sábado, 3 de dezembro de 2016

Música e emoção

Música e emoção


Parece bastante razoável a idéia de que há alguma relação entre a música e as emoções humanas. É comum ouvir pessoas a utilizar termos emocionais para se referir às músicas que escutam nos mais variados contextos. Frases como “Esta música é triste,” “Esta música expressa melancolia,” “Esta passagem musical é jocosa,” são proferidas de forma mais ou menos irrefletida pela maioria de nós.1
Um fato interessante é que, mesmo que não resultem de um raciocínio cuidadoso, parecem intuitivamente adequadas para descrever várias músicas. Se alguém dissesse, por exemplo, ao escutar o primeiro movimento do concerto para flauta e orquestra de cordas op. 10 n.° 3 de Vivaldi, que se trata de uma música triste ou que expressa tristeza, acharíamos demasiado estranho. A razão para isto é que parece haver aspectos intrínsecos a esta obra que fazem que seja correto caracterizá-la com termos como “alegre” ou “leda” ao invés de “triste” ou “melancólica.”



No entanto, quando nos detemos a pensar mais cuidadosamente, percebe-se que não é tão óbvia a razão pela qual pensamos que estes termos caracterizam adequadamente esta obra musical. Desse modo, surgem alguns problemas: terá a música absoluta propriedades tais que legitimem o uso de termos emocionais para descrevê-la? E, se tem, que propriedades serão essas? O que significa dizer que uma música é triste, ou que exprime tristeza? Em virtude de que aspectos algumas músicas conseguem provocar ou induzir estados emocionais?
Alguém poderia argumentar que tais problemas não têm assim tanto interesse dizendo que é óbvio que as músicas exprimem emoções, uma vez que há um uso lingüístico cristalizado que amiúde a descreve em termos emocionais. Contudo, responderíamos que daí não se segue que a música exprima ou provoque realmente emoções definidas.2 Ou seja, no que concerne à natureza da relação entre a música e as emoções, nada podemos concluir a partir do que foi mencionado. Trata-se apenas de uma afirmação empírica acerca do uso que as pessoas fazem da linguagem. Da mesma forma, referimo-nos freqüentemente ao “nascer” e ao “pôr” do Sol, mesmo sabendo que se trata de uma falsidade astronômica: é a Terra que se move e não o Sol. Portanto, uma prática lingüística não serve para estabelecer a verdade do que esta prática pretende referir.
Dado que esta tentativa de rejeitar o problema não funciona, temos de buscar outra alternativa. Uma teoria que parece atraente é a concepção romântica acerca da relação entre a música e emoções. Segundo esta perspectiva, a música é concebida tanto para provocar como para exprimir ou representar emoções definidas. Ou seja, as emoções são o conteúdo e o objeto da música. Por exemplo: quando ouvimos uma música e ficamos tristes, significa que o compositor teve êxito no seu intuito: provocou-nos o sentimento de tristeza.3Conseqüentemente, se a música nos causou tal estado emocional, somos levados a afirmar também que exprime tristeza.
Antes de apresentarmos algumas críticas a esta teoria, é mister esclarecer o sentido dos termos “provocar” e “exprimir.” Quando dizemos que a música x provoca uma emoção definida, isso significa que, ao ouvi-la, temos uma reação que consiste na emoção y e que todo aquele que a escutar, em condições similares, sentirá y. Por exemplo: se a audição da música de Vivaldi mencionada acima nos causar alegria, podemos afirmar que esta peça nos provocou tal sentimento. Por outro lado, quando dizemos que uma música exprime uma emoção, significa que conseguimos compreender que tipo de emoção ela está a indicar, mas isto não implica que estamos a senti-la. Desse modo, ao ouvir a peça de Vivaldi podemos ser capazes de dizer que ela exprime alegria sem que nos sintamos alegres.
O crítico musical alemão Eduard Hanslick defendeu no seu livro Do Belo Musical (1891) que as músicas não podem nem provocar, nem tampouco exprimir emoções definidas. Vejamos os seus dois principais argumentos a favor desta tese.
O primeiro argumento de Hanslick visa atacar a idéia de que a música pode provocar emoções definidas. Podemos formulá-lo de maneira bastante simples: se a música pudesse provocar emoções definidas, então haveria uma relação causal necessária entre ela e a emoção provocada no ouvinte; mas não há tal relação causal, uma vez que pessoas diferentes podem reagir com emoções diferentes à mesma música. Há pessoas que se emocionam profundamente ao ouvir os noturnos de Chopin e outras que dizem simplesmente não sentir coisa alguma e até ficar com sono. Portanto, a música não pode provocar emoções definidas. Pode, no máximo, provocar emoções diversas em diferentes pessoas, o que não lhe atribui qualquer valor especial, já que as emoções humanas podem ser provocadas pelas mais variadas coisas: um cachorro atropelado, uma vitória ou uma derrota do seu time de futebol favorito, a morte de um amigo ou uma nota baixa num ensaio filosófico.
O segundo argumento é um pouco mais sofisticado. Ataca a tese de que a música pode exprimir ou representar emoções definidas. Parte da idéia de que as emoções têm um elemento intensional,4 ou seja, um conteúdo que envolve estados mentais, como crenças, desejos, etc. Por exemplo: alguém sente medo caminhando durante uma tempestade porque acredita que um raio pode cair na sua cabeça e matá-lo. Temos aqui dois aspectos desta emoção: 1) a resposta fisiológica da pessoa que a sente e 2) o elemento intensional, nomeadamente a crença de que os raios podem matar.
Após esta análise, fica claro que a música não pode representar estados mentais, uma vez que não tem uma linguagem adequada para isso: é demasiado difícil imaginar como uma crença ou desejo poderiam ser representados por meio de sons sem significado.5 Além disso, o problema se torna mais claro quando pensamos na questão da expressão e representação de emoções no que concerne às outras artes.
Tomemos o caso da literatura. Comparando-a com a música, é mais fácil conceber como se poderá descrevê-la adequadamente como algo que exprime o sentimento de tristeza. Por exemplo, no livro Mar Adentro, de Alejandro Amenabar, a personagem principal, Ramón Sampedro, é um marinheiro alegre e vivaz que se tornou tetraplégico após um mergulho malsucedido. Devido ao seu caráter aventureiro, ele prefere morrer a ter de viver neste estado. Entretanto, em virtude de uma série de empecilhos, Ramón leva vinte e seis anos para conseguir a legalização da eutanásia junto do governo de seu país e, desse modo, morrer de uma forma que considerava digna. Parece que tal obra poderia ser seguramente classificada como uma estória que exprime ou representa a tristeza. E, classificamo-la desse modo em virtude do seu conteúdo, ou seja, em virtude daquilo que nos diz. Será que o mesmo processo se daria com a música?








