sido o que ocorreu em 1912, quando (o Jovem) Wittgenstein se
encontrou com Russell em Cambridge e lhe perguntou (a Russell) se ele (o Jovem
Wittgenstein) era um completo idiota; é que, se acaso o fosse, iria para piloto
de aviões. Russell disse-lhe que escrevesse qualquer coisa; o Jovem
Wittgenstein assim fez, Russell leu uma linha e disse-lhe que ele era demasiado
esperto para ser um aviador.
A guerra
interrompeu a carreira do Jovem Wittgenstein em Cambridge, mas regressou depois
disso já como Primeiro Wittgenstein, passando a dominar a vida filosófica de
Cambridge, e não só, durante os trinta anos seguintes. Sendo uma personagem
encantadoramente excêntrica, apaixonado por filmes medonhos, vivia numa cadeira
de espaldar debaixo de um aquecedor eléctrico, num quarto do Trinity College,
que fora isso estava completamente vazio. Publicou um único livro em toda a sua
vida, o Tractatus
Logico-Philosophicus, no qual trata
de problemas como a estrutura da proposição, a questão de saber como tem a linguagem
significado, assim como as noções de verdade e de falsidade.
As suas
investigações fizeram-no acreditar que só as proposições construídas através
das conectivas lógicas a partir de proposições atómicas tinham sentido. Daí o
nome “Atomismo Lógico” que designa este tipo de filosofia. Tudo o resto não
tinha literalmente sentido, o que nos livra da metafísica, juntamente com
muitas outras coisas. Na verdade, tem a consequência infeliz de fazer com que
quase todo o Tractatus seja
ele próprio destituído de sentido, se o que afirma for verdade.
O Primeiro
Wittgenstein reconhecia isto, dizendo que só se de alguma maneira já
soubéssemos o que ele queria dizer poderíamos compreender o seu livro; e que a
sua filosofia era como uma escada que deitamos fora depois de a subirmos.
Muitas pessoas interpretaram a metáfora literalmente. A última frase do livro
resume a ideia: “Do que um homem não pode falar, tem um homem de fazer
silêncio”; ou, para o especialista instantâneo realmente ambicioso: “Wovon man
nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen.”
Depois disso,
Wittgenstein deixou a filosofia por uns tempos, convencido de que já tinha dito
tudo. Contudo, acabou mais tarde por mudar de ideias: este é o ponto crucial em
que o Primeiro Wittgenstein se torna no Segundo Wittgenstein, e, enquanto tal,
a segunda figura (depois do Primeiro Wittgenstein) verdadeiramente influente da
filosofia do período entre as duas guerras.
No Tractatus,
Wittgenstein pensava que as proposições tinham significado porque eram como
imagens dos factos que referem. Mas o Segundo Wittgenstein discordava disto,
assimilando ao invés o significado ao uso, concedendo ainda que a linguagem
comum era mais complexa (e mais rica em significado) do que o Primeiro
Wittgenstein pensava. O resultado póstumo disto é a sua obra Investigações Filosóficas.
Morreu em 1951; desde essa altura, têm aparecido regularmente, em publicação
póstuma, apontamentos, registos de aulas, listas de compras, notas que escrevia
à senhoria, etc., dando a Wittgenstein a distinção extraordinária de ter
escrito apenas um livro em toda a sua vida, mas mais ou menos quinze depois de
morto. E tudo leva a crer que a sua actividade editorial póstuma está para
durar.
Depois da
guerra, a filosofia inglesa centrou-se em Oxford, apesar de Cambridge discordar
desta ideia, quando uma misteriosa entidade conhecida por “Filosofia de
Oxford”, ou, ironicamente, “filosofia linguística”, veio à existência. Os seus
principais expoentes eram Gilbert Ryle,
um fumador de cachimbo de renome, e J.
L. Austin, outro fumador de cachimbo de
renome. Austin era conhecido pelas suas “manhãs de Sábado”, nas quais um grupo
de filósofos distintos, que se distinguiam sobretudo por fumarem todos
cachimbo, se reuniam para discutirem as subtis nuances da
linguagem comum, ou para discutirem minhoquices, conforme a sua perspectiva.
Estas discussões tinham tendência para acabar por distinguir seis significados
diferentes de expressões como “carrinho de mão”, não sendo por isso
surpreendente que provocasse raiva e escárnio entre os que eram excluídos por
qualquer razão, como não serem suficientemente espertos, ou não fumarem
cachimbo.
