segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Mario Vargas Llosa



Mário Vargas Llosa:
 “No amor paga-se um preço, mas é um preço que todos estamos dispostos a pagar
Fez 80 anos em março, quando lançou “Cinco Esquinas”, o último livro mas não o melhor, pois esse ainda está para vir. Mario Vargas Llosa tem planos e vive a vida como se fosse eterna. E não deixou que o Nobel da Literatura o transformasse em estátua
Nessa tarde chuvosa, em que milhares de pessoas se manifestavam contra a nova lei laboral, Paris estava a ferro e fogo. O grande aparato policial nas ruas e a violência que no fim se saldou em seis feridos e uma dezena de detenções paralisou uma parte da cidade, tornando-a labiríntica. Era o tema do dia e foi com ele na ponta da língua que Mario Vargas Llosa (Arequipa, n. 1936) nos recebeu no seu apartamento, situado na Rue St. Sulpice. Um templo de livros e tapeçarias a dois passos de tudo que lhe serve de refúgio quando aqui se encontra, várias vezes por ano, ou não fosse esta a cidade onde nos anos 60 se sedimentou como escritor. A dois dias de partir para a República Dominicana afim de receber um prémio, a vida de Vargas Llosa aos 80 anos é a de um homem jovem e vital, ainda em busca do seu melhor livro. O último que escreveu, “Cinco Esquinas”, recém-lançado em Portugal pela Quetzal, é uma opereta em 22 atos que gravita em torno do autogolpe de Estado de Alberto Fujimori e da utilização da imprensa como instrumento de coação e de ameaça pelo poder. A conversa começou por aqui — pela necessidade de não deixar passar incólume os piores traços do homem contra o qual o próprio Vargas Llosa, que não é nem nunca foi alheio ao destino do seu país, perdeu as eleições presidenciais de 1990. Nessa tarde chuvosa, o escritor falou também da decisão de o ser, da sua infância, da difícil relação com o pai, do Peru plural e dorido que incansavelmente tratou nos seus romances e da sua imersão no mundo em que vive, não o literário — o maior dos seus privilégios — mas o outro, o real, onde os homens e as mulheres constroem, ou não, as suas vidas.
Olhando para “Cinco Esquinas”, o livro reúne, condensados, muitos dos seus temas. De onde vem o título? 
Cinco Esquinas é o nome de um bairro colonial, antigo, de Lima. Onde seguramente se encontram as melhores igrejas e conventos. Um bairro que se foi degradando até se transformar num antro violento e perigoso, dominado pelo tráfico de droga. Entre a sua época áurea e a total decadência, houve um período em que foi também um bairro ligado à música crioula, às valsas, às marineras, à boémia, berço do famoso compositor peruano Felipe Pinglo — este é o Cinco Esquinas que conheci na juventude. Em geral, quando começo a escrever tenho já um título na cabeça, o que é bastante útil. Mas desta vez isso não aconteceu. Dei-lhe muitas voltas e no fim pareceu-me que este bairro, residência, aliás, de muitas das personagens, era um símbolo da história, da decadência e da desintegração de uma sociedade que viveu uma situação muito especial de violência política, de ditadura e de grande insegurança.

A ideia das cinco esquinas lembra também Borges, que conheceu e com quem privou: a de um ponto onde tudo coincide. 
Sou um grande admirador de Borges e leio-o muito ainda hoje, mas atenção: eu não escrevo literatura fantástica. Porém, ele também não fez apenas isso e sempre demonstrou uma grande devoção por Buenos Aires, contribuindo diretamente para o mito portenho. Portanto, talvez sim, talvez haja qualquer coisa dele no meu livro.

O que nos quis dizer com este livro? 
Eu queria escrever sobre um aspeto determinante da ditadura de Fujimori e de Montesinos: a utilização da imprensa como instrumento de coação e de erradicação da crítica. As ditaduras sempre se serviram deste tipo de armas, mas, no Peru, Fujimori fez isto de forma sistemática. Montesinos, o seu homem na sombra, gabava-se de escrever os títulos dos jornais que ele próprio financiava e cuja função era sobretudo intimidar, chantagear os opositores. Contratava jornalistas e instruía-os no sentido de envolver a oposição em escândalos sexuais. O alvo era a vida privada, por vezes com base nalguma verdade, outras vezes de forma totalmente caluniosa e delinquente. Este fenómeno corrompeu e infetou a imprensa peruana, imprimindo-lhe uma deriva da qual ainda não se libertou. Portanto, o romance está inspirado neste acontecimento, enquanto traço típico da ditadura de Fujimori e Montesinos. Mas é claro que, no processo de escrita, outros temas foram surgindo, outras histórias.