No caso da música não temos o mesmo sucesso. É difícil sustentar que a música possa dizer-nos seja o que for. Destarte, temos o seguinte argumento: se a música não pode representar estados mentais, então não pode representar emoções definidas, uma vez que estas envolvem estados mentais; a música não pode representar estados mentais; logo, a música não pode representar emoções definidas.
Mesmo que os argumentos de Hanslick sejam bons e refutem a idéia de que a música absoluta é um meio de provocar e exprimir emoções definidas, ainda resta o fato de que a música, de alguma maneira que ainda desconhecemos, nos afeta emocionalmente. Assim, parece que precisamos explicar o processo pelo qual somos emocionalmente afetados pela música, e ao mesmo tempo de esclarecer a natureza desta experiência emocional.
Poder-se-ia argumentar que este não é um problema filosófico e que uma explicação fisiológica a respeito de como somos afetados pelos sons bastaria para liquidar a questão. Grosso modoa explicação se daria nos seguintes termos: ouvimos sons em virtude de vibrações que são conduzidas através do ar. Tais vibrações, na forma de ondas sonoras, são transformadas em impulsos nervosos e levadas ao cérebro que as interpreta como espécies diferentes de sons que levam, de algum modo, à experiência de alguma emoção. Será tal explicação suficiente?
No seu artigo “Explaining Musical Experience” (2007) o filósofo norte-americano Paul Boghossian respondeu negativamente a esta questão. Para ele, mesmo que a explicação fisiológica seja verdadeira, este não é o tipo de explicação que estamos procurando. Compare-se com o problema das emoções que sentimos ao ver um filme, mesmo sabendo que se trata de ficção: uma explicação fisiológica da emoção não dá conta de explicar por que razão nos emocionamos com a ficção. Assim, parece haver algo mais na nossa experiência de nos emocionarmos ao ver um filme, tal como parece haver algo mais do que reações corporais na nossa experiência musical. Portanto, estas experiências não podem ser reduzidas a um processo fisiológico. O que poderá ser este algo a mais que torna insuficiente a explicação fisiológica?