Contudo,
aceita-se geralmente, excepto como é natural em Oxford, que a partir da guerra
o centro de gravidade da filosofia anglo-saxónica se mudou para a América do
Norte (até mesmo o bocadinho finlandês), um estado de coisas que pode ter
talvez alguma relação com o facto de as universidades americanas pagarem
enormes salários. O Grande Patriarca da filosofia americana é Willard van Orman Quine (“Van”
para os amigos), conhecido por sustentar que a distinção de Kant entre o
analítico e o sintético (v. glossário) é, na melhor das hipóteses, vaga e, na
pior, inútil, tal como por ter chamado a um livro seu From a Logical Point of View por
causa de uma música popular das Caraíbas de Harry Belafonte.
Os seus
sucessores incluem Saul
Kripke, no campo da lógica filosófica
e no estudo da Modalidade (não vale a pena saber o que é isto), cuja obra mais
importante, Naming
and Necessity — sobre Nomes
Próprios, Sentido e Referência, Mundos Possíveis, e muitos outros termos que
encontrará no glossário — vale a pena mencionar de passagem como a obra
filosófica provavelmente mais significativa escrita depois da Guerra.
O leitor
reparará também que o Nome Absurdo é uma ajuda tão grande na filosofia
americana como o foi para os Positivistas de Viena — muitos dos quais foram
parar à América, talvez por isso mesmo —, impressão essa confirmada por Alvin Plantinga,
um lógico modal e um filósofo da religião (uma combinação ligeiramente
instável), e Robert
Nozick, um anarquista político da direita radical que
pensa que se deve privatizar tudo.
Um filósofo
americano importante é John
Rawls, cuja obra magna, Uma Teoria da Justiça,
tem sido muito vendida. Basicamente, Rawls defende que a justiça pode ser
analisada em dois princípios:
1. Que
toda a gente deve ter a mesma liberdade, e, dado esse constrangimento, tanta
liberdade quanta for possível;
2. Que
as desigualdades entre as pessoas só se justificam se os que estão pior
estiverem na realidade melhor do que estariam num outro sistema qualquer mais
igualitário.
Tenha cuidado
com isto: não é tão idiota como parece à primeira vista, apesar de ser verdade
que permite desigualdades extremas, o que pode ser usado contra ele — a não
ser, é claro, que o leitor calhe a ficar beneficiado. Este tipo de coisa é
conhecido como uma Teoria da Justiça Distributiva, e pode em algumas
circunstâncias vir mesmo a jeito.
Os continentais
Há duas
variedades principais de continentais: os franceses e os alemães.
O movimento
filosófico continental mais importante nos últimos tempos foi talvez o existencialismo,
que teve partidários franceses e alemães. O expoente francês principal foi Sartre,
um erudito invejável que combinava a filosofia com a agitação política
marxista, a autoria de romances e de peças de teatro, e uma capacidade
prodigiosa para o álcool. Foi ele que introduziu o slogan “A
existência precede a essência”, que quer dizer, mais ou menos, que devemos
estar menos preocupados com o tipo de
coisas que as coisas são, do que com o facto de serem.
Os
existencialistas resistem a ser classificados, insistindo geralmente na
autonomia do individual: logo, têm tendência para ficar um bocado irritados só
pelo facto de lhes chamarmos existencialistas. O existencialismo, ou pelo menos
a sua linha francesa, tem conexões literárias muito fortes, sendo Camus e o
próprio Sartre os seus maiores expoentes. A literatura tende a concentrar-se no
conceito de acte
gratuit (refira-a em francês, claro),
que constitui supostamente a essência da afirmação existencialista da sua
própria existência. Mas para o resto das pessoas parece-se mais com um caso de
crueldade caprichosa. Uma vez que o acte
gratuit, pelo menos na literatura, tem tendência para ter
uma natureza violenta, ou, no mínimo dos mínimos, anti-social, viver com um
existencialista (pelo menos com um existencialista francês) deve ser de arrasar
com os nervos.
Os alemães, dos
quais vale a pena referir Martin
Heidegger e Karl Jaspers,
são um grupo muito diferente. Não têm pretensões literárias, felizmente, e
tendem a ser mais explícitos quanto às suas influências, referindo filósofos
como Kierkegaard e Edmund Husserl,
um filósofo alemão dos princípios do século que desenvolveu de uma maneira
sistemática e tipicamente alemã o conceito de Fenomenologia, i.e., a tentativa
de penetrar, por entre as aparências superficiais das coisas, na realidade
básica da nossa apreensão consciente delas (ou coisa assim).
