O critério da universalização
Irei
descrever agora a ideia de Kant segundo a qual a razão (e não o desejo)
determina o que está certo e o que está errado fazer. Não esqueças que a lei
moral (tal como a lei científica) terá de ser universal. Isto significa que a
acção moral terá de incorporar uma máxima universalizalizável. Para
decidir se estará certo realizar uma acção particular, Kant diz que deves
perguntar se queres que a tua máxima se torne uma lei universal. A universalização é a base de todos os imperativos categóricos — de todas as prescrições morais.
Os actos morais podem ser universalizados; os actos imorais não.
É importante
perceber o que este teste implica.
É um erro pensar que Kant diz que deves
perguntar se seria bom ou mau que todos realizassem a acção que tens em mente.
A ideia acerca das acções imorais não é que seria mau que
todos as realizassem; a ideia é que é impossível que todos as
realizem (ou que é impossível para ti querer que todos as
realizem). Tal como os exemplos de Kant ilustrarão há, por assim dizer, um
teste lógico para saber se uma acção é moral.
Quatro
exemplos
No
livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Kant
aplica esta ideia a quatro exemplos.
O primeiro descreve um homem cansado da vida que tenciona suicidar-se. O homem considera a máxima de pôr termo à vida se continuar a viver produziria mais dor que prazer. Kant diz que é duvidoso se este princípio de amor-próprio possa tornar-se uma lei universal da natureza. Imediatamente se vê uma contradição num sistema natural cuja lei fosse destruir a vida, dada a convicção de que a especial função de tal sistema é promover o aperfeiçoamento da vida. Neste caso, tal sistema natural não poderia existir. Logo, esta máxima não pode tornar-se lei universal da natureza e assim contradiz o princípio supremo de todo o dever.
O primeiro descreve um homem cansado da vida que tenciona suicidar-se. O homem considera a máxima de pôr termo à vida se continuar a viver produziria mais dor que prazer. Kant diz que é duvidoso se este princípio de amor-próprio possa tornar-se uma lei universal da natureza. Imediatamente se vê uma contradição num sistema natural cuja lei fosse destruir a vida, dada a convicção de que a especial função de tal sistema é promover o aperfeiçoamento da vida. Neste caso, tal sistema natural não poderia existir. Logo, esta máxima não pode tornar-se lei universal da natureza e assim contradiz o princípio supremo de todo o dever.
Kant sugere
que é impossível existir um mundo no qual todos os seres vivos decidem cometer
suicídio quando as suas vidas prometem mais dor que prazer. Dado que não pode
existir um mundo desses, é errado o indivíduo do exemplo de Kant cometer
suicídio. O acto é errado porque não pode ser universalizado.
O segundo
exemplo diz respeito a cumprir promessas. Precisas de dinheiro e ponderas se o
pedes emprestado. A questão é se seria permissível prometeres pagar o
empréstimo mesmo que não tenhas a intenção de o fazer. Kant argumenta que a
moralidade exige que cumpras a promessa (e por isso que não peças dinheiro
emprestado com falsas intenções):
Dado que a
universalidade da lei segundo a qual uma pessoa em dificuldade pode prometer o
que lhe convier com a intenção de não cumprir a promessa tornaria impossíveis a
própria promessa e o fim que ela persegue; nenhuma pessoa acreditaria no que
lhe foi prometido e tais vãs intenções apenas a fariam rir.
O que Kant
está a dizer é que cumprir promessas não poderia estabelecer-se como prática se
todos os que fizeram promessas tinham a intenção de não as cumprir. O que quer
dizer que tal prática pode existir apenas porque as pessoas habitualmente são
dignas de confiança. Mais uma vez, a razão de sermos obrigados a cumprir as
nossas promessas é que seria impossível um mundo no qual todos fizessem
promessas com a intenção de as quebrar. A universalização é a prova de
fogo.
O terceiro
exemplo tem o propósito de mostrar que cada um de nós tem a obrigação de
desenvolver os seus talentos. Por que devemos nós “alargar e desenvolver os
nossos dons naturais”? Em vez disso, por que não escolher uma vida de
“ociosidade, complacência e prodigalidade”? Cada pessoa tem de escolher a primeira
porque, afirma Kant, “como ser racional, a pessoa necessariamente deseja que
todas as suas faculdades devam ser desenvolvidas, uma vez que lhe foram dadas
para todas as espécies de propósitos possíveis.”