Segundo Boghossian, precisamos de uma explicação da racionalidade e não da fisiologia de nossas respostas emocionais à música. Obviamente, uma explicação fisiológica de tais respostas não pertence ao campo da filosofia e sim ao das ciências biológicas. Porém, o fato de suscitar tais respostas não é uma característica distintiva da música, uma vez que estas podem ser ocasionadas por outras coisas, como o uso de entorpecentes ou um passeio na montanha russa. No entanto, seguindo a perspectiva de Clive Bell (1914), poder-se-ia defender que a música desperta um tipo especial de emoção, distinta de qualquer outra da vida cotidiana: a emoção estética. Prima facie, isto seria implausível, uma vez que os termos que empregamos para descrever as músicas são precisamente os mesmos que utilizamos para referir emoções da vida cotidiana. Claro que isto não serve como indício a favor da tese de que a música não desperta emoção estética. Contudo, o fato de que não usamos termos adicionais para descrevê-la pode ser tomado como um bom indício a favor desta tese. Portanto, apelar à idéia de que a música desperta um tipo particular e distinto de qualquer outra emoção é uma estratégia, se não equivocada, pelo menos contra-intuitiva.
Boghossian afirma que a explicação fisiológica não dá conta da racionalidade de nossa resposta emocional, pois sugere que esta apenas mostra que a música induz estados emocionais, como também as drogas podem induzir. Ser afetado pela música não é apenas uma questão de determinar o tipo de reação química que ocorre no corpo do ouvinte. Por essa razão, tal explicação não é satisfatória. Na seguinte passagem, o autor apresenta um indício a favor da verdade dessa afirmação:
“In fact, we not only think it is rational to be moved in this way, we are especially admiring of those who are capable of the right emotional response, and critical of those who aren't. We take the presence of the right emotional response to be indicative of understanding. We recommend music appreciation classes to those who profess not to see what the fuss is about.” (Boghossian, 2007, p. 118)
Se a idéia de que a explicação fisiológica é suficiente for realmente falsa, então esta estratégia de deslocar o problema para a racionalidade das nossas respostas emocionais à música é profícua. O problema agora é saber precisamente o que Boghossian entende por uma explicação racional de tais respostas. O que poderá ser?
Para compreender isto talvez seja útil voltar ao caso da literatura. Como explicar a racionalidade de nossas respostas emocionais aos romances ou contos? Uma resposta intuitiva poderia ser a seguinte: este gênero de arte caracteriza-se pela presença de uma linguagem que tem o poder de veicular conceitos e proposições que, em virtude de terem significado, ou seja, em virtude de nos dizerem coisas, são capazes de nos afetar emocionalmente conforme a reação psicológica que temos para com o que é contado nas estórias. Por exemplo: podemos nos identificar mais ou menos com uma personagem, consoante o seu caráter e conduta, porque apreciamos ou depreciamos um determinado tipo de caráter e conduta. Assim, temos uma explicação racional — a qual excede o campo fisiológico — da nossa resposta emocional aos gêneros literários mencionados.
Contudo, como se daria tal explicação no caso da música? Pode-se perceber claramente que o ponto central da explicação acima é o fato de os gêneros literários mencionados utilizarem de uma linguagem capaz de nos dizer coisas, expressar pensamentos, etc. E, como vimos no segundo argumento de Hanslick, a música não é capaz de representar estados mentais como crenças ou pensamentos. Destarte, não é capaz de dizer-nos coisas que tenham significado, como fazem os contos e romances e, portanto, não faz sentido reagir emocionalmente à música.
Pode-se rejeitar esta conclusão apelando à nossa intuição de que, mesmo que a música não possa dizer-nos coisas tal como o fazem as obras literárias, continua a haver um aspecto racional nas nossas respostas emocionais. E, além disso, talvez seja inadequado recusar a racionalidade de tais respostas à música em virtude de uma comparação com artes totalmentes diferentes. As laranjas são diferentes das bananas. Não é adequado criticar as laranjas por terem uma casca mais difícil de retirar ou por não serem ricas em potássio, mas sim em vitamina C. Analogamente, não é adequado criticar a música por não ter o mesmo tipo de significado que a literatura, pois, dada a sua própria natureza, é até difícil conceber como poderia tê-lo. Entretanto, permanece legítima a utilização da literatura como exemplo para compreender em que consiste a explicação racional de uma resposta emocional a uma determinada obra de arte.
Pelo que foi mencionado, torna-se defensável que a música tem significado — o qual obviamente não é do mesmo gênero que o da literatura — que pode ser denominado como sendo de um tipo especificamente musical. Como afirma Boghossian:
“The fact that we can rationally respond to music with real emotions, I have been saying, is indirect evidence that there must be musical meaning. Not so much, perhaps, representational meaning — propositions that tell us how things are — though some, myself included, would be prepared to allow a limited role for such meanings; but, rather, expressivemeaning, the capacity, principally, to express emotions.” (Boghossian, 2007, p. 120)
A idéia de que a música tem significado expressivo seria inaceitável do ponto de vista de Hanslick. Assim, antes de defender tal idéia, precisamos responder ao seu argumento de que a música não pode exprimir emoções em virtude de não poder representar os estados mentais que estão ligados a elas.
Poder-se-ia objetar que é falsa a proposição segundo a qual as emoções envolvem necessariamente um elemento intensional. Contudo, é difícil apresentar um exemplo de um estado emocional que não envolva conteúdo algum. Parece que mesmo as pessoas que dizem estar simplesmente tristes, não tendo a sua tristeza conteúdo algum, como, por exemplo, a falta de dinheiro, na verdade o que não conseguem é indicar com precisão a causa de sua tristeza pois esta pode ter sido fruto de uma série complexa de acontecimentos não redutíveis a uma explicação através de uma frase como “Estou triste porque meu time perdeu.”