VITALIDADE. Octogenário, Mario Vargas Llosa não para quieto. Vive em Madrid, passa em Paris longos períodos, não perde de vista o Peru e em outubro estará em Lisboa

Refere-se à relação íntima entre duas mulheres, com a qual o livro começa? 
Muita gente achou estranho esse início. Mas trata-se justamente de um retrato possível da atmosfera que se vivia na altura — de isolamento, de autossequestro. Havia recolher obrigatório, o que era muito angustiante, porque obrigava a chegar a casa a uma certa hora, sob perigo de ser-se preso. E as pessoas viviam numa espécie de terror de estar na rua após aquela hora. Isto alterou a vida quotidiana. A relação entre estas duas amigas, que começa porque uma é forçada a passar a noite em casa da outra, provavelmente não teria ocorrido noutras circunstâncias. Porque o recolher obrigatório criou uma sensação de claustrofobia e de paranoia que alterou até a vida sexual das pessoas. Já para não falar da insegurança, dos atentados terroristas e contraterroristas, e dos delinquentes comuns que aproveitavam o contexto político para encobrir as suas atividades.

A pergunta que permanece é: porque quis escrever sobre Fujimori, contra quem perdeu as eleições em 1990? O livro saiu em março, antes das eleições peruanas, quando a filha dele, Keiko Fujimori, tinha grandes hipóteses de ser eleita. 
Não lhe saberia responder a esta pergunta. O processo de escrita para mim é sempre o mesmo: são imagens que me ficam na memória, situações vividas, fragmentos lidos ou ouvidos que, aos poucos, por vezes meses ou anos depois, vão gerando o embrião do que poderá ser um livro.

Mas quis ajustar contas com Alberto Fujimori? 
Sempre fui contra as ditaduras. Foram na minha vida uma espécie de pesadelo, pois vivi mais tempo sob ditaduras do que em ambientes democráticos, como aliás aconteceu à maioria dos latino-americanos. E o pior crime de Fujimori foi ter chegado ao poder por meio de eleições livres e dois anos depois ter feito um golpe de Estado. Isso representou uma tragédia para o Peru, que já tinha iniciado a transição democrática e teve que viver mais dez anos de enorme violência e de uma corrupção sem precedentes na história do país. A violência vinha de muitos lados — do terrorismo de Sendero Luminoso, da contraofensiva do Estado e de uma criminalidade feroz que tinha origem no próprio regime. Foi um período terrível para o Peru, que me marcou muito, tal como me marcou a ditadura do general [Manuel A.] Odría, que vivi desde criança e só acabou quando eu já era um homem. Apanhou toda a adolescência e juventude da minha geração.

Que tipo de figura era Montesinos, que no livro aparece como “o Doutor”? 
Era aquele que estava por trás de tudo. Uma figura fantasmagórica, que não se mostrava, recusava publicidade e se mantinha na sombra. Durante longo tempo, muito pouca gente o conhecia. Penso que todas as ditaduras têm sempre alguém assim: alguém que suja as mãos de sangue e se encarrega das maiores crueldades.

Em “Conversa na Catedral”, esse homem é Cayo Bermúdez. 
Em comparação com Montesinos, Cayo Bermúdez era uma personagem menor. Nessa altura — anos 50 — não circulava tanto dinheiro no Peru e não havia os roubos obscenos da época de Fujimori. Mas ambos são personagens completamente sinistras, indispensáveis ao ditador e sem as quais as ditaduras não sobreviveriam. Agem na sombra e ali descobrem um poder, uma espécie de habilidade ou de talento para impor a ordem, para defender o sistema, para exercer a repressão, para chantagear e para corromper.