O
existencialismo não arrasta consigo qualquer compromisso religioso para
qualquer dos lados: Sartre era ateu, Jaspers cristão; Heidegger era nazi, mas
isto é em geral convenientemente esquecido. Um ponto interessante a notar é que
os livros de filosofia escritos em inglês têm em geral de ter três elementos
nos seus títulos, sendo Language,
Truth and Logic (Linguagem,
Verdade e Lógica) Truth,
Probability and Paradox (Verdade, Probabilidade e Paradoxo) e Mind, Language and Reality (Mente,
Linguagem e Realidade)alguns exemplos
proeminentes, ao passo que o número de elementos exigidos para os títulos
existencialistas parece ser de apenas dois, como em Sein und Zeit (Ser e Tempo) de
Heidegger, e em L’Etre
e le Neant (O Ser e o Nada) de
Sartre. Os filósofos analíticos anglo-saxónicos têm tendência para desprezar o
existencialismo por não ser suficientemente analítico; os existencialistas têm
tendência para desprezar os filósofos analíticos anglo-saxónicos por não serem
suficientemente.
Já falámos o
suficiente sobre o Positivismo
Lógico e, em qualquer caso, os seus
expoentes estão na realidade mais próximos da tradição anglo-saxónica. Nos anos
trinta, muitos deles fugiram da Europa e de Hitler em direcção à América, onde Rudolph Carnap eCarl Hempel foram
particularmente influentes desde a guerra, especialmente na filosofia da
ciência. Entre os ingleses, o mais importante dos Positivistas Lógicos (que, a
propósito, incluem o Primeiro, mas não o Segundo, Wittgenstein) foi A. J. Ayer (refira-se
sempre a ele como “Freddie”), que continua a ser conhecido pela sua primeira
obra, Language,
Truth and Logic, apesar de ele
mais tarde ter acabado por pensar que estava tudo errado de uma ponta à outra,
o que deve ter sido muito humilhante. Ayer foi também muito influenciado por
Russell, inclusivamente na condução da sua extravagante vida pessoal.
Falta discutir
um grande movimento do pensamento continental: o estruturalismo e
o seu obscuro sucessor, o pós-estruturalismo,
que por sua vez parece ter-se tornado no positivamente opaco pós-modernismo.
O estruturalismo
começou originalmente com Saussure como
um método em linguística, tendo-se alastrado à antropologia com Lévi-Strauss,
e desde então nunca mais parou, pelo menos em França e nos departamentos de
literatura inglesa das universidades americanas. Quase ninguém admitirá hoje em
dia ser um estruturalista e em qualquer caso é muito difícil defini-los com
precisão. No entanto, é importante ter ideias firmes acerca deles. São quase
completamente ignorados nos departamentos de filosofia britânicos, o que
demonstra as preocupações rigorosamente analíticas da filosofia britânica, ou a
sua extraordinária insularidade — depende do lado em que o leitor estiver.
Certifique-se de que está de um lado qualquer, mas de um apenas. Uma
característica do estruturalismo e do pós-estruturalismo é a sua desconfiança
em relação às disciplinas académicas, e a sua gíria impenetrável.
Entre os seus
expoentes mais importantes incluem-se Roland Barthes (no
campo da crítica literária e das suas ramificações sociais), Michel Foucault (história,
sociologia e, por fim, sexo) e Jacques
Derrida (linguagem, crítica literária,
retórica). Este último é em muitos aspectos o mais interessante, apesar de ser
também o mais irritantemente obscuro. As opiniões variam imenso quanto ao seu
estatuto como pensador: génio ou charlatão, depende do gosto. Aborreceu em
especial os filósofos analíticos (quer dizer, os anglo-saxónicos), pelo menos
os que se deram ao trabalho de o ler, por tentar mostrar que por debaixo da
superfície cuidadosamente cultivada de rigor, lógica, análise e investigação
desapaixonada, a filosofia analítica era uma actividade altamente tendenciosa,
retórica e subjectiva.
Fê-lo empregando
um método conhecido como desconstrutivismo, que se tornou entretanto numa imensa
indústria americana. Consiste essencialmente em mostrar que qualquer obra
literária gera necessariamente dentro de si mesma contradições fatais, minando
assim o argumento que avança ostensivamente.
Note-se que de
facto o desconstrutivismo se desconstrói a si mesmo (um pouco como oTractatus de
Wittgenstein), um facto que não parece preocupar os próprios desconstrutivistas
(para grande irritação dos filósofos analíticos: esta pode ser uma técnica que
valha a pena imitar).