Outra forma de tentar refutar, ou pelo menos enfraquecer o argumento de Hanslick, é afirmar que a sua exigência acerca da expressão de emoções é demasiado alta. Será realmente necessário, para que uma música consiga expressar ou representar uma emoção, que seja capaz de expressar os estados mentais nela envolvidos? Uma razão para pensar que não é que podemos conceber um caso onde há a representação de apenas alguns aspectos do objeto representado e que, no entanto, dizemos que houve a representação do objeto. Por exemplo: imagine uma foto de um político tirada durante a campanha eleitoral. Podemos dizer que a foto representa o político, embora não consiga representar aspectos importantes acerca dele: o fato de que pensa em eleger-se apenas para promover interesses pessoais, o fato de que gosta de geléia de morango e de que tem uma amante há dois anos. Analogamente, podemos dizer acerca das emoções que, embora as seqüências de sons de uma música não possam representar características importantes acerca delas — nomeadamente, os estados mentais a ela ligados — podem representar outros aspectos que permitem que reconheçamos de que emoção se trata. Resta saber que aspectos são esses.
O fato de as músicas e as emoções humanas serem objetos de natureza tão distinta impede-nos de traçar semelhanças fortes e decisivas. Assim, parece não ser possível estabelecer um critério indisputável de um modo que permita reconhecer e indicar o tipo de emoção expresso em qualquer música. No entanto, por partilharem algumas propriedades dinâmicas análogas, é possível estabelecer um grau de semelhança mais fraco que nos permite explicar como as músicas podem exprimir emoções.
Antes de estabelecer as semelhanças partilhadas entre a música e as emoções é importante esclarecer três conceitos básicos acerca da música: andamento, dinâmica e altura.