O jornalismo do escândalo que evoca — a “máquina de lama”, segundo Umberto Eco no seu último livro — é um sinal do nosso tempo? 
É preciso fazer uma distinção. Existe a imprensa frívola, cor-de-rosa, do social, e existe a imprensa amarela, que é a imprensa do escândalo, que inventa histórias e invade a vida privada. Por vezes a fronteira não é clara, mas há mesmo assim uma diferença entre frivolidade e violação da privacidade. Eu tenho sido vítima das duas coisas. Acontece que isso me incomoda justamente por ter uma relação muito próxima com o jornalismo, que exerço desde os 16 anos e nunca deixei de exercer. É um mundo onde me movimento com um certo à vontade, não só por praticar o ofício como por ser um leitor viciado em jornais e revistas.

Inseridos como estamos nesta cultura do entretenimento, em que a diversão substituiu o espírito crítico, como podemos fugir-lhe? Segundo o que escreveu na “Civilização do Espetáculo”, não há escapatória. 
É que esta é a cultura do nosso tempo. A nossa cultura está cada vez mais à procura da diversão e do consolo. Temos medo do aborrecimento. E isso afeta também o jornalismo, que ganhou um lado frívolo e banal em sintonia com esta forma de viver contemporânea. A revolução audiovisual também contribuiu muito para o reinado do imediato — as redes sociais são um mundo de fofoquice e de entretenimento malicioso e vulgar. Porém, a par de uma derrocada dos valores e da fronteira entre verdade e mentira, a tecnologia enriqueceu e facilitou o acesso à informação, colocando-a ao alcance da mão e tornando a vida impossível aos sistemas de censura. Uma coisa é certa: esta ideia de cultura como entretenimento — que tem no jornalismo um reflexo específico — é comum ao primeiro e ao terceiro mundo, aos países mais e menos desenvolvidos. E não há como evitá-lo, pois há um público que o exige. Veja-se o poder de mobilização e de criação de opinião dos tabloides, por exemplo
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Porque é que o escândalo nos é tão atrativo? 
Penetrar na vida privada das pessoas públicas é por si só uma tentação irresistível. É um divertimento mórbido, de início fomentado por uma imprensa especializada, que hoje se generalizou: praticamente não existe um jornal no mundo que não tenha uma página de fofocas. É um traço da nossa cultura, que poderia combater-se através da educação. Mas para isso a educação teria de estar fora dessa cultura, deveria poder olhar-se de fora.

Curiosamente, no seu livro, a jornalista ‘amarela’ redime-se. 
Redime-se e redime o seu ofício.

É como se a moralidade triunfasse — pelo menos na literatura.
Esta personagem era para ser secundária, mas foi-me seduzindo, conquistando. A dado momento senti que tinha ganho o direito de ser mais qualquer coisa, e acaba por ser central. Apesar do ofício vil que pratica, tem um fundo decente. Ela tem de fazer uma escolha, e ainda que tudo a empurre numa certa direção, há um nervo secreto que se ativa e a leva a fazer a coisa certa.

Esse final positivo adequa-se à sua vida, que aos 80 anos diz estar a planear como se fosse viver eternamente? 
Isso é o que todos os seres humanos deveriam fazer para viverem em paz até ao fim. Aproveitar a vida até ao final e organizá-la como se fôssemos viver indefinidamente. De maneira que a morte seja como um acidente.

Quer ser apanhado por ela “a escrever o seu melhor livro”. 
Claro, todo o escritor tem a ideia de que o seu melhor livro ainda não foi escrito, que a melhor obra nem sequer está no presente, que está para chegar. Que espera por ele no futuro, e que esse futuro está ao seu alcance.

Também disse recentemente: “Ninguém estaria disposto a sacrificar um amor, apesar das suas sequelas traumáticas e por vezes terríveis.” Esta é a frase de alguém que viveu e que conhece bem essas sequelas. 
Nesta frase há uma verdade profunda. O amor é uma experiência fundamental na vida de um ser humano. E não significa apenas felicidade, mas também dilaceração, frustração, trauma. Paga-se um preço, mas é um preço que todos estamos dispostos a pagar porque, no fim, fazendo as somas e as subtrações, os benefícios e a exaltação que o amor trazem não são substituíveis.

Como se escreve quando se é feliz? 
Ninguém, à exceção dos parvos, é sempre feliz. A felicidade é a exceção à regra. Experimenta-se por contraste com a rotina e com a desesperança. Não é um estado permanente, vive-se a intervalos e, por isso, com uma intensidade muito maior do que todo o resto. A felicidade não é a aceitação da realidade e da vida tal como são — isso é conformismo. É um momento de exaltação, que não tem a ver necessariamente com o amor — fazer o que se gosta, por exemplo, pode fornecer momentos de enorme intensidade e satisfação íntima. No meu caso, saber que estou a criar algo que antes não existia.