A grande
vantagem do pós-modernismo é que ninguém, incluindo os seus expoentes, faz
ideia do que seja. Dizer de uma coisa (ou, na verdade, seja do que for) que é
“pós-moderno” é um golpe útil muito usado pelos seus defensores principais,
incluindo Deleuze e Baudrillard.
As melhores
estratégias a adoptar com a filosofia continental em geral são as seguintes:
1. Afirmar
que não faz, literalmente, sentido.
2. Dizer,
causticamente, que seja ela o que for, não é filosofia (a estratégia
analítica);
3. Comentar
cuidadosamente que não deve ser afastada irreflectidamente. (Esta técnica
funciona melhor quando alguém está a defender uma das duas outras ideias.)
Algumas técnicas
úteis
Oferecemos nesta
secção um pequeno guia para algumas das mais importantes técnicas do especialista
instantâneo filosófico; as outras podem ser inferidas a partir do resto do
texto.
1. A pergunta
É sempre uma boa
ideia ocultar os seus comentários numa pergunta, em especial se não faz
qualquer ideia do que está a falar, o que acontece mais ou menos 85 por cento
das vezes em filosofia. Assim, deve preferir “Não achas que isso pressupõe
algumas premissas implausíveis?” a “Isso pressupõe algumas premissas
implausíveis”.
2. A ambiguidade
Nunca se
comprometa: se for possível ser ambíguo, e em filosofia isso é quase sempre
possível, então seja ambíguo. Deixe em aberto algumas saídas para se poder
escapulir. Uma vantagem desta atitude, que vem mesmo a propósito, é conferir ao
especialista instantâneo um ar de cautela intelectual culta. Deve cultivar-se
expressões como “Pelo menos a mim, parece-me que” (quando não lhe parece) ou
“Estou inclinado a pensar que” (quando não está) e “Talvez existam boas razões
para isso” (particularmente quando é óbvio que não existem). O especialista
instantâneo filosófico diplomado nunca dirá seja o que for do qual não se possa
escapar com calma e sem dificuldades, se isso se tornar necessário. Neste
aspecto, é muito parecido com o filósofo profissional.
3. O tom
É importante que
faça os seus comentários no tom de voz apropriado; deve falar devagar, pausada
e concentradamente. Tente dar a impressão de que tudo o que diz foi
cuidadosamente pensado: vai ver que o disparate mais banal pode parecer
inteligente e profundo.
4. A Aparência
Muitos
especialistas instantâneos competentes noutros aspectos desperdiçam a sua
oportunidade de glória por não darem uma atenção suficiente à aparência. Em
termos gerais, há dois tipos de filósofo:
1. O
Super-Homem nietzscheano, preciso, arrumado, impecavelmente vestido;
2. O
Destroço Humano inacreditavelmente desalinhado, desarrumado e com um ar
ausente.
O último é
talvez mais comum, mas o primeiro não é de maneira alguma desconhecido, e a
verdade é que uns modos suaves, frios e controlados dão montes de vantagens;
enquanto que, por outro lado, a extraordinária excentricidade do Agostinho da
Silva é muito difícil de levar até ao fim. Assim, se não houver uma razão
especial para fazer outra coisa, recomendamos a aparência 1, a menos que sofra
de uma desqualificação pessoal que o diminua profundamente, como, por exemplo,
a psique de Frankenstein aliada ao sentido estético do Marco Paulo. A hipótese
1 é particularmente recomendável para as mulheres: ganham uma audiência
indubitavelmente melhor.
5. A enumeração
O que se espera
da filosofia é que seja uma actividade metódica e precisa, que trata de
assuntos confusos e difíceis de maneira lógica, rigorosa e lúcida (a sério). O
verdadeiro especialista instantâneo de sucesso é o que consegue dar a impressão
de estar a fazer isto, quando na realidade está a fazer precisamente o
contrário; e uma ajuda para fazer isto é a enumeração. “Isso parece-me levantar
pelo menos três questões” é um bom começo, especialmente se nenhuma se
levantar. Quantas mais questões conseguir levantar, melhor. Em geral, atire
para cima: três é o mínimo, quatro é adequado e sabe-se que seis ou até mesmo
sete questões conseguem causar uma destruição devastadora. Confie na sorte e na
inventividade para conseguir ir arranjando questões à medida que for avançando.
Em qualquer caso, se o número de questões for apreciável, o seu adversário
perderá facilmente a conta.
