Richard Zimler
"Nao sou complicado: preciso de mimo e algumas horas por dia para escrever"
Num dos dias mais frios
neste outono tardio, esta deveria ser uma conversa sobre “O Evangelho Segundo
Lázaro”, o mais recente livro de Richard Zimler, o americano que se rendeu a
Portugal em 1990. Mas acabou por ser tão mais do que isso.
Antes de mais porque ainda se
vive a ressaca da eleição de Donald Trump, uma situação de dor física e
vergonha alheia para Zimler, que apesar de ali já não viver, nunca deixa de
prestar atenção ao país onde nasceu e cresceu. Depois porque, falar com Zimler,
acaba sempre por ser falar sobre a vida. Sobre as pessoas. Sobre o amor. Sobre
Alexandre Quintanilha, físico e deputado do PS, o homem com quem Richard Zimler
descobriu, há quase 40 anos, que viajar acompanhado é tão melhor do que viajar
sozinho.
Em 2012,
disse numa entrevista que já não era o mesmo homem que escreveu “O Último
Cabalista de Lisboa”. Esse homem e o que agora escreveu “O Evangelho Segundo
Lázaro” são muito diferentes?
Sim, bastante diferentes. Há
uma diferença de idade de quase 20 anos e todos nós mudamos imenso em 20 anos.
Não quero ser um homem parado no tempo. Aliás, isto vai soar mal para algumas
pessoas, mas lembro-me de um amigo comunista dizer do Álvaro Cunhal que era um
homem que nunca mudou de opinião. Isto, para ele, era um elogio, mas para mim
seria terrível. Quem gostaria de ser a mesma pessoa aos 60 que era aos 20? O
Richard Zimler que escreveu “O Último Cabalista de Lisboa” já não existe.
Quais são
as principais diferenças entre essas duas versões de si?
Estou mais maduro. Em termos
de escrita, sei muito melhor escrever um romance, o processo e as técnicas
envolvidas, os meus objetivos e como atingi-los. Por exemplo, em termos de
pesquisa. Quando fiz “O Último Cabalista de Lisboa”, durante um ano pesquisei a
vida quotidiana em Portugal. Um ano inteiro sem escrever nem a primeira palavra
do livro. Reuni um monte gigantesco de documentos. Só que não estava a escrever
uma enciclopédia e 95% da informação que recolhi não podia utilizar. Agora sei
fazer pesquisas de forma mais eficiente. Tornei-me um escritor mais prático e
isso dá-me mais tempo para me focar em aspetos da escrita que são, para mim,
cada vez mais importantes. Agora posso gastar mais tempo com as nuances e
subtilezas da escrita. E cada vez mais gosto disso - como escritor e leitor.
Estou cada vez menos interessado no grande enredo e mais interessado na
qualidade de escrita, na forma como o autor conta a sua história.
Em
algumas das primeiras críticas a este livro fala-se da sua ressurreição como
escritor. Por um lado é um elogio, mas por outro é um comentário que apaga 20
anos de escrita?
Não sei bem qual a minha
interpretação desse comentário. Acho que o João Céu e Silva, jornalista que o
fez, aproveitou a história do Lázaro para criar uma espécie de jogo de
palavras. Acho que quis dizer que voltei a escrever sobre temas religiosos e
místicos, o que é verdade. “O Último Cabalista de Lisboa” era sobre um jovem
místico e judeu. Agora apresento um Jesus que é um místico judeu na tradição
milenar judaica. Um dos meus objetivos era devolver a Jesus Cristo o seu
judaísmo.
Além
desse desejo, o que mais o fascinou neste tema, que já foi tratado pelas mais
variadas formas de arte, e suscita sempre discussão entre investigadores?
Há excelentes livros sobre
este tema, li muitos deles. Também li outros dos quais discordo profundamente.
Mas eu tinha uma perspetiva que me deu uma liberdade quase total: queria
escrever do ponto de vista de um amigo de infância de Jesus. Obviamente que é
uma ficção, estou a pôr-me na pele do Lázaro, mas isso deu-me uma liberdade
imensa para falar, mais do que da missão de Jesus, da sua importância na vida
de uma só pessoa, Lázaro. Nunca ouvimos, por exemplo, a crucificação de Cristo
contada por um dos seus amigos de infância.