Até aos dez anos não conheceu o seu pai e de repente ele entrou na sua vida. Em “El Pez en el Agua”, as memórias que publicou em 1993, dizia ainda sentir um vazio no estômago ao recordar-se de certos episódios. Perdoou-o? 
Sabe, essa foi uma experiência muito traumática. Descobrir que o meu pai existia quando eu tinha dez anos, ir viver com ele do dia para a noite... Até então eu tinha sido um rapaz muito protegido e mimado pela minha família materna, justamente por ser ‘a criança sem pai’, a quem lhe tinham ocultado que o pai estava vivo. E passar a partilhar o espaço com esse senhor, que era muito duro e inflexível, foi difícil e doloroso. Claro que depois tais sentimentos arrefeceram, mas creio que esses anos, decisivos na formação da personalidade, me marcaram profundamente. O que deles ficou é uma certa ideia de solidão, de medo e de violência que está sem dúvida ligada à figura esmagadora do meu pai.

Ela parece ter marcado também o seu início como escritor: disse que não o seria se não soubesse que assim desiludiria o seu pai. 
Tive com o meu pai uma relação muito má, e o facto de ele ser tão hostil à mera possibilidade de ter um filho literato ou escritor com certeza estimulou-me a seguir esse caminho. Era uma maneira inconsciente mas muito real de resistir à sua autoridade e de o enfrentar. Claro que percebi isto mais tarde, mas é um facto que, sem o desejar e sem sequer dar por isso, o meu pai ajudou-me a encontrar a minha vocação. Se ele não tivesse feito uma oposição tão cerrada, provavelmente a minha vocação não teria tido a firmeza e a urgência que sempre teve. No Peru da minha infância e juventude, ser-se escritor era algo muito exótico, uma coisa que não tinha nada a ver com o país, com a sociedade. Os escritores eram advogados que escreviam de vez em quando.

Era um luxo? 
Não era uma atividade que permitisse ganhar a vida. Era um passatempo alimentado por gente que escrevia aos fins de semana e publicava uns livrinhos — isso era ser escritor, um hóbi marginal. E essa era uma das razões pelas quais o meu pai via com horror que o seu filho o pudesse ser. Associava-o à boémia, a uma certa ociosidade.

Quando soube que essa seria a sua vida? 
Ao ingressar na universidade, percebi que o que realmente me importava era ler e escrever. Mas não me passava pela cabeça que pudesse dedicar-lhe todo o meu tempo — acho que nenhum escritor da minha geração o terá pensado. Esta era a realidade da América Latina, à exceção de países como a Argentina ou o México, onde havia um contexto que permitia dedicar-se à escrita sem morrer à fome. No Peru isso não era possível, pelo que me inscrevi em Letras, por ser o que eu queria, e em Direito, para poder ganhar a vida com uma profissão decente e liberal. Rapidamente percebi que nunca exerceria advocacia. Então tentei procurar um projeto que me permitisse enveredar pela literatura, como ensinar ou ser jornalista — e fui as duas coisas em momentos diferentes. Penso que foi em Madrid, em 1958, quando estava a fazer o doutoramento [sobre o poeta Rubén Darío] e a escrever o primeiro romance, “A Cidade e os Cães”, que tomei a decisão de estruturar a minha vida de maneira a poder dedicar-me à escrita. Foi nesse momento que decidi consagrar a maior parte do meu tempo e da minha energia a escrever. Porque essa é a única forma de ser-se um escritor e não a caricatura de um escritor.

Portanto, acredita no trabalho. 
Por uma razão muito simples: porque eu não tenho facilidade para escrever, preciso de trabalhar muito para poder acabar um livro. Há escritores que se sentam e para eles tudo flui. Não é o meu caso. Eu tenho que refazer, penar, reescrever. Por isso, preciso de uma grande disciplina.

Ainda? 
Quando começo um livro sinto muita insegurança. E nunca sei se o vou conseguir acabar. Tenho sempre uma grande luta contra a insegurança e os primeiros rascunhos estão impregnados dessa luta: que não vou conseguir, que não se vai desenvolver, que vai ficar sempre em estado embrionário, que ninguém o vai poder ler, que será palavra morta... A experiência já me demonstrou que se perseverar, se continuar, a dado momento a história começa a ganhar forma. Mas no início é sempre muito difícil, é um combate contra o desânimo.

