A filosofia como revolta
Platão e Aristóteles já nos alertaram que a filosofia nasce do
espanto, do vislumbramento, da admiração, que é o que este texto chama de
revolta. Uma mente genuinamente filosófica, que sente e pensa sobre mundo e as
coisas, não pode ser produto de uma existência pacifica, adestrada, que não se
revolta.
A filosofia é em sua
essência revolta, uma vez que ela é pensamento crítico e radical sobre a
realidade. Seu objetivo é desfazer os nós dos problemas. A filosofia procura
tornar claro aquilo que é obscuro. Ela é um discurso reflexivo sobre a realidade,
e sobre toda forma de crença e misticismo. Ela busca a clareza para lançar luz
sobre a penumbra. Por este motivo, não há filosofia sem revolta. A revolta
surge quando tudo se torna claro, quando por um ato de intuição nós chegamos à
verdade. Quando nos damos conta da mentira e da ilusão nos revoltamos. É a
clareza da verdade que nos perturba.
Os gregos entendiam a verdade como
“Alethéia”, ou seja, como aquilo que se desvela, aquilo que se descobre. Não há
revolta sem esclarecimento, não há revolta sem verdade. O objetivo da
filosofia, portanto, é levar os indivíduos à revolta, à verdade. A
revolta nos torna humanos, nos liberta da experiência alienante em que vivemos.
“E conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará” (João 8:32).
A
revolta nos faz pensar sobre nossas circunstâncias. Ortega Y Gasset já dizia
que o homem rende o máximo de sua capacidade quando adquire consciência de suas
circunstâncias. É por meio das circunstâncias que o homem se comunica com o
universo. Foi isso que fizeram os gregos quando começaram a filosofar.
Quando os pré-socráticos deram a primeira demonstração lógica e
materialista para os fenômenos da natureza, isso significou o primeiro ato de
revolta na história do pensamento. Eles deram uma explicação racional e sistemática
do universo, se revoltaram contra suas circunstancias, contra as ilusões e os
preceitos de sua época. Foi a partir daí que o mundo começou a ser
desencantado.
Quando Sócrates aceitou passivamente sua condenação à morte, por
ter colocado idéias subversivas na cabeça dos jovens, isso foi um grande ato de
coragem e de grande revolta, uma vez que mostrava aos seus acusadores que eles
não estavam seguindo a ordem justa da pólis (cidade).
Quando
Giordano Bruno aceitou passivamente ser queimado vivo por conceber um mundo
infinito, isso também foi um grande ato de coragem e de grande revolta, uma vez
que mostrou aos algozes de sua época que num universo infinito o homem não é um
ser privilegiado na ordem do mundo.
Quando pensamos a
filosofia como um ato de revolta, lembramos-nos de imediato de um texto
de Deleuze, em “Nietzsche e a Filosofia”. Segundo Deleuze, “quando alguém
pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, visto que a
pergunta pretende-se irônica e mordaz.
A filosofia não serve nem ao Estado, nem
à Igreja, que têm outras preocupações. Não serve a nenhum poder estabelecido. A
filosofia serve para entristecer. Uma filosofia que não entristece a ninguém e
não contraria ninguém, não é uma filosofia. A filosofia serve para prejudicar a
tolice, faz da tolice algo de vergonhoso. Não tem outra serventia a não ser a
seguinte: denunciar a baixeza do pensamento sob todas as suas formas. Existe
alguma disciplina, além da filosofia, que se proponha a criticar todas as
mistificações, quaisquer que sejam sua fonte e seu objetivo? Denunciar todas as
ficções sem as quais as forças reativas não prevaleceriam. Denunciar, na
mistificação, essa mistura de baixeza e tolice que forma tão bem a espantosa
cumplicidade das vítimas e dos algozes. Fazer, enfim, do pensamento algo
agressivo, ativo, afirmativo. Fazer homens livres, isto é, homens que não
confundam os fins da cultura com o proveito do Estado, da moral, da religião.
Vencer o negativo e seus altos prestígios. Quem tem interesse em tudo isso a
não ser a filosofia?
A filosofia como crítica mostra-nos o mais positivo de si
mesma: obra de desmistificação. (…) A tolice e a bizarria, por maiores que
sejam, seriam ainda maiores se não subsistisse um pouco de filosofia para
impedi-las, em cada época, de ir tão longe quanto desejariam, para proibi-las,
mesmo que seja por ouvir dizer, de serem tão tolas e tão baixas quanto cada uma
delas desejaria. ( Deleuze, 1976, p. 87).
A filosofia como pensamento
reflexivo é, portanto, libertadora. Ela não se submete a nenhuma forma de
poder, seja religioso, político ou ideológico. A razão é a faculdade que julga,
analisa, discerne e compara, nesse sentido, sua característica fundamental é o
livre pensar. É somente através da reflexão que o homem pode sair de sua
“menoridade”, alcançando autonomia e liberdade para guiar sua vida.
É somente
através da reflexão que a humanidade poderá um dia reivindicar um mundo mais
justo e feliz.
Bibliografia
Deleuze, Gilles. Nietzsche e a filosofia, Ed.
Rio, Rio de Janeiro, 1976.
Ortega Y Gasset, J. Meditações do Quixote. São Paulo:
Iberoamericana, 1967.
PUBLICADO EM 10/04/2013
in Filosofonet
Por Michel Aires de souza
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