Este é um
livro escrito por um homem que tem que tipo de relação com a fé?
Esse é um assunto curioso, no
qual andava a pensar muito. A fé não é um exclusivo das religiões. Ainda na
outra noite estava a falar com o Alexandre e ele disse-me que há pessoas que
têm fé na ciência, o que é uma contradição. Lázaro acorda no seu túmulo e não
tem qualquer memória de uma vida após a morte e começa a perder a sua fé em
Deus e na vida após a morte, mas nunca perde a fé no seu amigo, Jesus. A minha
vida também funciona assim. Por exemplo, posso perder a minha fé nos EUA com
esta eleição, e perder a fé na inteligência dos americanos e no próprio sistema
democrático porque Hillary Clinton ganhou por quase dois milhões de votos e não
será presidente. Mas não perco a fé nos meus amigos, nas pessoas que amo. Acho
que quase toda a gente funciona assim.
Mas
existe a ideia de que a fé foi usurpada pela igreja e que aqueles que não são
religiosos não têm direito a ter fé.
Pois, mas para mim não é
assim. Para mim, não é na religião organizada que reside a fé. Quem precisa de
um padre ou rabi para ter fé, é uma pessoa com problemas. A fé é uma coisa
individual. A voz de Deus fala dentro de cada pessoa, não fala só numa igreja.
Aliás, digo sempre que quem precisa dos dez mandamentos para ter uma vida
eticamente responsável, está com problemas, porque essas regras deveriam ser
interiorizadas. Tenho fé na boa vontade e compaixão de algumas pessoas. E tenho
fé na capacidade humana de amar e ser amado, de encontrar justiça. Mas confesso
que, quando vejo uma eleição como a dos EUA, fico duvidoso se o ser humano tem
evoluído o suficiente para aproveitar o noso magnífico mundo.
Outro
conceito profundamente associado às religiões organizadas, e que também está
presente neste livro, é a culpa. A forma como as religiões organizadas incutem
o sentimento de culpa ajuda a mantê-las vivas?
O sentimento de culpa é
complicado... Infelizmente as religiões têm a tendência de o inculcar e fazer
propaganda para convencer as pessoas que são culpadas de tudo, só por terem
nascido. Mas a culpa também pode ser útil, pode provocar as pessoas para
mudarem comportamentos. Um marido que magoa a mulher, traindo-a, a culpa que
sente pode provocar mudanças positivas na sua vida. Ou seja, a culpa não é só
boa ou só má.
O que há
neste livro e na relação entre Jesus e Lázaro que tenha a ver com a sua relação
com o seu irmão, Michael?
Pouco. O meu irmão era uma
pessoa muito difícil. Aquele género de pessoa que estava sempre a testar o amor
dos outros. Provocava, provocava, provocava e quando a outra pessoa não
correspondia ao teste, ele apontava o dedo a dizer que não o amávamos. Nunca
estava satisfeito, Jesus não era assim. Uma amizade e amor como os que existem
entre Jesus e Lázaro aprendi com a minha mãe. E com o Alexandre. Quando amamos
outra pessoa incondicionalmente, é uma das glórias da vida. A minha mãe também
era uma pessoa muito complexa e frustrada. De uma certa forma, azeda. Mas mesmo
quando gritava comigo e me chamava nomes, já perto do fim, nunca perdi o amor
por ela. E sei que ela sentiu mesmo por mim. Lembro-me que, perto do fim, a
minha mãe teve um enfarte e não tinha forças para tomar duche sozinha. Por
várias vezes a ajudei. Ela estava nua e eu a lavá-la e nunca me senti
incomodado com o seu corpo velho, tal como ela não ficou incomodada por mo
mostrar. Aquela mulher deu-me luz e isso cria um amor que não admite vergonha.
Sinto o mesmo com o Alexandre.
A morte
continua a ser o tema que mais atormenta o ser humano?
Absolutamente. Os grandes
temas são universais, as grandes questões de hoje em dia já o eram há dois mil
anos: qual o significado da minha vida? O que acontece depois de morto? Se nada
acontecer qual é o propósito disto?
Não
consegue encontrar propósito na vida se não houver existência depois da morte?
Podemos inventar um propósito.