6. Os Adereços
Estamos agora a
chegar ao estágio mais avançado, e a maior parte dos grandes entusiastas
cultivam o uso de pelo menos um adereço. Para os homens o mais eficiente e
versátil é o cachimbo. Muitos filósofos genuínos fumam cachimbos. A razão é
provavelmente evidente: se lhe fizerem uma pergunta realmente embaraçosa, ou se
por outro motivo qualquer ficar encurralado, basta tirar o cachimbo do bolso (o
leitor acabará por descobrir que o resultado disto é o bolso ficar
particularmente nojento ao fim de alguns dias: mas também os especialistas
instantâneos têm ossos do ofício, como toda a gente), depois de fazer um
comentário preliminar como “Bom, o que é realmente importante em relação a isso
parece-me ser talvez o seguinte”, começando então a acendê-lo. Qualquer
especialista instantâneo consegue fazer durar esta operação pelo menos por
cinco minutos sem qualquer dificuldade, e com alguma prática por muito mais
tempo; e desde que resmungue um comentário ocasional de uma natureza
inteiramente não comprometedora à medida que bate, limpa, raspa, sopra,
desmonta, volta a soprar, remonta, sopra mais uma vez, ataca, calca, volta a
bater, acende, puxa, reacende, volta a calcar, puxa mais uma vez e emite
finalmente grandes nuvens de fumo nocivo, ninguém suspeitará que está só a
fazer tempo. Se o fizer suficientemente bem, conseguirá evitar completamente
responder à pergunta.
Outros adereços
e tiques sociais, como oferecer cigarros, limpar óculos, assoar enérgica e
cuidadosamente o nariz, ou até mesmo fingir um ataque de tosse, têm a sua
utilidade, mas nenhum consegue bater o cachimbo, que consegue também, por
qualquer motivo, fazer com que seja quem for que o esteja a fumar pareça uma
pessoa culta.
7. A linguagem
Seleccione
algumas expressões da gíria filosófica cujo som lhe agrade; depois use-as a
torto e a direito. E não se esqueça da Regra de Ouro: nunca diga seja o que for
em português se puder dizê-lo em qualquer outra língua (de preferência alemão).
8. Ganhe tempo
Nunca fica mal
declarar, com um ar de profunda seriedade, que terá de pensar mais sobre a
questão em causa. Esta é também um técnica com um duplo efeito, uma vez que por
um lado afasta a obrigação de dizer seja o que for que o possa comprometer, e
por outro lado porque costuma fazer com que o seu adversário se sinta inferior.
Este último efeito é especialmente conseguido quando o assunto em questão não
podia de facto ser mais óbvio. Não se esqueça: arranje sempre maneira de
complicar o que é essencialmente simples.
9. Pretensão de
profundidade
Este aspecto
está, é claro (repare neste “é claro”: adequadamente usado, é uma arma de um
poder conversacional devastador), estreitamente relacionado com a técnica
anterior: “Na verdade, isto é muito mais difícil do que a maior parte das
pessoas suspeita” é uma excelente afirmação para usar numa crise.
10. A invenção
Se alguma vez
estiver realmente apertado, sem qualquer possibilidade de fuga, não subestime o
poder da pura invenção. Descartes comentou uma vez que não existia qualquer
doutrina, por mais absurda que seja, que não tivesse já sido sustentada por um
filósofo qualquer. Com esta pista, sinta-se livre para inventar filósofos à
vontade. Para isto, o ideal são os metafísicos alemães pouco conhecidos do
século XIX. Pode
usar por exemplo Heinrich Niemand, Professor de Filosofia dos Lacticínios na
Universidade de Bad Homburg, um homem maravilhoso que, para além de ter a
virtude de nunca ter realmente existido, nos tira de todo o tipo de
dificuldades: “Bom, pode ser idiota, mas era o que Niemand dizia”, afirma o
especialista instantâneo nestas ocasiões, o que em geral funciona às mil
maravilhas.
O que a
filosofia não é
Uma concepção
errada, mas habitual, vê a filosofia como qualquer coisa que na verdade é mais
ou menos como a religião. Uma boa estratégia a adoptar em relação a isto é
observar que a filosofia trata de questionar e fazer desmoronar os dogmas, ao
passo que a religião trata unicamente da sua aceitação e defesa.
O leitor irá
igualmente encontrar pessoas (se não tiver cuidado) que afirmam estar
interessadas numa coisa chamada “Filosofia Oriental” ou “Misticismo Oriental”.
Só há uma coisa a fazer quando confrontado com este tipo de pessoa: faça notar
firmemente que, seja a Filosofia Oriental ou o Misticismo Oriental o que forem,
não são filosofia. Seja firme em relação a isto. Isto não é subestimar os
praticantes desta arte arcaica: algumas pessoas dão-se bastante bem e o
misticismo pode levar-nos longe.
