Óptimo ensaio sobre as ideias do físico
Albert Einstein acerca da filosofia da ciência. O debate dirige-se na verdade
para uma espécie de filosofia da física, com Einstein defendendo que é
necessário que os físicos voltem sua atenção para a fundamentação de sua
própria ciência, pois são os que melhores sabem como operar os conceitos haja
vista que são os únicos que podem oferecer um olhar interno.
"Num tempo como o
presente, quando a experiência nos força a procurar um mais novo e mais sólido fundamento, o
físico não pode simplesmente ceder ao filósofo a contemplação crítica dos
fundamentos teóricos; pois ele próprio sabe melhor e sente mais seguramente
onde a porca torce o rabo. Na busca de um novo fundamento, ele deve tentar
tornar claro para si próprio até que ponto os conceitos que usa são justificados
e necessários."
__________________________________Professor de Filosofia - Pense fora da caixa!
Albert Einstein
como filósofo da ciência
Hoje em dia, o compromisso explícito com a filosofia da ciência quase não
tem lugar na preparação dos físicos ou na investigação física. O pouco que os
estudantes aprendem sobre temas filosóficos é normalmente aprendido ao acaso,
por uma espécie de osmose intelectual. Apanham-se ideias ou opiniões na sala de
aulas, no laboratório, e em colaboração com o supervisor. A reflexão cuidada
sobre ideias filosóficas é rara. Ainda mais rara é a instrução sistemática.
Pior ainda, admitir publicamente um interesse pela filosofia da ciência é
frequentemente tratado como um disparate social. Falando com justiça, não são
poucos os físicos que pensam filosoficamente. Contudo, as abordagens
explicitamente filosóficas da física são a excepção. As coisas não foram sempre
assim.
“Independência de juízo”
Em Dezembro de 1944, Robert A. Thornton tinha um emprego novo: ensinar
física na Universidade de Porto Rico. Tinha acabado de se formar pela
Universidade do Minnesota, na qual tinha escrito a sua tese de doutoramento em
“Medição, Formação de Conceitos e Princípios da Simplicidade: Um Estudo em
Lógica e Metodologia da Física”, sob a orientação de Herbert Feigl, um
conhecido filósofo da ciência. Querendo incorporar a filosofia da ciência no
seu ensino de introdução à física, Thornton escreveu a Albert Einstein pedindo
auxílio para convencer os seus colegas a aceitar essa inovação. Einstein
respondeu:
Concordo plenamente
consigo quanto à importância e ao valor educativo da
metodologia e bem
assim da história e da filosofia da ciência. Hoje, muitas pessoas — e mesmo
cientistas profissionais — parecem-me alguém que viu milhares de árvores mas
nunca uma floresta. Um conhecimento das bases históricas e filosóficas fornece
aquele tipo de independência dos preconceitos da sua geração que afectam muitos
cientistas. Esta independência criada pelo conhecimento filosófico é — na minha
opinião — a marca de distinção entre um mero artesão ou especialista e um
verdadeiro pesquisador da verdade.1
Einstein não estava simplesmente a ser educado: ele
queria mesmo dizer isto. Andava a dizer a mesma coisa há cerca de 30 anos.
Sabia pela sua experiência na vanguarda das revoluções da física no início do
século XX que ter cultivado um hábito mental filosófico tinha feito dele um
melhor físico.