Os ateus e agnósticos inventam razões: cuidar dos filhos, do planeta, ganhar um
Nobel... Não tenho nada contra isto, é o que faço. O meu propósito é
contribuir, através dos meus livros. Para mim isto já chega como razão para
viver.
Na mesma
entrevista que citei, de 2012, que deu com o seu marido, Alexandre Quintanilha,
comentavam como tinham acabado de votar em Obama mas que receavam Mitt Romney,
que consideravam mais perigoso do que Bush. Trump será ainda mais perigoso?
Mais perigoso e mais
ignorante. E mais irresponsável também. É um homem do espetáculo. Agora vai
estar na Casa Branca e a verdade é que ninguém sabe muito bem o que ele vai
fazer. Mas as indicações são péssimas, basta ver as primeiras pessoas que
escolheu para a equipa. O seu conselheiro chefe é um supremacista branco,
racista, antissemita!
Quando se
soube os resultados, o discurso que mais se ouviu, sobretudo na Europa, foi que
os americanos tinham votado mal. Mas depois de apurados os resultados finais
percebemos que Hillary Clinton teve mais dois milhões de votos. O problema é
dos americanos ou do sistema?
Dos dois. O colégio eleitoral
já não tem pés nem cabeça, devíamos acabar com isso porque só distorce a
eleição. É a segunda vez que a pessoa mais votada não acaba presidente. Chega!
Mas sobretudo esta eleição mostra uma América polarizada entre idosos e jovens.
Os jovens votaram claramente a favor de Hillary Clinton.
Como
explica que uma percentagem relativamente pesada de mulheres tenha votado em
Donald Trump?
É um fenómeno muito comum -
nos EUA e noutros países. Muitas mulheres interiorizam o desprezo da sociedade
para com elas. Quando estava a estudar na Carolina do Norte houve uma tentativa
de passar uma nova emenda à constituição que se chamava Equal Rights Amendment,
e a este propósito houve uma marcha de 20 ou 30 mil mulheres contra a emenda!
Aprendi aí uma grande lição: as minorias - apesar de as mulheres já não o serem
- interiorizam o desprezo das maiorias. Acho que é uma espécie de lavagem ao
cérebro. Quando uma menina cresce numa família de cristãos fundamentalistas,
onde recebe uma formação diferente da do seu irmão e os pais e avós estão
sempre a dizer-lhe que o seu papel é diferente, algumas têm a força de
resistir, mas outras acabam por aceitar o que lhes dizem.
Acredita
que ainda há muitas mulheres que crescem nesse retrato que acabou de fazer?
Sim! Claro que em cidades como
Nova Iorque, São Francisco, Los Angeles uma jovem mulher pode ter uma vida
igual a um jovem rapaz. Mas noutros sítios é muito diferente. E há outra coisa
que para os europeus é muito estranho, mas que acontece. Nos EUA, o município
pode determinar o currículo das suas escolas. Pode determinar, por exemplo, se
os professores de ciência vão ensinar evolução e criacionismo como se fossem
igualmente científicos. Isto promove uma sociedade com variações gigantescas
entres estados. Massachusetts é o estado com maior nível de escolaridade e
votou Hillary Clinton; Arcansas é o oposto e votou Trump. Para nunca mais
termos um demagogo ignorante como presidente a única solução duradoura é dar
aos jovens uma educação completa.
Quando soube
da vitória de Trump referiu que sentiu “dor física”. Os resultados eleitorais
fizeram com que se sentisse um pouco mais português e menos norte-americano?
Não. Gosto muito do estatuto
híbrido que tenho, só me dá vantagens ter a dupla cidadania, um cérebro que é
metade português e metade americano, falar duas línguas. Em criança nunca
pensei que teria esta possibilidade de viver como mutante. Mas o que senti com
estes resultados foi uma grande vergonha por ver o meu país de origem
controlado por um ser primário, grosseiro, ignorante, racista, xenófobo,
misógino.
O que o
preocupa mais em relação a Trump: as grandes questões, como são os conflitos
internacionais; ou questões sociais como o Obamacare, a despenalização do
aborto, o casamento homossexual?