Nota: como ser
um místico
1. Invente
alguns paradoxos sem sentido (tais como “a única verdadeira luz encontra-se nas
trevas” ou “cada passo em frente é um passo atrás”).
2. Use
com um ar misterioso provérbios sem qualquer significado (tais como “em casa
onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão” ou “quanto maior é a altura,
maior é a queda”).
3. Professe
uma crença em pelo menos um absurdo metafísico palpável, tal como na afirmação
que Tudo é o Uno Único ou que a Realidade Comum é meramente uma Ilusão Básica
em Comparação com a Vera Luz da Divindade. Não se esqueça de falar com Letras
Maiúsculas.
4. Dê
a entender de maneira obscura que a Via para a Iluminação, apesar de Longa e
Árdua, será no Fim Cumprida; e sugira que um bom método para o conseguir é
entrar numa Relação Física de Comunhão consigo mesmo.
5. Adopte
permanentemente um Sorriso Benigno, que para todos os efeitos práticos não se
consiga distinguir do Esgar Inane.
Glossário
Não se esqueça
da Regra de Ouro do Especialista Instantâneo: as coisas soam sempre melhor em
línguas que as pessoas não sabem. Por qualquer razão, isto é especialmente
verdade do alemão. Assim:
- Zeitgeist — O
Espírito do Tempo, a perspectiva prevalecente da humanidade num certo
tempo histórico (se é que há alguma).
- Weltanschauung (esta é mesmo boa) — A
Visão do Mundo; a Mundividência. Experimente em comentários como “isso é o
tipo de coisa que obriga uma pessoa a mudar de Weltanschauung”.
- Erkenntnis — Conhecimento; é também
o nome da revista fundada pelos positivistas lógicos vienenses (pessoas
como Otto Neurath, Carl Hempel e Rudolph Carnap), que eram conhecidos por:
- Der Wiener Kreis — O Círculo de Viena.
- Sinn und Bedeutung — Sentido e Referência:
uma distinção entre dois tipos de significação devida a Frege e uma das
pedras de toque da lógica filosófica moderna.
- Gesamtheit — Totalidade: muito útil
no dictum de
Wittgenstein: “Die Welt ist die Gesamtheit der Tatsachen, nicht der Dinge”
(o mundo é a totalidade dos factos, e não das coisas). Não confundir com Gesundheit (Santinho!).
Mas o
especialista instantâneo não consegue safar-se só com o alemão. Tem de ter
alguma ideia (ainda que ténue) do vocabulário técnico português.
- Lógica — Uma palavra muito útil.
Tanto pode designar um sistema formal de raciocínio (como a silogística
aristotélica), como pode ser usada de maneira mais vaga para indicar a
força argumentativa de um fragmento de raciocínio. “Qual é a lógica desse
argumento?” é uma pergunta útil, especialmente se está a precisar de algum
tempo para escapar de uma situação delicada.
Um argumento,
que na linguagem filosófica é a exposição racional de um ponto de vista, e não,
como por vezes se pensa, uma maneira de retoricamente enganar a outra pessoa
(apesar de ser surpreendente como uma coisa degenera tantas vezes na outra),
pode ser válido ou inválido, relevante ou não. Um argumento é válido se
consiste em premissas ligadas de tal forma que, se forem verdadeiras, a
conclusão que se tira delas é verdadeira. É relevante só se todas as premissas
forem verdadeiras, e se for também válido (assegurando assim a verdade da
conclusão).
A consistência é
uma excelente arma no arsenal do especialista instantâneo. Duas ou mais
proposições são inconsistentes se é impossível que todas sejam verdadeiras ao
mesmo tempo. Nunca é de mais apontar as inconsistências das outras pessoas. Mas
evite que lhe façam o mesmo.
As proposições são
unicamente o que é expresso pelas frases verdadeiras ou falsas, como “O
presidente Clinton é um esquilo”; assim, segundo esta definição, “Que dizes se
formos para minha casa ver a minha colecção de queijos antigos?”, não exprime,
estranhamente, uma proposição, apesar de ser uma proposta com algum futuro. As proposições atómicas são
proposições básicas que afirmam algo acerca de uma coisa qualquer, tendo por
isso sido vistas pelo Primeiro Wittgenstein (mas não pelo Segundo Wittgenstein,
é claro) como as partes fundamentais da linguagem.
- Derivabilidade — A relação entre as premissas de um
argumento relevante ou válido e a suaconclusão: se x deriva y, então y segue-se
de x (impressiona
bastante mais falar de derivabilidade do que afirmar que uma coisa se
segue da outra).