Alguns anos após a sua carta a Thornton, numa
contribuição para Albert
Einstein: Filósofo-Cientista, Einstein
escreveu: “A relação recíproca entre a epistemologia e a ciência é de uma
espécie notável. Dependem uma da outra. A epistemologia sem contacto com a
ciência torna-se um esquema vazio. A ciência sem epistemologia é — se sequer se
puder pensar tal — primitiva e confusa.”2
Num artigo de 1936 intitulado “Física e Realidade”,
Einstein explicou por que razão o físico não pode simplesmente condescender com
o filósofo mas tem de ser ele próprio um filósofo:
Tem-se
dito frequentemente, e certamente não sem justificação, que o homem de ciência
é um fraco filósofo. Por que razão então não deveria ser a atitude certa do
físico a de deixar o filosofar ao filósofo? Tal poderia de facto ser a atitude
certa a tomar numa altura em que o físico acredita que tem à sua disposição um
rígido sistema de conceitos fundamentais e leis fundamentais tão bem
estabelecidas que ondas de dúvidas os não podem alcançar; mas não pode ser
certo num momento em que os próprios fundamentos da física se tornaram
problemáticos como o são agora. Num tempo como o presente, quando a experiência
nos força a procurar um mais novo e mais sólido fundamento, o físico não pode simplesmente
ceder ao filósofo a contemplação crítica dos fundamentos teóricos; pois ele
próprio sabe melhor e sente mais seguramente onde a porca torce o rabo. Na
busca de um novo fundamento, ele deve tentar tornar claro para si próprio até
que ponto os conceitos que usa são justificados e necessários.3
Já em 1916, logo após ter completado a sua teoria
geral da relatividade, Einstein tinha discutido a relação da filosofia com a
física num obituário para o físico e filósofo Ernst Mach:
Como
se dá que um bem dotado cientista natural se venha a preocupar com
epistemologia? Não existe trabalho mais valioso a ser feito na sua
especialidade? É o que eu ouço perguntar por muitos dos meus colegas e
pressinto-o de muitos mais. Mas não posso partilhar este sentimento. Quando
penso nos estudantes mais capazes que encontrei no meu ensino — isto é, aqueles
que se distinguiam pela sua independência de juízo e não apenas pela sua
rapidez de raciocínio — posso afirmar que tinham um interesse vigoroso pela
epistemologia. Encetavam alegremente discussões sobre os objectivos e os
métodos da ciência e demonstravam inequivocamente, através de uma defesa tenaz
das suas opiniões, que o tema lhes parecia importante.4
Repare-se que o contributo da filosofia para a
física não é uma parte específica de doutrina filosófica, como o empirismo
antimetafísico defendido por Mach. É, pelo contrário, a “independência de
juízo”. O hábito mental filosófico, argumentava Einstein, encoraja uma atitude
crítica face às ideias recebidas:
Os
conceitos que demonstraram a sua utilidade na ordenação das coisas facilmente
atingem uma tal autoridade sobre nós que nos esquecemos das suas origens
terrenas e os aceitamos como dados inalteráveis. Então vêm a ser marcados como
“necessidades do pensamento”, “dados a priori”, etc. O caminho do
progresso científico torna-se frequentemente intransitável por muito tempo
graças a esses erros. Por conseguinte, não é de todo um jogo vão se nos
tornarmos experimentados em analisar os conceitos há muito tidos como
lugares-comuns e em mostrar as circunstâncias das quais depende a sua
justificação e utilidade e como extravasaram, individualmente, dos dados da
experiência. Assim, a sua excessiva autoridade será quebrada. Serão removidos
se não puderem ser adequadamente legitimados, corrigidos se a sua correlação
com as coisas dadas for demasiado supérflua ou substituídos se for possível
estabelecer um novo sistema preferido por uma qualquer razão.
Aqui, Einstein está a descrever o tipo de análise
conceptual histórico-crítica pela qual Mach era famoso. Este modo de análise
encontra-se no coração da argumentação das teorias da relatividade geral e
especial e de muitos outros trabalhos revolucionários de Einstein.5 Como se tornou
ele esta espécie de físico filosófico? Ler Mach foi uma forma, mas não a única.
“Conhecimento
precoce da filosofia”
Einstein era um exemplo típico da sua geração de
físicos na seriedade e extensão do seu compromisso prematuro e duradouro com a
filosofia. Aos 16 anos, tinha já lido todas as três grandes obras de Immanuel
Kant, a Crítica
da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática e aCrítica da Faculdade do Juízo.6 Einstein leu
Kant novamente quando estudava no Instituto Politécnico Federal Suíço em
Zurique, onde frequentou as aulas de August Stadler sobre Kant no semestre de
Verão de 1897. Stadler pertencia ao movimento neo-Kantiano de Marburgo, que se
distinguiu pelos seus esforços para enquadrar os aspectos fundacionais e
metodológicos da ciência actual no pensamento kantiano.7
Foi também na universidade que Einstein leu pela
primeira vez a Mecânica (1883)
de Mach e os seus Princípios
da Teoria do Calor (1896),
juntamente com Parerga
e Paralipomena (1851) de Arthur
Schopenhauer. Foi provavelmente também lá que leu pela primeira vez A História do Materialismo (1873)
de Friedrich Albert Lange, a História
Crítica dos Princípios da Mecânica (1887)
de Eugen Dühring e Isaac
Newton e os seus Princípios da Física (1895)
de Ferdinand Rosenberger. Todos esses livros eram, no final do século, bem
conhecidos dos jovens estudantes de física intelectualmente ambiciosos.