As indicações de andamento são as que estabelecem a velocidade na qual será tocada a música. Para isto, os termos geralmente utilizados são: lento, larghetto, adágio, andante, allegro, presto, prestíssimo. É claro que, ao longo da música, o andamento pode mudar, e para designar tal mudança são utilizados outros termos, como accelerando, stringendo, rallentando.
As indicações de dinâmica são as que determinam o volume ou a intensidade sonora. Exemplos de termos utilizados em música com este intuito são: pianíssimo, mezzo piano, mezzo forte, fortíssimo, sforzando. Portanto, dinâmica é a propriedade de um som ser mais forte ou fraco. O uso comum de termos musicais é freqüentemente equivocado. Por exemplo: quando meu vizinho reclama que não está conseguindo estudar porque o som do meu rádio está muito alto ele está, na verdade, se referindo à intensidade e não à altura, a qual diz respeito à propriedade de um som ser mais grave ou agudo.
Feito este esclarecimento, podemos agora avançar na nossa explicação da expressão de emoção na música. As características musicais que partilham semelhanças com as emoções dizem respeito às propriedades musicais acima descritas. Por exemplo: considere-se a obra Méditation de Thais, de Jules Massenet tocada em andamento adágio em mezzo forte. Esta peça é comumente associada ao sentimento de tristeza porque exprime, em alguma medida, dois aspectos da tristeza humana: 1) de modo geral, as pessoas tristes costumam comunicar-se mais vagarosamente e com menos vivacidade, falam com pouca intensidade sonora e gesticulam lentamente e 2) relacionamos comumente a tristeza com uma passagem lenta do tempo; desse modo, uma música lenta dá-nos como que uma experiência tonal do sentimento de tristeza.
As idéias expressas em 1 e 2 parecem razoáveis. A maioria de nós já experimentou a sensação de que o tempo passa mais lentamente quando estamos tristes. Em contraste, numa conversa agradável com alguns colegas temos a sensação de que o tempo passou rápido demais. É claro que estes aspectos são psicológicos. Uma hora tem sessenta minutos independentemente de estarmos num parque de diversão ou num hospital à espera de uma proctoscopia. Entretanto, parecem ter bastante força quando consideramos a experiência cotidiana.






A conclusão a que chegamos é que capacidade da música para exprimir emoções reside no fato de algumas de suas propriedades partilharem semelhanças com algumas características das emoções. Como vimos, tais características podem ser de dois tipos: comportamental e psicológica. No primeiro caso, trata-se do modo como as pessoas falam e se comportam quando estão de posse de um determinado estado emocional. No segundo, trata-se da maneira como sentimos a passagem do tempo aquando da presença de alguma emoção. Assim, quando alguém profere a frase “Esta música é triste,” está a querer dizer que tal música tem propriedades tais (relacionadas com a dinâmica, andamento e tonalidade) que se assemelham ao modo como comumente temos experiência da expressão de tristeza no que tange aos aspectos mencionados no parágrafo anterior. E isto nos permite dizer, analogamente, que a música exprime tristeza.
Uma objeção que pode ser colocada a esta tese é que, se for verdadeira, o âmbito de emoções que a música pode exprimir e representar é restrito. No caso da tristeza, é aceitável o mecanismo descrito a fim de explicar como a música pode representá-la. Mas que dizer de emoções como a inveja, o orgulho, o remorso e a vergonha? Serão passíveis de representação musical?
A esta objeção poder-se-ia responder que talvez estas emoções não sejam passíveis de representação musical em virtude de as suas propriedades serem bastante variáveis e difíceis de determinar, mesmo de maneira geral. Os aspectos comportamentais e psicológicos das pessoas que estão de posse de tais estados emocionais não são tão evidentes como os resultantes de emoções como a tristeza ou a alegria. No caso destas, há como que uma regra geral intuitiva a respeito dos seus aspectos que têm um análogo tonal em virtude das propriedades dinâmicas das músicas. Assim, esta objeção não levanta uma dificuldade tão ameaçadora. Apenas mostra que algumas emoções têm uma natureza mais complexa que não podem ser musicalmente representadas — em virtude desta ou por causa de nossas limitações cognitivas no que concerne ao estabelecimento preciso das características comportamentais e psicológicas suscitadas por tais emoções.
O problema de estabelecer a relação existente entre a música e as emoções humanas é central no campo da filosofia das artes. Como vimos, a teoria romântica parece um tanto ingênua e enfrenta problemas aparentemente intransponíveis em virtude das críticas apresentadas por Hanslick. Porém, na sua nova formulação, parece uma alternativa teórica plausível, uma vez que esclarece a natureza das nossas respostas emocionais à música, mostrando a insuficiência da explicação fisiológica. Portanto, embora não tenhamos condições de dizer que resolvemos decisivamente a questão, consideramos que a tese apresentada constitui um bom ponto de partida. Isto porque tem como atrativos principais o fato de não levantar os problemas imediatos que a concepção romântica apresenta e, adicionalmente, explicar a nossa intuição de que faz sentido responder emocionalmente à música.

