Um Natal de nome DIANA
-"Mãe,
vem buscar-me à estação de Ovar?"
Ainda
ecoam na minha memoria as palavras da minha filha num dos últimos dias de
Novembro, antecipando um fim de semana que iria ser (porque não?) como tantos
outros de alegre e tranquila convivência entre nós e os animais que, surpreendentemente,
a esperavam cada sexta feira que regressava da Universidade de Aveiro!
-"Mãe, vem buscar-me a casa em Aveiro?"
Chove
torrencialmente e ela justifica a
impossibilidade de chegar à estação e pede um pouco mais! Sabe que desde há
muitos anos a mãe está sempre atenta, sempre disponível para os filhos,
nomeadamente para ela que tem um olhar doce de menina primeira na minha vida de
maternidade!
É
Novembro! Estamos quase no final do mês e é natural o nosso cansaço e a vivência
brilhante do Natal que se aproxima e dos mimos que, deliciosamente, se trocam
entre gestos de aparente (des)agrado e de muita, muita satisfação e doce gratidão!
Curiosamente o Natal foi sempre passado em família, na casa dos avos paternos...
que isto de festas no inverno frio sabe bem o aconchego existencial da
experiência dos mais velhos!
E
assim se passava uma noite sempre adoçada pelos bolos que compunham a mesa ao
mesmo tempo que os mais pequenos não viam a hora da distribuição das
prendas...pois o Pai Natal mais que povoar o imaginário dos miúdos era agora a
figura ternurenta e bochechuda que em porcelana ou barro tosco enfeitava cantos
e recantos da sala, coloridamente, decorada pela avô!
Aquele
era, porem, um Natal diferente...muito, muito diferente!
Eu
sabia desde que os médicos, um mês antes, de forma humana mas sem rodeios e,
após um exame localizado, me disseram, nos corredores do Hospital de Santo António:
-
"E muito grave..só um milagre!"
-
"Doutor: quanto tempo?, perguntei eu na minha solidão anestesiada pelo
entardecer sombrio de uma relação que, sendo incondicional é, acima de tudo, inquebrantável!
- "Três a seis meses!"
-
"Vai sofrer?"
-
Não...adormece!"
De
modo inexplicável fiquei serenamente repousada num momento perfurante!
Porquê?
A partir desse momento iniciei a abordagem do tempo de forma inversa: já não
olhava os dias de uma forma cronologicamente neutra ...mas sim de um colorido
esperançado: cada dia que passava era mais um que vivia com a Diana e isto se a
linguagem não consegue expressar na sua completude, o eu tornado mãe sentia-o enternecidamente!
Tivera-a
durante vinte e dois anos comigo! Era muito feliz na nossa relação de muito
mais que amigas mutuamente interessadas e interessantes e agora a vida tratava
amargamente de castrar a minha existência maternal com a proximidade de uma separação
que a ciência me explicou ser impossível evitar com sucesso!
O
dia quente anoitece nos braços de uma festa de consoada em casa dos avos
paternos! Com esmerado cuidado ajudo a Diana a entrar no carro para todos
chegarmos à ceia que decorre normalmente a não ser os mais pequenos que fazem
um bocadito de barulho mas que ela, apesar de exausta e sem grandes forças
físicas, sorri ...porque afinal são miúdos e ela compreende muito bem as suas
ansiedades!
Regressamos!
Já
em casa ela desabafou: "este ano quase todos me deram pijamas...e temos de
ir ao Porto comprar a tua prenda!" A minha filha, nunca se esquecia de
trazer uma prendinha que fosse no aniversario e natal para cada um de nos!
Sorria sempre que nos presenteava com algo que escolhia de acordo com a gestão
do dinheiro que mensalmente lhe depositava na conta! Simples no vestir, gostava
de roupa preta que combinava com um ou outro agasalho rosa claro ou azul bebe
como os seus olhos expressivos e transparentes!
O
Natal que foi o ultimo dela e meu .... há muito que se esvaziou!
A
12 de Janeiro de 2007 eu senti no intimo do meu ser a amargura gelada de ver
partir um filho! Eu que, professora de Filosofia, tantas e tantas vezes tinha
questionado com os meus mochinhos (alunos) a inevitabilidade da morte, a vida
como tempo e espaço entre o nascer e o perecer, o carácter pessoal e
intransmissível do morrer e o facto de nunca se morrer na primeira pessoa...
pois morremos sempre para os outros e não para nos! Agora era eu a necessitar,
mais do que ninguém, de olhar à volta e gritar: PORQUÊ?
Não
sei... no dia da despedida não despreguei o olhar ao longo do seu traje
académico que a vestiu e do qual ela tanto gostava! Estava uma tarde de sol
brilhante e eu ia passando pelo meu pensamento alguns dos bons momentos que
passamos juntas ou mesmo quando, no escritório, estudavamos as
"nossas" matérias e ela me falava do ADN da minhoca o que eu achava
estupidamente engraçado ...como é que um bichito como a minhoca tinha a cadeia
de ADN de si tão complexa!
Dou-lhe
a mão na igreja! Não me separo nem um minuto da sua carita que coloco entre as
minhas mãos! Na entrada uma voz de uma pureza cristalina cantou, a meu pedido
"Avé Maria" de Shubert, já que
um dia tínhamos combinado que seria a musica de entrada no momento do seu
casamento! Não pode ser...foi neste dia!
Na
majestosa igreja que nos acolhe para a
acarinhar pela ultima vez e, no único
momento que me afasto um pouquinho do seu rosto, passeio o olhar pelo lado
esquerdo da ala lateral e... demoro-me um instante num anjo moreno vestido de
azul, aos quadradinhos... que, por certo ela me enviou para me ajudar a viver a
SAUDADE que doravante me irá acompanhar!