Um facto revelador do conhecimento de Einstein da
filosofia na Universidade é a sua inscrição no curso de Stadler sobre a “Teoria
do Pensamento Científico” no semestre de Inverno de 1897. O curso era de facto
exigido a todos os estudantes da divisão de Einstein no Politécnico. Pense-se
nisso: todos os estudantes de física no Politécnico, uma das universidades
técnicas líderes na Europa, tinham de frequentar um curso sobre filosofia da
ciência. Um requisito tão explícito não se encontrava em qualquer boa
universidade, apesar de em 1896 Mach ter sido nomeado para a recém-criada
cadeira de “Filosofia das Ciências Indutivas” na Universidade de Viena, e os
estudantes que aprenderam física com Hermann von Helmholtz em Berlim também
tiveram uma pesada dose de filosofia. Mesmo se nem todas as universidades
tinham um requisito explícito em filosofia da ciência, o curriculum de
Zurique diz-nos que os bons jovens físicos tinham de ter mais do que um
conhecimento superficial de filosofia.
O interesse de Einstein pela filosofia continuou
após a formatura. Pela mesma altura em que começou no seu emprego no registo de
patentes em Berna em 1902, Einstein e alguns amigos recentes, Maurice Solovine
e Conrad Habicht, formaram um grupo informal de debate semanal ao qual deram o
grandiloquente nome de “Academia Olympia”. Graças a Solovine, sabemos o que
eles leram.8 Eis uma lista
parcial:
Richard
Avenarius, Crítica da Experiência Pura (1888).
Richard Dedekind, O que São e o que Devem Ser os Números? (2.ª
ed., 1893).
David Hume, Tratado da Natureza Humana (1739; tradução alemã
1895).
Ernest Mach, Análise das Sensações e da Relação entre o Físico e o
Psíquico (2.ª ed., 1900).
John Stuart Mill, Sistema de Lógica (1872; tradução alemã
1887).
Karl Pearson, A Gramática da Ciência (1900).
Henri Poincaré, Ciência e Hipóteses (1902; tradução alemã 1904).
Estes são títulos que encontraríamos na estante de
muitos brilhantes jovens físicos daquele tempo. Que Einstein e os amigos os lessem
por prazer ou auto-aperfeiçoamento mostra quão comum era na cultura científica
da época conhecer tais livros e as ideias neles sustentadas.
As sementes filosóficas plantadas no Politécnico e
na Academia Olímpia iriam brevemente dar fruto no artigo de Einstein de 1905
sobre a teoria especial da relatividade e em muitos outros pontos do seu
trabalho científico. Mas dariam um fruto adicional no facto de o próprio
Einstein se tornar um importante filósofo da ciência.
Relações com
filósofos
A formação filosófica de Einstein fez uma diferença
profunda na sua forma de fazer física. Mas o seu interesse na filosofia da
ciência foi mais além. Na década de 30 do século XX tinha-se tornado um
participante activo do desenvolvimento da disciplina autónoma da filosofia da
ciência. O seu papel evoluiu grandemente através das suas relações pessoais e
profissionais com muitos dos mais importantes filósofos da altura,
principalmente os fundadores da tradição conhecida como empirismo lógico.
A familiaridade pessoal de Einstein com
proeminentes filósofos da ciência começou cedo e de forma algo acidental.
Friedrich Adler era também um estudante de física em Zurique no fim da década
de 90 do século XIX.9 Apesar de Adler
ter estudado na Universidade de Zurique e não no Politécnico, ele e Einstein
tornaram-se amigos. A amizade foi renovada em 1909 quando Einstein regressou a
Zurique vindo de Berna, para o seu primeiro compromisso académico, na
Universidade de Zurique, uma posição para a qual Adler tinha sido o outro
finalista.
Por essa altura, Adler tinha-se tornado um célebre
defensor do empirismo de Mach, especialmente após a árida crítica que Max
Planck dirigiu a Mach numa conferência de 1908 sobre “A Unidade do Quadro do
Mundo Físico”. A relação próxima com Mach levou Adler a publicar, em 1908, uma
tradução alemã do influente livro de 1906 de Pierre Duhem,Objectivo e Estrutura da Teoria Física.
De Duhem, aprendeu Einstein uma versão do que é
conhecido por convencionalismo. Henri Poincaré, outro célebre convencionalista,
defendeu celebremente que a definição convencional dos geómetras do “segmento
de linha recta” como “o caminho de um raio de luz” colocou a geometria
euclidiana a salvo da refutação empírica directa, por exemplo pela triangulação
na linha-de-visão de três picos de montanhas, porque qualquer um impressionado
pela simplicidade da geometria euclidiana poderia salvá-la simplesmente mudando
a definição de linha recta.
O convencionalismo de Duhem era algo diferente do
de Poincaré. Defendeu que o que era convencional não era a escolha das
definições individuais, mas antes a escolha de toda uma teoria. De acordo com
Duhem, são sempre teorias como um todo e nunca afirmações científicas
individuais que testamos. O convencionalismo “holista” de Duhem iria tornar-se
profundamente embrenhado em Einstein, na sua perspectiva madura sobre a
estrutura das teorias e o modo como são testadas.