O quarto
exemplo é o de um homem a quem a vida sorri mas que vê outros terem vidas de
grande privação. Terá ele a obrigação de os ajudar? Kant concede que a
humanidade poderia existir num estado em que alguns vivem bem enquanto outros
sofrem. Mas afirma que nenhum agente racional pode desejar um mundo assim:
Ora, se bem
que seja possível existir uma lei universal da natureza de acordo com esta
máxima, é todavia impossível desejar que tal princípio deva estabelecer-se em
toda a parte como lei da natureza. Porque uma vontade que assim decidisse
entraria em conflito consigo própria, uma vez que podem surgir frequentemente
circunstâncias em que a pessoa precisaria do amor e simpatia dos outros e,
devido a tal lei da natureza que emana da sua vontade, privar-se-ía de toda a
esperança de ajuda que deseja.
A ideia de
Kant não é que este padrão não possa ser universal, mas que nenhum agente
racional poderia desejar que fosse universal.
Avaliação dos exemplos de Kant
Destes
exemplos, o mais fraco é talvez o primeiro. Não é impossível existir um mundo
em que todos os doentes terminais sujeitos a um grande sofrimento cometem
suicídio. E também não parece haver qualquer razão para que um agente racional
não pudesse desejar que todas as pessoas poupassem a si próprias a
inevitabilidade de uma morte dolorosa.
O segundo
exemplo é um pouco mais plausível. A prática do cumprimento de promessas parece
confiar no facto de que as pessoas habitualmente acreditam nas promessas que
lhes são feitas. Se as pessoas nunca tivessem a intenção de cumprir as suas
promessas poderia tal prática persistir? Kant diz que não. Todavia, talvez seja
possível imaginar circunstâncias engenhosas nas quais esta conclusão pudesse
ser contornada. Convido-te a fazer este exercício.
Talvez alguma
coisa possa também ser dita do argumento de Kant acerca do nosso dever de
ajudar os outros. Cada um de nós precisa de alguma espécie de ajuda em algum
momento da vida. Por consequência, cada um de nós desejaria evitar uma situação
em que ninguém nos daria a ajuda de que precisamos. Logo, não podemos desejar que
ninguém deva jamais fornecer ajuda. Isto significa que seria errado da nossa
parte conduzir a vida recusando completamente prestar ajuda aos outros. Mais
uma vez, a razão pela qual seria errado é que não podemos desejar que o padrão
seja universal.
Que argumento
apresenta Kant no quarto exemplo a respeito do dever de desenvolvermos os
nossos talentos? Talvez o raciocínio seja semelhante àquele que é usado por
Kant na discussão do dever de ajudar os outros. Eu quero que os outros
desenvolvam os talentos que me serão benéficos; por exemplo, quero que os
médicos aperfeiçoem as suas competências, uma vez que um dia precisarei deles.
Mas isto significa que eu não posso desejar que todos descuidem o
desenvolvimento dos seus talentos. Segue-se supostamente que eu tenho o dever
de desenvolver os meus talentos.
Já sublinhei
antes que o critério de universalização não pergunta se seria bom que todos
realizassem a acção que o agente pensa realizar. A questão de Kant é saber se
seria possível que todos realizassem a acção, ou se
seria possível desejar que todos devessem realizar a acção.
Se tivermos
isto em mente, é duvidoso se Kant pode chegar às conclusões pretendidas a
respeito dos últimos dois exemplos sem uma explicação que tenha em conta as
consequências. É claramente possível que o mundo seja um lugar
em que ninguém ajuda os outros e ninguém desenvolve os seus talentos. Trata-se
de um estado de coisas lamentável, e não de um estado de coisas impossível. O
que pensar da segunda opção — poderia um agente racional desejar que as pessoas
não ajudem os outros ou não desenvolvam os seus talentos?
Isso depende
do que se quer dizer com “racional”. Se racional significa instrumentalmente
racional, então não parece haver qualquer impossibilidade. Como diz Hume, posso
ser perfeitamente claro no meu raciocínio meios/fim (e por isso ser
instrumentalmente racional) e ter os desejos mais bizarros que podes imaginar.