Nesse
e "No dia seguinte ninguém morreu" como inicia José Saramago a sua
obra "As intermitências da Morte" que, curiosamente, a Diana me
oferecera no Natal anterior e que continua na mesinha de cabeceira, juntinho de
mim ...porque ainda não passei da primeira pagina! E não será, certamente, por
falta de tempo!
A
Florista disse-me, mais tarde, que nesse
dia fechou à hora de almoço...não tinha mais flores! Também eu não tinha
nada...nem lágrimas, nem palavras, nem sequer lamentos!
Hoje
estou serenamente tranquila! Se fisicamente estamos, forçadamente, separadas,
tenho de confessar que humanamente me sinto feliz! Porquê? Porque esteve
envolvida numa repousante viagem de partida e, sobretudo, porque sinto que é
preferível o caminho de forma digna ao de tê-la sofrendo egoisticamente aqui!
A
vida e o seu sentido muda a nossa mundividência! Há que continuar lutando por aqueles que
ficam junto de nos! Não sei bem porquê,
mas acredito que um dia nos encontraremos de novo, quem sabe..numa outra
dimensão e ai sim vai haver Natal de encontro...e beijinhos de aconchego nesta
dor que não tendo nome (porque não é orfandade), não deixa de ser, irremediavelmente, a perda maior!
Dez
anos de SAUDADE!
Eu
continuo aqui, de pé, integra e inteira sorrindo para as estrelas e fruindo
aquilo que o mundo tem de belo...e, sobretudo, de sublime! Em dias de agradável amanhecer gosto de me envolver com
o MAR num abraço de corpo inteiro que há muito, eu e ELE sabemos de cor!
Não
provei o sabor da revolta nem a cedência ao conformismo ininteligível! Os
alunos e a escola continuam a ser um espaço e tempo de afectos que não se podem
reduzir à época do Natal! O Outro deve e tem de ser a nossa prioridade e o CUIDADO um imperativo
do ser humano em busca da dignidade da PESSOA que renasce na vivência saudável
e continuada dos valores éticos! E, por vezes, dou comigo a pensar...
Haverá
Natal no céu?
Lola - Mãe
Nota
Biográfica
Rosa Sousa ou LOLA como é tratada pelos familiares e alunos, nasceu em 1957, no Porto. Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto desde Julho de 1981, é mestre em Filosofia da Educação pela mesma universidade desde Abril de 2004. Professora de Filosofia na Escola Secundária de Arouca é autora de dois blogues: " Lola e a Filosofia", dirigido ao apoio dos alunos e "O Mar e a Filosofia" onde revela um carácter mais pessoal, intimista e apaixonante. Neste ano letivo está a desenvolver um projeto de “Filosofia para crianças” com alunos dos 1° ano, uma experiência que pretende continuar no sentido de contribuir para o desenvolvimento de um pensamento livre e autónomo! Curiosa, exigente, tolerante, atenta, interessada, cuidada, inconformada, comprometida e empenhada adora ler, escrever, viajar, conversar, ouvir musica...e demora-se com a obra de Kant e com o colorido silêncio do MAR! O Abraço é a manifestação de afecto que mais a encanta e no qual gostaria de parar o tempo!
Rosa Sousa ou LOLA como é tratada pelos familiares e alunos, nasceu em 1957, no Porto. Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto desde Julho de 1981, é mestre em Filosofia da Educação pela mesma universidade desde Abril de 2004. Professora de Filosofia na Escola Secundária de Arouca é autora de dois blogues: " Lola e a Filosofia", dirigido ao apoio dos alunos e "O Mar e a Filosofia" onde revela um carácter mais pessoal, intimista e apaixonante. Neste ano letivo está a desenvolver um projeto de “Filosofia para crianças” com alunos dos 1° ano, uma experiência que pretende continuar no sentido de contribuir para o desenvolvimento de um pensamento livre e autónomo! Curiosa, exigente, tolerante, atenta, interessada, cuidada, inconformada, comprometida e empenhada adora ler, escrever, viajar, conversar, ouvir musica...e demora-se com a obra de Kant e com o colorido silêncio do MAR! O Abraço é a manifestação de afecto que mais a encanta e no qual gostaria de parar o tempo!
Lola
Um texto profundamente humano que consegue reunir em si a não só a sensibilidade de uma mãe e a sua enorme dor pela partida de um ente querido (Diana), como também a grande coragem com que ela enfrenta tão grande drama existencial para o qual é difícil encontrarem-se razões, sejam elas filosóficas ou religiosas. Na verdade, a VIDA é um mistério tão profundo que ultrapassa a nossa capacidade humana de o pretender abarcar.
ResponderEliminarParabéns, pois, por este belíssimo testemunho de Vida perante os insondáveis mistérios da VIDA!
Talvez este poema do grande Santo Agostinho ajude a compreender um pouco este mistério da Vida:
ResponderEliminar"A morte não é nada.
Eu somente passei
para o outro lado do Caminho.
Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês,
eu continuarei sendo.
Me deem o nome
que vocês sempre me deram,
falem comigo
como vocês sempre fizeram.
Vocês continuam vivendo
no mundo das criaturas,
eu estou vivendo
no mundo do Criador.
Não utilizem um tom solene
ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.
Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.
Que meu nome seja pronunciado
como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.
A vida significa tudo
o que ela sempre significou,
o fio não foi cortado.
Porque eu estaria fora
de seus pensamentos,
agora que estou apenas fora
de suas vistas?
Eu não estou longe,
apenas estou
do outro lado do Caminho...
Você que aí ficou, siga em frente,
a vida continua, linda e bela
como sempre foi."
Santo Agostinho
muita paz para essa mãe <3
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