A curto prazo tenho mais
receio em relação às questões sociais porque vai levar algum tempo até Trump
conseguir estragar a nossa política internacional. Ele não pode falar com a
Angela Merkel como fala com a Hillary Clinton, por exemplo. Os primeiros estragos
terão a ver com a vida quotidiana dos americanos. Primeiro estou convencido que
ele vai tentar, através das nomeações para o Supremo Tribunal, anular a decisão
Roe Vs Wade, uma decisão histórica que descriminalizou o aborto e mudou a
América em termos de direitos femininos. Provavelmente, o que vai acontecer é
que esta decisão será devolvida aos estados e, num dia, estados como o Arcansas
e o Indiana vão criminalizar o aborto outra vez e as mulheres desses estados
vão ter de viajar para outros estados para fazerem um aborto.
Um pouco
como aconteceu, durante anos, com as portuguesas que tinham de ir até Espanha.
Exatamente. Ou isso ou fazer
ilegalmente, o que é um perigo para a saúde. Isto é discriminação para com as
mulheres mais pobres. Depois, acho que rapidamente Trump vai criminalizar a
utilização da marijuana para fins medicinais. E também já ameaçou baixar o
nível mais alto de impostos para as empresas de 35% para 15% - mas onde vai
conseguir ir buscar as receitas que vai perder com isto? Em cortes na cultura,
na educação e na saúde, ou seja, Obamacare. Ele prometeu aos seus apoiantes que
iria eliminar o Obamacare, e tem de dar aos seus apoiantes o que prometeu. Já
para não falar dos acordos de Paris. Os republicanos, hoje em dia, são um
partido anti-científico. Por último, acho que grupos mais radicais de direita e
milícias como o Ku Klux Klan, se sentem empowered com esta vitória. A
comunidade negra, que no último ano já teve muitos episódios com forças
policiais, neste momento sente-se ameaçada.
Tal como
o Richard se sentiria se vivesse atualmente nos EUA, sendo homossexual?
Não gostaria de ser
homossexual e viver numa zona rural dos EUA. Mas acho que as grandes cidades
vão resistir sempre - ele nunca vai conseguir tirar de Nova Iorque o que é
especial na cidade. As pessoas marginalizadas vão encontrar refúgio nessas
grandes cidades.
Em 2010,
em resposta ao questionário Proust, dizia que as suas ocupações favoritas eram
escrever e fazer festinhas. É uma boa forma de o descrever: por um lado o homem
que escreve, por outro o homem dos afetos?
Sim, são as duas partes da
minha vida. A minha parte profissional é escrever, escrever, escrever. Escrever
é o meu pequeno contributo para o mundo. Depois tenho a minha vida privada e
gosto de mimo. Não sou uma pessoa complicada: preciso de mimo e algumas horas
por dia para escrever. Com 60 anos já não tenho força para ter uma vida
complexa. Escrever e mimo chegam-me.
E não
sobra nada do menino que, aos 13 anos, sonhava ser o basquetebolista Dr. J?
O Dr. J era espetacular!
Primeiro quis ser jogador de basebol, depois jogador de basquetebol, depois
rockstar. Nada disso resultou. Mas ainda há uma parte de mim que é criança:
gosto de cantar em casa e gosto de imaginar que sou o Dr. J. Se pudesse voltar
atrás teria dedicado mais tempo ao basquetebol. Mas quando somos jovens não
percebemos as nossas capacidades, só pensamos que somos estúpidos e feios.
Agora sei que tinha certas capacidades que não explorei porque não tinha
confiança em mim.
A
consciência da homossexualidade teve influência no facto de não ter explorado
melhor essas capacidades, nomeadamente atléticas?
Não, era um grande atleta.
Nunca questionei a minha masculinidade.
Mas a sua
descoberta da homossexualidade aconteceu muito cedo, não foi?
Sempre suspeitei, desde os dez
anos. Porque as minhas fantasias sempre envolveram homens. Mas quando temos
essa idade nem percebemos o que isso significa. Quando percebi que deveria
fantasiar com raparigas fiquei em pânico. Tinha uns 17 anos.
Que é uma
fase já complicada por si só.
A adolescência é terrível, é
um período em que achamos que não temos valor. E ser homossexual é outro peso
porque achamos que nunca vamos ter amigos, que os pais nos vão rejeitar. Ainda
por cima, não tinha os tiques mais estereotipados dos homossexuais, portanto
pensava que, se realmente fosse homossexual, seria um homossexual muito
esquisito e ninguém me iria aceitar.