Tratou sempre e continua a tratar o Peru como personagem. Para isso era preciso estar longe? 
Sempre quis viver na Europa. E sempre fui um grande leitor de literatura europeia, sobretudo francesa, marcado pelo existencialismo — Sartre, Camus, Merleau-Ponty. Eram esses os autores de que mais se ouvia falar na universidade de Letras, em Lima. Aprendi francês ainda muito novo, para os poder ler no original. E tinha a sensação de que se não saísse do Peru não conseguiria ser escritor, que o Peru nunca me daria a possibilidade de organizar a minha vida com a disciplina que tal requeria. Tinha de sair.




JORNALISMO. No último livro, o escritor reflete sobre a utilização da imprensa pelo poder. Ele que começou como jornalista aos 16 anos e que há meses fez uma série de reportagens em Israel

Mas o curioso é que, saindo, descobriu o Peru. 
Descobri a América Latina! Não exatamente o Peru, mas o imenso continente onde este se inseria. Quando eu era jovem, havia uma grande desconexão entre os países latino-americanos. Do ponto de vista cultural, no Peru não sabíamos o que se passava ali ao lado no Equador, na Colômbia ou no Chile... Sabíamos mais sobre a Argentina e o México porque era daí que vinham os livros. Mas eu não me senti um latino-americano até chegar à Europa. Só em Paris, onde vivi nos anos 60 e comecei a ler e a conhecer os autores do outro lado é que isso aconteceu. Descobri que o Peru fazia parte de uma comunidade muito ampla, com denominadores comuns e com uma literatura muito rica que estava a prosperar e a florescer

Em “El Pez en el Agua” afirmou: “Dizer que amo o meu país não é exato. É um motivo constante de mortificação.” Porquê? 
Foi lá que eu vivi esses anos que Freud descreve como fundamentais para a formação de quem somos. E essas experiências continuam a alimentar-me e marcaram a minha maneira de ser, de entender o mundo, de falar o castelhano. Por isso, não é estranho que a presença do Peru seja tão constante na minha obra, apesar de ter vivido fora tantos anos.

Mas, porque se tornou motivo de mortificação? É por ter andado sempre, como revelou em “Conversa na Catedral” (1969), à procura do momento em que o Peru “se lixou” [“se jodió”]? 
Nunca imaginei que essa frase fosse ser tão recordada! Mas é verdade, tenho andado sempre à procura disso. E estar longe ajudou-me a compreender a complexidade peruana. O Peru não é um país, são vários países ao mesmo tempo. É o mundo pré-hispânico, o mundo colonial, o mundo africano, a selva, a costa, a serra, o norte, o sul. São muitas culturas a partir das quais se foi forjando uma certa unidade. Os países com forte presença de civilizações pré-hispânicas têm um perfil marcado por esses enormes contrastes culturais, físicos, linguísticos, de costumes, de tradições e de mitos. Não são países fáceis — mas são países de uma riqueza avassaladora.

Várias vezes disse que escrever era incompatível com fazer política. No entanto, em 1990, atirou-se de cabeça nessa contradição. Não teve medo que o escritor desaparecesse? 
Sim, e desapareceu durante os três anos que dediquei à política. O que mais me angustiava na altura não era não ter tempo para escrever, era não ter tempo para ler. Fazia planos muito rígidos de leitura para não perder o músculo, a palavra. Mas foram circunstâncias muito especiais, que ficaram explicadas em “El Pez en el Agua”. Nesse livro falo do que me empurrou para a política, uma coisa que jamais tinha pensado fazer. Posso dizer que dessa experiência retirei duas coisas: primeiro, um pequeno romance — “Elogio da Madrasta”. E depois, uma vivência da política desde dentro, graças à qual compreendi que a política não se pode entender a partir de uma biblioteca ou do alto das ideias, dos projetos ou dos programas. A política é uma luta pelo poder e isso dá-lhe características muito especiais. Não foi uma experiência grata, foi muito ingrata. Mas muito instrutiva.

