Morte de um filho
Graziela Gilioli fala da
dor de perder um filho (o caçula, aos 14 anos) e de como se recompôs e escolheu
ser feliz apesar da dor.
por Graziela Gilioli
No emaranhado do nosso tempo, adquirimos o hábito de
viver sem pensar muito sobre o começo e o fim das coisas, e muitas são as
crenças sobre a origem, o fim, e as suas razões. Nascemos e morremos ao bel
prazer do destino como se fôssemos reféns dos segredos da nossa existência. E
assim, vivemos alienados da nossa sabedoria, esquecidos do que realmente
importa na vida.
Mas, afinal, o que é que importa?
Desde sempre nossas indagações sobre o significado das
coisas estão suspensas no ar, sem resposta, porque esta é uma condição
essencialmente humana – viver com muitas perguntas não respondidas. Sem
respostas começamos a pensar na eternidade. Por força da imaginação nossa mente
é capaz de acreditar que viveremos para sempre, e infinito é o nosso sonho que
nos leva à eternidade. Mas, a despeito dos nossos desejos, nosso mundo é
finito.
Nessa vida seguimos a lei do Universo, a lei da
finitude, tudo o que principia tem um fim. Tudo o que conhecemos e tudo o
que está por vir em algum dia chegará ao fim. Imagine qualquer coisa – um
pássaro, um vulcão, um mar, uma cidade, uma árvore, uma esperança, uma certeza,
um beijo, um olhar — tudo o que você imaginar tem a sua própria duração de
vida.
Tudo o que conhecemos e amamos um dia morre. Onde há
vida há morte e vice-versa. Essa é a ordem do Universo. E há beleza nisso
Quando nós aqui da Terra olhamos para o céu, com seus
tons amarelados, alaranjados ou róseos e azuis, estamos vendo à distância uma
avalanche de meteoros e meteoritos voando por todos os lados, sem rumo, à
velocidade da luz com inúmeros buracos negros pela frente. Mas como é bonito um
céu colorido! E que deslumbre é o céu estrelado! Para enxergarmos a beleza dos
desígnios da vida temos de nos afastar um pouco de nós mesmos para encontrarmos
um novo prisma, um novo olhar ou até mesmo uma nova explicação que nos conforte
a alma. Isso eu aprendi com o meu filho caçula.
“Para enxergarmos as belezas dos desígnios da vida
temos de nos afastar um pouco de nós mesmos” (foto: Graziela Gilioli).
Eu tenho dois filhos. Há doze anos eles se separaram
por uma escolha do destino. Meu filho mais velho, hoje com 28 anos, vive aqui
na Terra e o meu filho caçula vive num outro mundo que desconheço. Lá no
desconhecido não se contam os dias e então ele tem 14 anos, para sempre. Com o
tempo parado na vida do meu caçula entendi a morte como um grande silêncio.
Como o fim, sem nenhuma retórica.
Imagine conhecer a morte através do seu filho caçula!
Frente à morte somos minúsculos e impotentes. Uma sequência sem fim de
perguntas (sem reposta) pipocam em nossa mente e o desânimo, o desespero e a
tristeza passam a ser os nossos guias.
Como é que somos capazes de nos iludir durante a vida
toda acreditando que a morte é sempre um assunto para não se pensar, como se
fosse algo de menor importância perto da vida?
Nunca houve religião ou filosofia que tenha nos
libertado da morte e mesmo assim somos tímidos em pensar a morte como parte da
nossa vida. Acreditamos que se não tocarmos nesse assunto teremos paz e
conforto, e é essa ilusão que nos impede de compreender a vida em sua
plenitude. Em nada nos ajuda vivermos como se a morte fosse um engano ou um azar
ou uma injustiça que atinge apenas alguns desafortunados.
Convivi com a morte ao meu lado durante os vinte meses
em que o meu caçula esteve internado no hospital com o diagnóstico de
neurablastoma (um
tipo raro de câncer que acomete crianças).
Foi quando aprendi que às vezes a gente consegue hipnotizar a morte com a nossa
disposição de lutar pela vida. Então ela fica quieta e calma por mais algum
tempo, e esse tempo em que a morte está calma é a nossa vida. Meu caçula me
ensinou muitas coisas. Uma delas é que o sofrimento pela perda de quem amamos é
inevitável. Mas ele também me ensinou que a gente pode escolher de que jeito
queremos viver – sendo pessoas felizes ou tristes.
Um pouco antes de morrer meu filho falou bem baixinho
— ele ficou surdo e praticamente sem voz por consequência do “tratamento”
—: “Mãe, desculpe. Eu não vou conseguir.” Disse isso olhando de frente pra
mim e depois apoiou o rostinho lindo que ele tinha no meu peito. Estávamos os
dois sentados na cama dele, no hospital. Em seguida ele me disse: “Mãe, eu sei
que vai ser duro mas não vai ficar triste, tá bom? Fala isso para o meu irmão
porque eu acho que não vai dar tempo de eu falar com ele”.
Meu caçula morreu no dia seguinte, sem ter tempo de
falar isso para o irmão mais velho. A generosidade do meu caçula em se despedir
de mim com suavidade e a delicadeza dele em me dizer que ele tinha chegado ao
fim me deixaram sem palavras. No meu coração despedaçado ficou a certeza de que
eu faria tudo para voltar a ser feliz algum dia.
Depois dessa última conversa com meu caçula, deixei o
caminho livre para ele morrer. Ninguém tem nenhuma ingerência sobre a vontade
da morte, mas quando digo que deixei o caminho livre é no sentido de não me
opor ao fim e, sim, aceitar que a partir daquele momento minha caminhada seria
sem o meu querido caçula. Eu tinha de ser forte para cuidar do meu filho mais
velho que perdera o irmão e me lembrei da sabedoria egípcia onde a mãe é a senhora
do céu, soberana de todos os deuses e representa a força, o equilíbrio e a
esperança, em qualquer situação da vida.
Com o meu caçula em outro mundo, percebi o quanto
somos frágeis e fortes ao mesmo tempo. Frágeis porque não escolhemos nosso
destino e fortes porque o aceitamos, apesar de tudo. Aceitar o próprio destino
não é uma atitude passiva, é uma escolha, a chance de escolher como viver o que
o destino nos oferece. Por que abrir mão dessa liberdade?
Por que não usar nossa capacidade de sermos felizes,
por escolha? Ser feliz é uma decisão difícil, mas nos ajuda a conviver com as
dores mais profundas que nos acompanham durante a vida toda
Diante de tantos milagres que fazem nossa vida
possível como não agradecer o que temos? A gratidão pela vida não deveria ser
um pequeno detalhe no meio dos afazeres do dia a dia e sim a coisa mais
importante de tudo. Ainda compreendemos muito pouco desse mundo e muitas vezes
nos atrapalhamos com os assuntos da alma, sempre à procura de alegria e
esperança de que todas as vidas precisam. Aprender a viver com serenidade para
aceitar com naturalidade as coisas que facilitam ou dificultam nossa vida pode
ser um bom começo para descobrirmos o que importa na vida.
Graziela Gilioli é escritora, autora do
livro O Pequeno Médico,
e fotógrafa premiada na 10ª Bienal
Internacional de Arte de Roma,
além de palestrante do TEDxJardins. www.grazielagilioli.com
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Lola
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