Foi também em 1909 que a fama de Einstein
possibilitou o seu primeiro encontro com Mach. Havia respeito mútuo dos dois
lados. Quando Einstein deixou a Universidade Alemã de Praga em 1912, nomeou
Philipp Frank seu sucessor. Frank era um discípulo de Mach que se viria a
tornar um importante membro do chamado Círculo de Viena de empiristas lógicos.
É bem conhecida a biografia de Einstein de 1947 por Frank.10
A mudança de Einstein para Berlim em 1914 expandiu
ainda mais o seu círculo de colegas filosóficos. Nele se incluíam alguns
neo-kantianos, como Ernst Cassirer, cujo livro de 1921, A Teoria da Relatividade de Einstein,
era uma tentativa tecnicamente sofisticada e filosoficamente subtil de
enquadrar a relatividade no pensamento kantiano. A relatividade geral colocava
um desafio óbvio à famosa asserção de Kant de que a geometria euclidiana era
verdadeira a priori, a
forma necessária sob a qual organizamos a nossa experiência dos objectos
externos.
Hans Reichenbach, um líder socialista estudantil em
Berlim no fim da primeira guerra mundial, fundou o posto avançado do Círculo de
Viena em Berlim e tornou-se, no empirismo lógico, o mais importante intérprete
dos fundamentos filosóficos da relatividade, com livros como Filosofia do Espaço e do Tempo, de
1928. Tinha sido aluno de Einstein em Berlim, e este tinha ficado tão
impressionado com as suas capacidades como filósofo da física que, quando o
conservador departamento de filosofia de Berlim recusou a Reichenbach um lugar
na faculdade em meados de 1920, Einstein maquinou para que se criasse para ele
uma cadeira de filosofia da ciência no departamento de física da universidade,
que era mais liberal.
O mais importante novo amigo filosófico que
Einstein fez nos seus anos em Berlim foi, sem dúvida, Moritz Schlick, que
começou por ser um físico que realizou o seu doutoramento sob a orientação de
Planck em 1904. A mudança de Schlick para Viena, em 1922, para assumir a
cadeira de filosofia da ciência antes ocupada por Mach e Ludwig Boltzmann,
marca o nascimento do Círculo de Viena e a emergência do empirismo lógico como
um movimento filosófico importante. Antes do trabalho de Reichenbach, a
monografia de 1917 de Schlick, Espaço
e Tempo na Física Contemporânea, era
a mais lida introdução filosófica à relatividade, e a Teoria Geral do Conhecimento,
de 1918, teve uma influência comparável no campo mais vasto da filosofia da
ciência.11
Einstein e Schlick ficaram a conhecer-se primeiro
por correspondência, em 1915, depois de Schlick ter publicado um perspicaz
ensaio sobre a importância filosófica da relatividade. Durante os primeiros
seis anos do seu relacionamento, Einstein demonstrou grande apreço pelo
trabalho de Schlick, mas em 1922 a relação tinha começado a esmorecer. Einstein
tinha sido desencorajado pela doutrina cada vez mais estridentemente
antimetafísica do Círculo de Viena. O movimento rejeitava como metafísico
qualquer elemento de teoria cuja conexão com a experiência não pudesse ser
claramente demonstrada. Mas a discordância de Einstein com o Círculo de Viena
era mais profunda. Envolvia questões fundamentais sobre a interpretação e o
teste empíricos de teorias.
Schlick, Reichenbach e Einstein concordavam que o
desafio dos filósofos empiristas da física era formular um novo empirismo capaz
de defender a integridade da relatividade geral dos ataques dos neo-kantianos.
A introdução, pela relatividade geral, de um espaço-tempo híbrido com curvatura
variável era um importante desafio para o kantianismo. Alguns defensores de
Kant afirmavam que a relatividade geral, sendo não euclidiana, era falsa a priori. Pensadores
mais subtis e sofisticados, como Cassirer, defenderam que Kant estava errado ao
reclamar o estatuto de a
priori para a geometria euclidiana,
mas certo ao sustentar que existe alguma forma espacial a priori matematicamente
mais fraca, talvez apenas uma forma topológica.
A filosofia de Mach não estava à altura da tarefa.
Não poderia reconhecer um papel cognitivo independente ao sujeito. Schlick,
Reichenbach e Einstein, por outro lado, concordavam que os kantianos tinham
razão ao insistir que a mente não é uma tábua rasa na qual a experiência se
inscreve; que o conhecimento envolve alguma estruturação fornecida pelo
sujeito. Mas como poderiam afirmar um tal papel activo do sujeito sem conceder
demasiado a Kant? Eram, apesar de tudo, empiristas, acreditando que as razões
para sustentar a relatividade geral eram, no fundo, empíricas. Mas em que
sentido é o nosso raciocínio empírico se o nosso conhecimento tem uma estrutura a priori?