Falava de ter crescido em ditadura, como muitos latino-americanos. Qual o rumo da América Latina hoje? 
É bom, muito bom. Nunca tivemos tão poucas ditaduras nem tantos governos nascidos de eleições como agora. Só Cuba e Venezuela constituem a exceção. Porém, o mais importante é haver hoje, na América Latina, um consenso sem precedentes em torno da necessidade de governos democráticos, eleitos e a funcionar na legalidade. As grandes utopias sociais ou a crença de que os governos militares podiam ser a solução estão praticamente extintas.

Tem refletido muito sobre a democracia — e é o que vem fazer a Lisboa no próximo dia 7 de outubro, para participar no ciclo de conferências “Que democracia?”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. E várias vezes referiu que a democracia mais imperfeita é mil vezes melhor que uma ditadura. 
Porque o que é imperfeito pode-se corrigir. Essa é uma das grandes vantagens da democracia, ter o poder de se aperfeiçoar.

Mas não terá também o poder de se autodestruir? Basta olhar para o crescimento dos nacionalismos europeus e para o que aconteceu no Reino Unido com o triunfo do ‘Brexit’. 
Isso sim é motivo de preocupação — para a Europa e sobretudo para a Grã-Bretanha. Pessoalmente, foi uma grande desilusão. Vivi lá muitos anos e jamais teria imaginado que aquele país, em muitos aspetos exemplar, poderia cair na demagogia, no chauvinismo e no nacionalismo patrioteiro próprios do chamado Terceiro Mundo. Que um punhado de demagogos medíocres pudessem arrastar o país de uma forma tão insensata. Penso que a Inglaterra vai pagá-lo e que, se o ‘Brexit’ for para a frente, irá significar o princípio do fim do Reino Unido.

Irrita-o que a democracia tenha o germe da insensatez? 
O que surpreende — e irrita, claro — é que um país que parecia tão avançado em termos de cultura democrática possa recuar desta maneira tão brutal. Que, deixando-se levar por gente como [Nigel] Farage ou como o palhaço do [Boris] Johnson — que não seria apresentável nem na América Latina —, tenha votado a favor do ‘Brexit’. Estive lá dias antes da votação e o nível de mentiras era impressionante. Mas aconteceu.

Na América Latina, temos um caso de implosão democrática — o Brasil. Que leitura faz do que aconteceu? 
Não sou assim tão pessimista. Penso que no Brasil há um movimento popular muito forte contra a corrupção. Um movimento que surge da saturação da opinião pública, que está farta, e que acabará por regenerar e purificar a democracia. Porque a catástrofe económica que vive o Brasil deve-se à corrupção, não há nenhuma razão objetiva para o desastre em curso senão que os governos — de direita, de centro, de esquerda — se tenham dedicado a roubar. A roubar sistemática e vertiginosamente. Todos estão comprometidos. Este movimento tem um grande valor ético, porque pretende dotar a democracia de um conteúdo moral.

Ouvindo-o falar, percebe-se que Mario Vargas Llosa, apesar de ter escrito uma trintena de livros, não é nem nunca foi um homem fechado na sua obra, na sua literatura. É importante para si participar do mundo, pensá-lo? 
Sim, claro. A literatura vem da vida, do que nos marca, do que a memória audazmente seleciona. Tudo é matéria-prima. No imaginário popular o Nobel significa o fim de um escritor. Um fim glorioso, mas um fim. Pensa-se que depois disso não há nada, que o escritor está morto. Eu tentei combater isto desde o princípio, não parando de escrever, de viajar, de pensar a realidade. Não me tornando na estátua em que o Nobel por vezes transforma os escritores.

Em “Conversa na Catedral”, porventura um dos seus maiores romances, o protagonista Santiago diz: o melhor que nos pode acontecer é acreditar cegamente nalguma coisa. Falava de si? 
Esse é o segredo da felicidade a que podemos aspirar neste mundo: fazer aquilo de que gostamos. Muito poucas pessoas têm essa sorte — a maioria dedica-se a coisas que a impede de fazer aquilo de que gosta. E essa é, para mim, a fonte principal de infelicidade das pessoas. Muitas vezes acordo de manhã e custa-me acreditar que vou poder dedicar o meu tempo a isto. Ser possível tem sido uma das grande surpresas que a vida me reservou. E um privilégio extraordinário.


Artigo publicado na edição do EXPRESSO 
de 24 de setembro de 2016
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fotos, enviados a Paris



Lola

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