Quando
chegou a paz em relação a si próprio e à sua sexualidade?
Apenas quando me assumi.
Percebi que ia perder alguns amigos, mas que ia ganhar outros. Foi uma
libertação espetacular, que aconteceu já em São Francisco. O segundo passo para
me sentir em paz foi quando me apaixonei pelo Alexandre. A sensação de estar
apaixonado foi tão forte no meu corpo que foi impossível pensar que não era
correto. Se sentia o que sentia, obviamente que esse era o caminho certo. É
pena que nem toda a gente tenha essa experiência de se apaixonar por alguém de
forma tão forte. Eu fiquei siderado com amor. Por isso digo que a diferença
para mim não é entre hetero e homossexuais, mas entre pessoas que compreendem a
paixão, o amor e o sexo, e os que não compreendem. Quando oiço um homofóbico
falar acho sempre que é alguém que nunca quis passar dez dias seguidos na cama
com uma pessoa. Senão compreenderia. Tenho pena dessas pessoas.
Perguntam-lhe
muitas vezes qual o segredo para estar quase 40 anos com a mesma pessoa?
Sim. Mas não sei se há um
segredo. Acho que tivemos sorte. Gosto dele e evoluímos juntos - acho que isso
é importante. Qualquer casamento tem três elementos: eu, o outro e o casamento.
Quem não valoriza essa terceira entidade não vai durar. Depois é preciso haver
respeito. Isso foi uma conquista difícil para mim porque o modelo que tinha dos
meus pais não era bom - eles tinham uma relação péssima, não se respeitavam,
diziam coisas abomináveis. Tive de conquistar esse respeito, porque amava o
Alexandre, mas no início não respeitava a sua opinião, a sua independência, a
sua maneira de ser, muito diferente da minha.
É preciso
aprender a amar?
Sim. Isso aprendi com a minha
mãe, apesar de todas as dificuldades que tinha com ela. Podíamos ter uma
discussão terrível e ela pegava na minha mãe e dizia: “Podemos voltar ao início
porque isto não correu bem?”. E eu confiava na mão dela. Foi a minha mãe que me
ensinou que, por vezes, basta dar um beijinho ou pegar na mão. Nunca me deito
zangado com o Alexandre, não sou capaz. Isto foi o Alexandre que teve de
aprender comigo. Ele não confessava que estava chateado, durante dias, semanas,
e depois explodia. Isso não dá. Antes de irmos para a cama, se temos algo para
falar, eu digo: “Sei que estás cansado, mas temos de falar, são dez minutos.” E
resulta.
Voltou a
falar da sua mãe. Foi uma presença mais vincada na sua vida do que o seu pai?
O meu pai não era uma pessoa
afetiva, não mostrava as emoções. Exceto a raiva. Era um homem frustrado,
zangado, violento. Criava um clima de medo em casa. A qualquer momento podia
rebentar como uma granada. Por isso nunca lhe pedia nada, nem opiniões nem
ajuda, pois não sabia como ele iria reagir. Ainda hoje tenho dificuldade em
pedir ajuda.
Falou com
os seus pais sobre homossexualidade?
Sim. Mas foi muito difícil com
o meu pai. A nossa relação não era boa. Ele só queria que eu tivesse uma
profissão que me desse dinheiro. Mas pelo menos deixou-me viver. A minha mãe
era uma mulher abatida, que tinha medo da vida e das pessoas. Aconselhava-me
sempre a não arriscar, mas eu queria arriscar! Mais tarde passei eu a ser o pai
e ela o filho. Quando ela me mostrava o seu lado contido, eu ficava fulo, e
dizia-lhe que não aceitava a conversa dela de que não era nada! Lembro-me que,
depois de o meu pai morrer, ela quis vender o carro dele. E pediu-me para
tratar de tudo porque não sabia pôr um anúncio. Tinha um mestrado em
bioquímica, como é que não sabia pôr um anúncio? Mas depois o meu irmão Michael
era como o meu pai e minava tudo. E lá tinha eu que lhe dar força outra vez
para o fazer sozinha. Lá acabou por colocar um anúncio onde pedia 3500 dólares
pelo carro - com o meu irmão a dizer que nunca ia conseguir nem metade. Dois
dias mais tarde vendeu o carro por 3500 dólares. Disse-lhe: “Estás a ver, tens
mais capacidades do que o morcão do teu outro filho acha!” O meu pai minou a
confiança da minha mãe. Uma mulher com a confiança minada é mais facilmente
controlável.