A resposta final de Schlick e Reichenbach
baseava-se fundamentalmente na versão do convencionalismo de Poincaré. Defendiam
que o sujeito contribui com as definições que ligam termos teóricos
fundamentais como “segmento de linha recta” às noções empíricas ou físicas como
“percurso de um raio de luz”. Mas, argumentavam, assim que tais definições são
estipuladas por convenção, a verdade ou falsidade empírica de todas as outras
asserções é fixada unicamente pela experiência. Mais ainda, uma vez que
escolhemos livremente apenas as definições, as diferenças que resultam de tais
escolhas não podem ser mais significativas do que expressar resultados de
medida em unidades inglesas ou métricas.
Einstein também procurou uma resposta empírica aos
kantianos, mas discordava profundamente de Schlick e Reichenbach. Desde logo,
como Duhem, julgava impossível distinguir diversos tipos de proposições
científicas apenas em princípio. Algumas proposições funcionam como definições,
mas não existia qualquer razão filosófica clara para que uma qualquer dessas
proposições tivesse de
ser considerada como tal. O que para um cientista era uma definição poderia ser
uma afirmação sintética, empírica, para outro.
Tal como usado pelos filósofos, “sintético”, por
oposição a analítico, significa uma asserção que vai além do que já está
implícito nos significados dos termos usados. Uma asserção analítica, por
contraste, é uma afirmação cuja verdade depende apenas do significado ou da
definição. Um princípio empirista central é o de que não há verdades sintéticas a priori.
Uma razão mais profunda da divergência de Einstein
face a Schlick e Reichenbach era o seu receio de que a nova filosofia
lógico-empirista tornasse a ciência demasiado parecida com a engenharia. Estava
ausente do esquema empirista algo que Einstein considerava muito importante
para a física teórica criativa, a saber, “invenções livres” do intelecto
humano. Não que o teórico fosse livre de inventar um qualquer esquema. Teorizar
estava limitado pelo requisito de adequação à experiência. Mas a própria
experiência de Einstein tinha-lhe ensinado que o teorizar criativo não poderia
ser substituído por um algoritmo para construir e testar teorias.
Como respondeu Einstein a Kant? Empregou o holismo
de Duhem de uma nova maneira. Quando uma teoria é testada, algo tem de ser
considerado fixo, de forma a que possamos dizer claramente o que a teoria nos
diz acerca do mundo. Mas Einstein argumentou que precisamente por as teorias
serem testadas como um todo, e não separadamente, o que escolhemos considerar
fixo é arbitrário. Pode pensar-se, como Kant, que se fixa a geometria
euclidiana e depois se testa uma física assim estruturada. Mas na verdade
testamos a física e a geometria juntas. Por conseguinte, podíamos perfeitamente
considerar fixa a física e testar a geometria. É melhor dizer simplesmente que
estamos a testar as duas e que escolhemos, de entre as possíveis formas de
interpretação dos resultados, perguntando qual delas fornece a teoria mais
simples. Einstein preferiu a relatividade geral em relação a rivais igualmente
consistentes com as provas porque a sua física mais a geometria espaço-tempo
não-euclidiana era, como um todo, mais simples que as alternativas.
Tais questões podem parecer temas filosóficos
arcaicos e excessivamente subtis, a deixar de lado. Mas vão ao cerne do que
significa respeitar provas na prática da ciência, e são questões sobre as quais
ainda debatemos. À medida que a física teórica se aprofunda em reinos menos
firmemente ancorados na refutação empírica, à medida que a física experimental
se torna cada vez mais difícil e abstrusa, as questões que Schlick, Reichenbach
e Einstein debateram revelam-se mais e mais prementes.
Quando a teoria confronta a experiência, como
repartir os louros ou a culpa pelo sucesso ou pelo fracasso? Pode a análise
filosófica fornecer razões para centrar um teste num postulado individual ou
devem o juízo e o gosto decidir o que a natureza nos está a dizer? Os
empiristas lógicos procuravam um algoritmo para a escolha da teoria certa. Mas
Einstein comparava aspectos cruciais da escolha à “pesagem de qualidades
incomensuráveis.”12 Num certo
sentido, Einstein perdeu o debate com Schlick e Reichenbach. Em meados do
século, o empirismo lógico destes tinha-se tornado a ortodoxia. Mas a
divergência de Einstein não passou despercebida, e hoje em dia tem nova vida
enquanto desafio a outro renascimento de Kant.13
A filosofia na
física de Einstein
De que forma o hábito mental filosófico de Einstein
o levou a fazer física de forma diferente? E isso tornou-o, como ele pensava,
um físico melhor?