- Condicionais — Proposições da forma
“se..., então...”; são as peças básicas para a construção de argumentos
lógicos.
- Contrafactuais — Um tipo de condicional
na qual o primeiro bocadinho (a antecedente, “se...”) é falsa, tal como:
“se os porcos tivessem asas, os carros da polícia seriam obsoletos”. São
interessantes para os filósofos porque é muito difícil analisar as suas condições de verdade; e dão
muito jeito ao especialista instantâneo em comentários como “Não sei muito
bem como interpretar essa contrafactual”. São por vezes conhecidas como
“condicionais subjunctivas”, geralmente por pessoas que querem fazer notar
que sabem latim.
- Condições de verdade — As condições sob as
quais uma coisa é verdade; tendo isto em consideração, faz-se um
espalhafato enorme com esta coisa.
- Trivialidade — Ao contrário do que
poderia talvez esperar-se, não é uma característica geral de toda a
actividade filosófica, mas antes um conceito lógico. Uma coisa é trivialmente verdadeirase a
sua verdade se seguir sem qualquer inferência lógica especial de qualquer
outra coisa: assim, se ambas as frases, p e q forem
verdadeiras, p será
trivialmente verdadeira. É surpreendente como se conseguem irritar pessoas
bastante fleumáticas com comentários como “Isso é verdade; mas, é claro, é
apenas uma verdade trivial”.
- Racional — 1) com razões; 2) (Matemática) um
número que pode ser expresso como uma função de dois outros; 3) tudo o que
nós mesmos dizemos.
- Irracional — 1) sem razões; 2) (Matemática) um
número que não pode ser expresso como uma função de dois outros; 3) tudo o
que os outros dizem.
- Analítico e sintético — Uma distinção útil de
Kant entre dois tipos de verdade: as verdades analíticas são as
que são verdadeiras unicamente em virtude do significado das palavras
nelas contidas, independentemente do estado do mundo (como “Nenhum
solteiro é casado”); asverdades
sintéticas, por outro lado (como
“nenhum bacalhau é cantor de ópera”), são verdadeiras ou falsas em função
de circunstâncias empíricas (poderiam existir bacalhaus que
cantassem no La Scala). Uma das grandes tragédias da vida é o facto de as
verdades analíticas, apesar de certas e indubitáveis, serem de pouquíssima
utilidade, ao passo que as verdades sintéticas, apesar de muito úteis, não
são de forma alguma certas e indubitáveis. Kant, na verdade, discordava
disto, pensando que poderiam existir verdades sintéticas a priori (ver a
seguir), tais como as verdades da geometria. Mas infelizmente estava
enganado.
- A priori e a posteriori — Um tipo de distinção
análogo. As verdades a
priori podem ser conhecidas
independentemente de quaisquer factos empíricos; as verdades a posteriori não.
- Necessidade e contingência — As
verdades necessárias são as
que não poderiam não ser verdadeiras; as contingentes são as
que poderiam. Assim, a frase “Jorge Sampaio é Presidente da República” é
contingentemente verdadeira, ao passo que a frase “Jorge Sampaio é Jorge
Sampaio” é necessariamente verdadeira (o que mostra que podem existir
verdades necessárias infelizes). Outra maneira, de pôr a coisa, muito
usada pelos americanos é dizer que as verdades necessárias são verdadeiras
em todos os mundos possíveis.
- Mundos possíveis — A extravagante criação
de filósofos fantasiosos como Leibniz: um mundo possível é
qualquer estado de coisas que poderia ser o caso (mas que em geral,
infelizmente, não é o caso). Os realistas (ver a seguir) em relação aos
mundos possíveis, como David
Lewis, sustentam que existem realmente mundos
possíveis infinitos, não sendo menos reais (apesar de serem, confusamente,
menos actuais) do
que este. Isto tem a consequência reconfortante de fazer com que existam
mundos perfeitamente reais (apesar de, infelizmente, não serem actuais)
nos quais somos devastadoramente bem-parecidos, ricos, e por aí fora.
- O idealismo,
enquanto conceito filosófico, não quer dizer uma preocupação com o
bem-estar das focas bebés (nem sequer com o bem-estar de actrizes
francesas eminentes que se preocupam com o bem-estar das focas bebés), nem
uma fé na Irmandade Humana, mas antes a noção introduzida por Berkeley
segundo a qual os objectos exteriores não existem realmente senão enquanto
objectos de percepção. Na verdade, os idealistas têm muita dificuldade em
explicar exactamente o que querem dizer com isto, pois têm tendência para
sustentar que isto não quer dizer que os objectos sejam ilusórios; mas
parece também que a tese que sustentam é ontológica e não epistemológica.