Rafael Alberto S. d'Aversa
Trabalho realizado no âmbito da disciplina Estética Geral ministrada no segundo semestre de 2010 na UFOP por Desidério Murcho

Notas

  1. Usamos, neste trabalho, o termo “música” como sinônimo de música instrumental (a qual é por vezes designada com o termo “absoluta”). Desse modo, outras espécies de música (as que têm letras, por exemplo) não são levadas em consideração na presente discussão.
  2. Emoções definidas são emoções com um conteúdo específico como alegria, tristeza, angústia, nostalgia, etc. Contrasta-se com uma mera reação fisiológica sem elementos intensionais, os quais consistem no conteúdo das emoções.
  3. Usamos, neste trabalho, os termos “sentimento” e “emoção” como equivalentes.
  4. A palavra “intensional” aqui é realmente com s e não com c, pois não se refere à “intenção” de uma pessoa. A intensão é um conceito filosófico que diz respeito ao conteúdo de um conceito ou de um estado mental como uma emoção. Por exemplo: se tenho medo de viajar de avião porque tive notícia de muitos acidentes, pode-se dizer que a intensão (conteúdo) do meu medo é a crença de que os aviões são meios de transporte perigosos que, por vezes, ocasionam acidentes fatais. Além da intensão, o medo tem outra componente: a reação fisiológica que a pessoa que o sente tem.
  5. “O termo “significado” diz respeito a “aquilo que é compreendido quando algo nos é comunicado através de sons ou inscrições. Por exemplo, quando ouvimos a palavra “água” processamos esse som relacionando-o com a coisa que essa palavra refere.” Ver Aires Almeida, dir. (2003) Dicionário Escolar de Filosofia. Lisboa: Plátano.

Bibliografia

  • Almeida, A. (2005) O Valor Cognitivo da Arte. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, dissertação de mestrado.
  • Bell, C. (1914) Arte. Trad. R. C. Mendes. Lisboa: Texto & Grafia, 2009.
  • Boghossian, P. (2007) “Explaining Musical Experience.” In Stock 2007.
  • Budd, M. (1989) “Music and the Communication of Emotion.” The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 47.2.
  • Budd, M. (2003) Music and the Emotions. Nova Iorque: Taylor & Francis e-Library.
  • Carroll, N. (1999) Philosophy of Art. Nova Iorque e Londres: Routledge.
  • Graham, G. (1997) Filosofia das Artes: Introdução à Estética. Trad. C. Leone. Lisboa: Edições 70, 1997.
  • Hanslick, E. (1891) Do Belo Musical. Trad. A. Mourão. Lisboa: Edições 70, 1994.
  • Kivy, P., org. (2004) Estética: Fundamentos e Questões de Filosofia da Arte. São Paulo: Paulus, 2008.
  • Matravers, D. (2007) “Expression in Music.” In Stock 2007.
  • Stock, K. org. (2007) Philosophers on Music: Experience, Meaning and Work. Nova Iorque: Oxford University Press.
Tirado DAQUI

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                                             Lola

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