Foi para
fugir a tudo isso que se mudou de Nova Iorque para São Francisco?
Sim, foi a minha maneira de
fugir às expectativas das pessoas. Cheguei a São Francisco já com uma
licenciatura em Religião Comparada, uma mala muito grande e 500 dólares.
Primeiro fiquei em Berkeley e comecei a trabalhar como empregado de mesa num
restaurante. Adorei sentir a liberdade total. Ganhava o suficiente para comer e
pagar a renda. Foi nesta altura que comecei a explorar a minha sexualidade.
Estamos a
falar dos anos em que São Francisco era a cidade símbolo da libertação
homossexual, com Harvey Milk como figura central.
Sim. Conheci-o mais tarde.
Depois de viver em Berkeley um ano mudei-me para o Castro. Vivia, com uma
amiga, a um quarteirão da loja dele de máquinas fotográficas. Ele já era
vereador na câmara mas quase todas as tardes ia à loja. Era um homem muito
carismático, com um sorriso muito bonito. São Francisco foi o primeiro sítio
nos EUA onde ser homossexual era um não-assunto.
Foi nesse
cenário que teve as primeiras experiências homossexuais?
Absolutamente. Mas não foram
muito boas, porque as primeiras experiências são sempre desajeitadas. Ainda
assim serviram para perceber que era o caminho certo para mim. É nesta altura
que, um dia, entro num café, vejo o Alexandre do outro lado da sala, e me
apaixono instantaneamente.
Mas o
Alexandre começou por dizer-lhe que não queria ser visto consigo.
Ele desconfiava que eu fosse
um marginal, um drogado... Mas depois de passarmos três dias juntos nunca mais
nos largámos. Foi uma sorte incrível. A 6 de dezembro fazemos 38 anos juntos.
Quando
decide que quer estudar jornalismo?
Em 1982. Até lá os meus
trabalhos foram sempre coisas provisórias. Além de empregado de mesa, fui
estafeta e secretário da Victoria’s Secret. Foi maravilhoso trabalhar ali,
ainda estava lá o Roy [Raymund, fundador da marca]. Já tínhamos um catálogo
maravilhoso, cheio de mulheres lindas.
Nunca
escrevia, nem para ficar na gaveta?
Escrevia coisas pequenas,
críticas de música, porque tinha estudado música clássica. Mas tinha muita
vontade de escrever e foi por isso que fui tirar o mestrado em jornalismo, para
aprender a escrever. Fui jornalista durante oito anos.
Sobre o
que escrevia?
Sobre negócios, ninguém me
pagava para escrever sobre cultura. Mas foi muito interessante. Depois fui
trabalhar para a comunicação de uma empresa grande. Mas sabia, desde o início,
que o jornalismo não era o objetivo. Por isso me demiti.
Lembra-se
do que sentiu a primeira vez que se sentou para escrever um romance?
Felizmente comecei com contos,
onde o medo não é tão grande. Mas os primeiros não eram bons. Tive de descobrir
a minha voz. Só dois anos mais tarde, depois de uns 40 contos, consegui
escrever uns inteligentes e sensíveis. Nessa altura achei que podia escrever um
romance e comecei a investigar para “O Último Cabalista de Lisboa”.
Que
relação tinha, nessa altura, com Lisboa?
Visitava a cidade de dois em
dois anos. Mas foi um acaso que Lisboa fosse o palco do meu primeiro romance.
Estava a ler sobre iluminuras hebraicas e havia uma escola de iluminura em
Lisboa. Foi isso que deu o clique.
O facto
de o seu primeiro romance ter sido um sucesso trouxe-lhe muita pressão?