A maioria dos leitores do artigo sobre relatividade
especial de Einstein de 1905 repara no seu tom impressionantemente filosófico.
O artigo começa com uma questão filosófica sobre uma assimetria na explicação
convencional da indução electromagnética: um íman fixo produz uma corrente na
bobina móvel através de uma força electromotriz induzida na bobina. Diz-se, por
outro lado, que um íman móvel produz uma corrente numa bobina fixa através do
campo electromagnético criado pelo movimento do íman. Mas se o movimento é
relativo, por que deveria haver qualquer diferença? O artigo prossegue
criticando a ideia de determinação objectiva da simultaneidade entre
acontecimentos distantes por razões igualmente filosóficas; apenas a
simultaneidade de acontecimentos imediatamente adjacentes é directamente
observável. Precisamos por isso de estipular quais os acontecimentos distantes
considerados simultâneos em relação a um dado observador. Mas essa estipulação
tem de se basear numa suposição convencional sobre, digamos, as iguais
velocidades de sinais de luz emitidas e recebidas.
Há uma disputa entre historiadores e filósofos da
física sobre qual é exactamente a perspectiva filosófica aqui envolvida. Alguma
linguagem explicitamente convencionalista no artigo sugere Poincaré como fonte.
O próprio Einstein indicou principalmente Hume e secundariamente Mach. Em
qualquer caso, o carácter impressionantemente filosófico do artigo de 1905
sobre a relatividade é inconfundível.
As fontes filosóficas de Einstein são menos
obscuras no que respeita ao seu compromisso duradouro com o princípio da
separabilidade espacial face à não localização da mecânica quântica. Sabemos
que Einstein leu Schopenhauer quando era estudante no Politécnico de Zurique e
regularmente desde então. Conhecia bem uma das doutrinas centrais de
Schopenhauer, uma modificação da doutrina de Kant do espaço e do tempo enquanto
formas necessárias a
priori da intuição. Schopenhauer
enfatizou o papel essencial e estruturante do espaço e do tempo na individuação
de sistemas físicos e dos seus estados de desenvolvimento. Espaço e tempo, para
ele, constituíam o principium
individuationis, a base da
individuação. Em linguagem mais explicitamente física, esta perspectiva implica
que a diferença de localização é suficiente para fazer dois sistemas diferentes
no sentido de que cada um tem o seu próprio estado físico real, independente do
estado do outro. Para Schopenhauer, a independência mútua de sistemas
espacialmente separados era uma verdade necessária a priori.
Esta forma de pensar fez alguma diferença na física
de Einstein?14 Tome-se em
consideração outro famoso artigo do seu annus mirabilis, o
artigo de 1905 sobre a hipótese dos fotões, que explicou o efeito fotoeléctrico
quantizando a forma como a energia electromagnética vive no espaço livre. Um
fotoelectrão é emitido quando um quantum de energia electromagnética é
absorvido por uma superfície de metal iluminada, sendo o ganho de energia do
electrão proporcional à frequência da radiação incidente. O que mais
impressionou Einstein no comportamento destes quanta energéticos foi que no
chamado regime de Wien, perto da extremidade de energia elevada do espectro de
um corpo negro, eles agem como corpúsculos mutuamente independentes em virtude
de ocuparem diferentes partes do espaço.
Einstein defendeu que pressupor a validade do
princípio da entropia de Boltzmann (S= klogW) para os campos
de radiação no regime de Wien implica uma estrutura granular para essa
radiação. Graças à forma logarítmica do princípio de Boltzmann, a aditividade
da entropia S é
equivalente à factorizabilidade da probabilidade conjunta W de
dois constituintes espacialmente separados do campo de radiações ocuparem
determinadas células de espaço fase. A factorizabilidade de uma probabilidade
conjunta é uma expressão clássica da independência mútua de acontecimentos.
Mas havia um problema: o mesmo raciocínio que
sugeria uma estrutura quantal da radiação no regime de Wien também implicava
que, fora desse regime, a suposta independência mútua dos fotões teria de
falhar. A suposição de fotões mutuamente independentes não produz uma derivação
da fórmula completa de Planck para a densidade energética da radiação de um
corpo negro. Einstein apercebeu-se desse facto, e durante cerca de vinte anos
procurou compreender como podia isso ocorrer.