O idealismo contrasta com o
- Realismo — crença que sustenta que
os objectos exteriores estão realmente lá fora e não apenas quando alguém
se dá conta deles. O realismo, contudo, é um termo múltiplo e ambíguo em
filosofia. Na filosofia da ciência é a ideia segundo a qual as leis
científicas se referem a relações reais existentes no mundo físico, o que
contrasta com o instrumentalismo: a
ideia segundo a qual as leis científicas são meramente modelos de
previsão. Putnam inventou recentemente uma coisa a que chamou “realismo
interno”, no qual não existe um “mundo já feito” (uma expressão útil), mas
em que no entanto as coisas não são por isso irremediavelmente subjectivas
(o que é exactamente o mesmo do que comer o bolo e conseguir ficar com ele
ao mesmo tempo). Putnam sustenta que isto é de inspiração kantiana e
talvez seja por essa razão que é tão difícil (se não impossível) de
perceber; além disso (e por isso mesmo) é ideal para o especialista
instantâneo.
- Nominalismo — a posição segundo a
qual os universais (por
vezes conhecidos por categoriais:termos
gerais como “gato” e “mesa”), não existem independentemente da colecção
das suas exemplificações, isto é, não existem independentemente dos gatos
e das mesas que constituem a mobília do mundo. Neste sentido, os realistas acreditam
que existem entidades universais individuais que explicam o facto de
sermos capazes de ordenar o mundo em grupos coerentes de coisas. Platão
era um realista neste sentido (e também em alguns outros).
- Semântica — Uma distinção útil para
ter em mente, especialmente quando falamos com apanhados por computadores,
é a que existe entre a semântica e a sintaxe. Fornece-se umasemântica para um argumento (ou
seja para o que for) quando se fornece um método para traduzir os símbolos
que contém para qualquer coisa que tenha significado: dar uma semântica
para uma linguagem pressupõe, ou envolve, uma teoria do significado.
Contrasta com asintaxe, que é
apenas a gramática formal do sistema, que determina unicamente se os
símbolos estão correctamente concatenados ou não. Pode assim seguir-se a sintaxe de um
sistema sem ter a mínima ideia da sua semântica. Na verdade, isto é em
grande parte o que faz o especialista instantâneo em filosofia: ele sabe,
de preferência, como manipular os termos de uma linguagem, como o segundo
(mas não, é claro, o primeiro) Wittgenstein diria; mas não faz a mínima
ideia do que quer afinal dizer tudo aquilo.
Sobre o autor
Nascido na
Nigéria por motivos fiscais em 1957, Jim Hankinson evidenciou na mais tenra
infância um espírito naturalmente inquisitivo, que teve como consequência uma
propensão para fazer muitas perguntas (algumas das quais altamente
impertinentes), o que levou muitos observadores a prever uma carreira em
filosofia e muitos outros a prever uma morte precoce. Na escola era
universalmente reconhecido como uma inteligência sem par; mas hoje em dia, por
força da ingestão persistente de álcool, é apenas uma inteligência perdida.
Passou o período
da sua licenciatura no Balliol College, em Oxford, onde aprendeu que a
Superioridade Sem Esforço pode ser difícil, e que cultivar a ociosidade e a
degenerescência dá imenso trabalho.
Depois de obter,
para grande surpresa de toda a gente, uma boa licenciatura, passou um período
em banhos de sol a tempo inteiro, em Creta, antes de escrever a sua dissertação
de doutoramento no King’s College, em Cambridge, numa área da filosofia tão
obscura que ninguém podia realmente examiná-lo. Com base nisto, ensinou (no
sentido fraco da palavra “ensinar”) filosofia na Grã-Bretanha, no Canadá e nos
Estados Unidos, tendo-se sempre esforçado por conseguir iludir as autoridades
fiscais.
Um defensor do
valor da disciplina rigorosa e da automotivação, o Autor faz questão de
trabalhar todos os dias (incluindo aos sábados) pelo menos cinco minutos. Os
seus outros interesses, quando a azáfama do trabalho o permite, incluem o
cinema europeu, a fermentação de cerveja e o desenvolvimento de fantasias cada
vez mais complexas e improváveis envolvendo Claudia Schiffer.
Jim
Hankinson
Livro
original publicado pela Gradiva/Público
O especialista instantâneo em filosofia
Jim Hankinson
Tradução de Desidério Murcho
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