Pessoa - o que é?
A noção de pessoa está no centro do pensamento moral
do Ocidente.
Tem uma fonte histórica dupla: jurídica e religiosa. Por um lado
tem a sua origem no direito romano e atribui-se a todo aquele que tem uma
existência civil e direitos, ao contrário do escravo, que não tem direitos.
Foram os filósofos estóicos que lhe conferiram um sentido moral: o termo
"pessoa» designava originariamente uma máscara, tendo depois tomado o
sentido de papel numa peça de teatro e, por analogia, como é evidente em Epicteto
e Marco Aurélio, a função que a Providência estabelece para cada homem durante
a sua vida.
A outra fonte histórica é a tradição judaico-cristã: a
do Antigo Testamento, que prescreve o amor por todos os homens (inclusive os
estrangeiros) e o socorro à viúva, ao órfão, ao oprimido, ao pobre e ao
esfomeado. O Novo Testamento retoma este dever de caridade universal, mas vai
mais longe, identificando o amor do próximo com o amor de Deus e pregando o
amor aos próprios inimigos. Além disso, afirma a igualdade das almas, coisa
muito diferente da função exercida na cidade e da posição ocupada na hierarquia
social. O que importa não é a aparência exterior, mas o interior, aquilo que
constitui a alma da acção no sentido pleno da palavra: a intenção. Daí a
proibição de julgarmos os outros porque o futuro está aberto para o homem, para
a mulher adúltera, para o filho pródigo. A humanidade é, para o cristianismo, a
virtude essencial e traduz-se pelo espírito de simplicidade do qual as crianças
são, ao longo dos Evangelhos, o símbolo.
Contudo, nos Evangelhos, a ideia de igualdade das
pessoas apresenta-se sob a forma de predicação e de exortação: tratar todos os
homens como humanos e iguais.
É com Kant, no século XVIII, que a pessoa se
torna uma noção propriamente filosófica. É verdade que, educado no seio de uma
família pertencente a uma seita protestante muito rigorosa (o pietismo), Kant
meditou longamente sobre os grandes textos da Bíblia e do cristianismo, mas o
seu objectivo principal foi o de constituir uma moral racional, independente da
religião. A pessoa é o homem enquanto ser racional. Em 1785, na obra
Fundamentos da Metafísica dos Costumes, Kant lança as bases de uma ética da
pessoa e, no essencial, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, retoma esses princípios.
Nessa obra Kant enuncia pela primeira vez estes
princípios fundamentais: o homem é um fim em si, é uma pessoa e distingue-se
das coisas. Para Kant considerar o homem como fim em si é considerar cada homem
como uma pessoa, isto é, como um valor absoluto e não como um meio ao serviço
de um fim. Assim o ser racional identifica-se com a razão e tal como esta não
deve estar subordinada a condições estranhas, a princípios externos.
Compreende-se assim que a pessoa se distingue de tudo
o que, sob o nome de necessidades e de inclinações, constitui aquilo a que se
chama individualidade. Daí Kant tira a máxima do imperativo moral que deve
ordenar a nossa conduta, quer individual quer colectiva, e que prescreve ao
mesmo tempo o respeito por si e o respeito pelos outros:
Age sempre de maneira que trates a humanidade quer na
tua pessoa quer na pessoa do outro, sempre e ao mesmo tempo como um fim e nunca
simplesmente como um meio.
A divisão social do trabalho implica que cada homem
exerce uma função útil no seio da sociedade. A vida social funda-se numa
reciprocidade de serviços e, neste sentido, todos os homens são meios ao
serviço dos outros. Por exemplo, o médico chamado a meio da noite à cabeceira
de um doente não tem o direito de recusar o seu socorro, mas são se torna por
isso escravo do doente que o retribui. A sua dignidade de pessoa não é de modo
algum afectada a assim deve ser para qualquer profissão, trabalho ou função.
Ninguém tem o direito moral de impor a um homem uma
tarefa que possa alienar o seu valor como ser humano. Ninguém tem o direito
moral de utilizar um ser humano para obter prazer ou satisfazer interesses.
Ninguém tem o direito moral de se tratar a si próprio como uma coisa. É faltar
ao respeito por si mesmo, tal como qualquer forma de injustiça ou de opressão é
uma falta de respeito pelos outros.
Apercebemo-nos de que aquilo a que se convencionou
chamar civilização ocidental se funda nesta ética da pessoa teorizada por Kant.
Os fundamentos estabelecidos por Kant foram desenvolvidos pela Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e pela Declaração dos Direitos
Universais do Homem de 1948, continuando a ser um ideal a realizar plenamente
nos factos e nas instituições. Respeito e dignidade da pessoa humana, valor
absoluto da pessoa, são expressões que se tornaram familiares e que Kant pela
primeira vez explicitou: a pessoa é o ser racional, é o ser livre. E esta
liberdade que o torna livre não é capricho, fantasia ou arbitrariedade, mas sim
autonomia.
Autonomia significa ao mesmo tempo obedecer e ter a
capacidade de comandar, de ordenar. Obediência da parte daquilo que em nós é
sentimentos, impulsos, inclinações sensíveis. Comando da parte da razão, à qual
todo e qualquer impulso se deve subordinar porque nós próprios e os outros
podemos ser vítimas das nossas paixões incontroladas.
Assim o homem enquanto ser racional só obedece a si
mesmo e só obedece à sua própria legislação. O fundamento da dignidade de um
ser racional como o homem consiste em que não obedece a outra lei senão a que
ele próprio, enquanto racional, institui. Como todos os homens, enquanto seres
racionais, são sujeitos e autores da lei segundo a qual nenhum deve, alguma
vez, tratar-se a si mesmo e os outros como simples meios mas sempre e ao mesmo
tempo como fins em si; deriva daí a possibilidade de uma ligação sistemática
dos seres racionais mediante leis objectivas comuns.
Este mundo ou comunidade
ideal onde os homens se tratam reciprocamente como fins em si tem em Kant o
nome de reino dos fins.
Louis Marie Morfaux,
L'épreuveécrite de philosophie,
ArmandColin, pp. 265-568
Lola
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