Já em 1909 Einstein se entretivera com a ideia de
atribuir um campo de ondas a cada fotão de espécie corpuscular para explicar as
interferências, uma falha óbvia da independência mútua. Foi aí que surgiu a
ideia da dualidade onda-partícula. Apenas no final de 1924, quando Einstein leu
pela primeira vez a nova derivação de Satyendra Bose da fórmula de radiação de
Planck, é que percebeu que o que estava em causa era uma nova estatística
quântica, na qual as partículas não são independentes não por uma qualquer
exótica interacção mas porque a sua identidade as torna indistinguíveis.15
Graças a Bose, Einstein percebeu que o falhanço da
independência mútua dos quanta de luz espacialmente separados seria uma
característica duradoura da teoria quântica emergente. Mas Einstein tinha
aprendido com Schopenhauer a ver a independência dos sistemas espacialmente
separados praticamente como uma suposição necessária a priori. À
medida que o novo formalismo quântico apareceu em meados da década de 1920,
Einstein procurou ou interpretá-lo de maneira compatível com a separabilidade
espacial ou demonstrar que se a mecânica quântica não pudesse ser interpretada
desse modo estaria fatalmente errada. Em 1927, Einstein produziu uma
interpretação de variáveis escondidas da mecânica de ondas de Erwin
Schrödinger. Mas desistiu antes da publicação quando descobriu que mesmo a sua
interpretação de variáveis escondidas envolvia o tipo de falhanço de
separabilidade espacial que Schrödinger mais tarde baptizou como
“emaranhamento”.
O mais famoso ataque de Einstein à teoria quântica
foi o seu artigo “EPR” de 1935 com Boris Podolsky e Nathan Rosen, que procurava
demonstrar que a mecânica quântica era uma teoria incompleta. Muitos leitores
acham complicado o argumento de EPR. Poucos sabem que Einstein repudiou o
artigo pouco depois da sua publicação, escrevendo a Schrödinger em Junho de
1935 para dizer que o artigo foi na realidade escrito por Podolsky “por razões
de linguagem”, e que estava descontente com o resultado porque “o ponto
principal estava enterrado por um formalismo excessivo”.
O argumento que Einstein pretendia parte de uma
suposição a que chamou “princípio da separação”. Sistemas espacialmente
separados têm realidades independentes e a localização relativística impede
influências sobreluminais entre acontecimentos de medição espacialmente
semelhantes mas separados. Por conseguinte, a mecânica quântica tem de ser
incompleta, porque atribui diferentes funções de ondas, logo, diferentes
estados, a um de dois sistemas previamente em interacção, dependendo do
parâmetro que se escolhe medir no outro sistema. Por certo que uma teoria não
pode atribuir dois ou mais estados diferentes à mesma e única realidade física,
a não ser que esses estados teóricos sejam descrições incompletas dessa realidade.16
O ponto importante aqui é que Einstein considerava
o seu princípio da separação, descendente do principium individuationis de
Schopenhauer, quase como um axioma para qualquer física fundamental futura. Em
escritos posteriores, Einstein explicou que a teoria de campo, tal como a
entendia — segundo o modelo da relatividade geral, e não da teoria quântica de
campo — era a expressão de separabilidade mais radical possível. Com efeito,
tais teorias de campo clássicas tratam todos os acontecimentos pontuais no
contínuo espaço-tempo como mutuamente independentes, sistemas separados dotados
dos seus próprios estados físicos reais separados.
Em nenhum outro lugar está mais claramente expresso
o profundo compromisso filosófico de Einstein com a separabilidade e a
consequente inquietação vitalícia com a mecânica quântica do que numa longa
nota que escreveu a Max Born em 1949. Pergunta Einstein “O que tem de ser uma
característica essencial de qualquer física fundamental futura?”. A sua
resposta surpreende muitos que esperam que ele diga “causalidade”.
Quero
apenas explicar o que quero dizer quando digo que devemos tentar ater-nos à
realidade física.
Todos
temos [...] consciência da situação relativa ao que virão a ser os conceitos
básicos fundacionais da física: o ponto-massa ou a partícula não estão
certamente entre eles; o campo, no sentido de Faraday-Maxwell, pode vir a
estar, mas sem certezas. Mas aquilo que concebemos como existente (“real”) deve
de alguma forma estar localizado no tempo e no espaço. Isto é, o real numa
parte do espaço, A, deve (em teoria) “existir” de alguma forma
independentemente daquilo que é considerado real noutra parte do espaço, B. Se
um sistema físico abrange A e B, então o que está presente em B deve de alguma
forma ter uma existência independente do que está presente em A. O que está
efectivamente presente em B não deveria por isso depender do tipo de medição
levada a cabo na parte do espaço A; deveria também ser independente do facto de
se fazer ou não uma medição em A.
Se
se aderir a este programa, então dificilmente se pode encarar a descrição
teórica quântica como uma descrição completa do que é fisicamente real. Se se
tentar, ainda assim, encará-la como tal, então tem de se pressupor que o
fisicamente real em B sofre uma mudança súbita por causa de uma medição feita
em A. Os meus instintos físicos ficam eriçados perante tal sugestão.