Por outro lado, há um sentido de “racional” segundo o qual um agente racional
não desejaria que o mundo fosse um lugar em que as pessoas não ajudam os outros
ou não desenvolvem os seus talentos. Um agente racional não o desejaria
devido às consequências que tais comportamentos teriam. Num mundo
assim haveria muito sofrimento, alienação e desespero; a vida seria desolada.
A conclusão
que retiro é que não é claro como podem ser feitas as análises de Kant dos
últimos exemplos sem considerar as consequências que resultariam de tais acções
se tornarem universais.
Um problema
do critério de universalização
Há um
problema geral nos quatro exemplos de Kant — na verdade, há um problema no
próprio critério de universalização Um objecto singular exemplifica vários
tipos. Isto significa que uma dada acção pode ser descrita como incorporando
diferentes propriedades. Kant parece pressupor que cada acção incorpora apenas
uma máxima, de maneira que podemos testar a moralidade de um acto
universalizando a sua máxima. O problema é que há várias máximas que podem
conduzir a uma determinada acção; algumas podem ser universalizadas, enquanto
outras não.
Vejamos este
problema no exemplo da promessa. Alguém tem de decidir se pede dinheiro
emprestado prometendo que paga o empréstimo, embora não tenha a intenção de
cumprir a promessa. O que significaria isto caso todos se comportassem assim?
Uma maneira de descrever esta acção decorre da máxima “Faz uma promessa mesmo
que tenhas a intenção de a quebrar”. Kant afirma que universalizar esta máxima
é impossível porque a proposição seguinte é uma contradição:
Todos fazem
promessas mesmo que ninguém tenha a intenção de cumprir as promessas que faz.
Todavia,
também podemos descrever a acção do homem como decorrendo de uma máxima
bastante diferente: “Não faças promessas a menos que tenhas a intenção de as
cumprir, excepto se estiveres numa situação de vida ou de morte e se a tua
intenção de quebrar a promessa não for evidente para os outros”. Universalizar
esta máxima não conduz a contradição, uma vez que é perfeitamente possível que
o mundo seja da seguinte maneira:
Todos fazem
promessas e em geral as pessoas esperam cumprir as promessas. A excepção surge
quando há uma enorme vantagem pessoal em fazer a promessa sem a intenção de a
cumprir e a intenção de quebrar a promessa não é evidente para os outros.
Longe de ser
impossível, esta generalização parece descrever de maneira bastante exacta o
mundo em que efectivamente vivemos.
Repara na
semelhança entre o problema que Kant enfrenta e um dos problemas do
utilitarismo das regras. “O que aconteceria se todos realizassem a acção?” é
uma questão que o utilitarismo das regras pensa ser importante na avaliação das
propriedades morais de uma acção. A questão de Kant é diferente; ele pergunta
“Podem todos realizar a acção?” ou “Posso desejar que todos realizem a acção?”
Embora as questões sejam diferentes, problemas semelhantes derivam do facto de
haver múltiplas maneiras de descrever qualquer acção.
Leis morais e Leis Cientificas
O critério de
universalização parece plausível se considerarmos seriamente a analogia entre
as leis morais e as leis científicas. Ambas têm de ser universais e impessoais.
Mas outra comparação entre estas duas ideias diminui a plausibilidade de pensar
que o critério de universalização tem condições para resultar.
As leis
científicas têm de ser universais mas a explicação verdadeira de um fenómeno
específico não pode ser derivada a priori. Por si só, a razão não
pode dizer-me por que descreve a Terra uma órbita elíptica em torno do Sol,
ainda que eu tenha o pressuposto de que a explicação deste facto tenha de ser
verdadeira para todos os sistemas planetários semelhantes. Por outro lado, Kant
defendeu que numa situação específica o que está certo fazer é ditado pela
exigência racional de universalização
Evidentemente
que um facto importante acerca da moralidade é que, se uma acção particular
está certa para mim, então está certa para qualquer pessoa numa situação
semelhante. Esta é a ideia de que as leis morais — os princípios gerais que
ditam o que está certo fazer — são universais e impessoais. O problema é que
esta exigência não é suficiente para mostrar que generalizações morais são
verdadeiras.
Se assim é, a analogia entre leis científicas e leis morais tem
implicações diferentes daquelas que Kant tentou desenvolver.
in A teoria moral de Kant
Elliott Sober
Tradução de Faustino Vaz
Lola
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