Não porque eu já tinha 40 anos
e uma relação estável. Nunca perdi a cabeça a achar que era importante. Hoje em
dia os jovens escritores portugueses, ao venderem bem um ou dois romances,
acham logo que são génios. Mas eu tive outro problema. Quando temos sucesso com
o primeiro livro pensamos que provavelmente isso vai acontecer com os outros
livros e no meu caso não aconteceu. “Meia-noite ou o Princípio do Mundo” foi um
sucesso em Portugal e Inglaterra, mas um fracasso total nos EUA. Esse fracasso
ensinou-me que não há garantias.
Foi
depois disso que se mudou para o Porto?
Não, mudei-me antes. Vivi esse
fracasso a partir de Portugal. Viemos para Portugal porque São Francisco, nos
anos 80, se tornou uma cidade muito deprimida por causa da sida. Não se falava
de outra coisa. Toda a gente conhecia alguém que estava doente, a morrer. O
clima da cidade mudou de um dia para o outro, de uma cidade muito aberta e com
muita luz para uma cidade com a morte a pairar sobre as colinas. Na mesma
altura o meu irmão, também homossexual, morreu, também com sida, mas em Nova
Iorque. Foi o período mais traumático da minha vida. Não estava a aguentar,
estava com uma depressão forte. O Alexandre achou que tínhamos de mudar para um
sítio onde se falasse de outras coisas e como tinha recebido um convite para
dar aulas no Instituto Biomédico Abel Salazar, mudámo-nos em 1990.
Veio dar
aulas para a Escola Superior de Jornalismo. O que recorda dos primeiros tempos
no Porto?
Era uma cidade fechada, parada
no tempo. Só havia uma loja que vendia jornais estrangeiros. Quando precisava
de algo para o meu computador Apple tinha de contactar Amesterdão. Os primeiros
três ou quatro anos foram muito difíceis. Muito stress, poucos amigos, não
falava a língua. Tinha passado o verão a preparar-me para lecionar três
disciplinas, o diretor tinha-me disto que podia dar aulas em inglês. Mas logo
na primeira aula vi que ninguém percebia nada do que dizia. Tinha duas
alternativas: ou continuava a dar aulas em inglês e ninguém ia perceber nada ou
mudava para uma mistura de português e inglês. Fiz um esforço enorme para
aprender 40 substantivos, cinco verbos e dez adjetivos. Mas sentia um stress
constante porque sabia que as minhas aulas não eram muito boas.
Apesar
desse stress, o facto de já não estar rodeado por conversas sobre sida,
trouxe-lhe liberdade?
Sim, vir para Portugal
salvou-me a vida. Aqui ninguém falava em sida. Podia respirar livremente. Pude
despedir-me do meu irmão e ao mesmo tempo ter uma nova aventura. E tinha a
relação com o Alexandre, que me ajudou muito.
Nestes
anos todos nunca ponderou voltar a viver nos EUA?
Não. Gosto de viver em
Portugal. Mas gostava de passar dois ou três meses por ano lá, no deserto, que
me descontrai muito. Claro que, com o Alexandre no parlamento, não tenho
possibilidade.
Porque
foi importante para si casar, ao fim de tantos anos de relação?
Primeiro de tudo por razões
legais. Enquanto vivíamos nos EUA a comunidade homossexual tinha um medo
terrível porque nos faltava o direito legal de acompanharmos na doença a pessoa
que amávamos. Tive amigos que foram expulsos dos hospitais. Essa memória fez
com que sempre dissesse que, quando fosse possível, casaria. Em segundo lugar,
muita gente sofreu calúnias e agressões físicas para conseguirmos a igualdade.
Devia-lhes o meu casamento.
E nunca
pensou adotar uma criança?
Houve uma altura em que
gostava de o ter feito, mas o Alexandre não queria. Não é um remorso que me dê
dor, mas gostaria de ter tido uma criança. Mas não podemos ter tudo na vida.
Consegue
imaginar a sua vida sem o Alexandre?
Sim, consigo. Mas a minha vida
com ele é muito mais feliz e realizada. Ultimamente tenho pensado muito nisto
por causa do romance que estou a escrever. Quando duas pessoas estão
espiritual, fisica e legalmente casadas fazem uma viagem juntos. E sejam quais
forem os problemas continuam juntas nessa viagem. Até porque a vida é mais
difícil quando viajamos sozinhos.
jornal Sol de
30 de
novembro de 2016
Desenho by Joana Pinto, 2014 |
Lola
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