No
entanto, se se renunciar ao pressuposto de que o que está presente em
diferentes partes do espaço tem uma existência independente real, então não
vislumbro sequer o que a física deve supostamente descrever. Pois o que é
supostamente “sistema” é, no fim de contas, apenas convencional, e não vejo
como se pode esperar dividir o mundo objectivamente para se produzir afirmações
sobre as partes.17
É assim que um físico-filósofo pensa e escreve.
Filosofia a
mais?
Pode-se responder ao argumento de Einstein dizendo
que ele demonstra o erro de importar demasiada filosofia para a física.
Einstein estava provavelmente errado ao duvidar da completude da mecânica
quântica. A confusão que tanto o incomodava revelou-se nas recentes décadas a
principal novidade do reino quântico.
Mas tal reacção reflectiria um sério mal-entendido
da história. Einstein estava errado, mas não por ser um dogmático filosófico.
As suas razões eram científicas bem como filosóficas, sendo o sucesso empírico
da relatividade geral uma de entre essas razões científicas. O que o hábito
mental filosófico tornou possível foi que Einstein visse mais profundamente os
fundamentos da mecânica quântica do que muitos dos seus mais ardentes
defensores. E o tipo de questões críticas filosoficamente motivadas que ele
levantou, mas não podia ainda responder, só iriam frutificar dez anos após a
sua morte, quando foram retomadas por outro grande físico-filósofo, John Bell.
Don A. Howard
Retirado
de Physics Today (Dezembro de 2005)
Notas
1. A.
Einstein a R. A. Thornton, carta inédita datada de 7 de Dezembro de 1944 (EA
6-574), Arquivo Einstein, Universidade Hebraica, Jerusalém, citada com
permissão.
2.
P.
A. Schilpp, org., Albert Einstein: Philosopher-Scientist, The Library of Living Philosophers, Evanston, IL (1949), p.
684.
3.
A.
Einstein, J.
Franklin Inst., 221, 349 (1936).
4. A.
Einstein, Phys.
Zeitschr. 17, 101 (1916).
5. A.
Pais, Subtil
é o Senhor: Vida e Pensamento de Albert Einstein, Gradiva,
Lisboa (1999), ainda é a melhor biografia intelectual de Einstein.
6. Para
pormenores sobre as primeiras leituras filosóficas de Einstein, ver D. Howard,
“Einstein’s Philosophy of Science”, in The Stanford Encyclopedia of Philosophy,
E.N.Zalta, org.
7.
M.
Beller, in Einstein:
The Formative Years, 1879-1909, D. Howard, J. Stachel, orgs., Birkhäuser, Boston (2000), p.
83; D. Howard, in Language, Logic, and the Structure of Scientific
Theories, W.
Salmon, G. Wolters, orgs., U. of Pittsburgh Press, Pittsburgh, PA (1994), p.
45.
8.
M.
Solovine, org., Albert Einstein: Lettres à Maurice Solovine, Gauthier-Villars, Paris (1956).
9. D.
Howard, Synthese, 83,
363 (1990).
10.
P.
Frank, Einstein:
His Life and Times, Knopf, New York (1947).
11.
Ver D. Howard, Philosophia Naturalis 21,
616 (1984).
12.
A.
Einstein, Autobiographical
Notes: A Centennial Edition, P. A. Schilpp, trad. E
org., Open Court, La Salle, IL (1979), p. 21.
13.
Um trabalho recente de renascimento kantiano
amplamente discutido é M. Friedman, Dynamics
of Reason, CSLI
Publications, Stanford, CA (2001).
14.
D.
Howard, in The
Cosmos of Science, J.
Earman, J. D. Norton, orgs. U. of Pittsburgh
Press, Pittsburgh, PA (1997), p. 87.
15.
D.
Howard, in Sixty-Two
Years of Uncertainty, A. Miller, org., Plenum, New York (1990), p. 61.
16.
A. Einstein a E. Schrödinger, carta não publicada
datada de 19 de Junho de 1935 (EA 22-047), Einstein Archive, Hebrew University,
Jerusalem, citado com permissão; D. Howard, Stud. Hist. Phil. Sci. 16, 171 (1985); D. Howard, in Philosophical
Consequences of Quantum Theory: Reflections on Bell's Theorem, J. T. Cushing, E. McMullin, orgs., U. of Notre Dame Press,
Notre Dame, IN (1989), p. 224.
17.
M.
Born, org., Albert Einstein-Hedwig und Max Born. Briefwechsel 1916-55, Nymphenburger,
Munich (1969), p. 223.
9 de Abril de 2006 Filosofia da ciência
Albert Einstein como filósofo da ciência
Don A. Howard
Tradução de Rui Vieira da Cunha
Lola
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