terça-feira, 18 de abril de 2017

Mundividências




Mundividências



«Vi que existe a mesma dignidade em qualquer pessoa» 


Da vila de Arouca e estudante de Belas Artes na Universidade do Porto, André Gomes decidiu experimentar o voluntariado e a descoberta de novas realidades e paisagens humanas. Projectos da Fundação Lapa do Lobo e da Associação Gap Year despertaram-lhe a curiosidade e daí à deliberação foi um passo. O novo destino levou-o sucessivamente à Índia, Sri Lanka, Nepal e Irão.
Durante meses, constatou grandezas e misérias humanas, gravadas em desenhos e fotografias, cada qual com uma história significativa.
 O jovem arouquense contou ao RODA VIVA como foi.

Não há muitos jovens a deixar a casa, a família, em prol de uma experiência não europeia. Como surgiu esta iniciativa? Tudo surgiu quando a Associação Gap Year Portugal lançou um concurso nacional. Informei-me sobre o que pretendiam e o que é que eu podia fazer num projecto assim. Fui seleccionado e acabei por ser patrocinado não só pela associação mas também por outras ajudas de entidades de Arouca.

Qual era a sua expectativa? Senti que a viagem também era uma das minhas paixões e esta era uma oportunidade excelente para pôr em prática aquilo que eu acredito ser importante também para o meu futuro. Depois da viagem, confirmei todos os valores e pedagogia que esta experiência nos pode trazer.

O primeiro lugar onde chegou foi à Índia. Como foi? Os primeiros dias foram os mais marcantes. Conheci outras pessoas, com as quais ainda hoje tenho contacto. Conheci templos, lugares históricos e entrei no voluntariado. Estive numa instituição de crianças, completamente isolada no meio de florestas exóticas. Tudo pobre, a ruralidade máxima da Índia. A instituição acabava por ter uma influência grande na alimentação das crianças e a nível da escola. Embrenhei-me completamente na cultura deles... comer com as mãos, por exemplo. Era marcante a forma feliz como olhavam para nós. É uma experiência que nos enriquece - este é o lado "egoísta" do voluntariado - mas também sentimos que a nossa influência é pequena face à enormidade dos problemas que há para resolver nestas comunidades.





O que achou do contraste entre uma Europa farta e países como a Índia? Não dá para generalizar.
Cada região é um sítio completamente diferente. Goa está cheia de turistas, há zonas isoladas, há as regiões montanhosas, as cidades espelham grandes contrastes, onde se vê núcleos de modernidade e riqueza e outros de fome e de lepra.

Depois foi para o Sri Lanka... Estive numa ecocomunidade, de voluntariado não com crianças mas numa quinta, onde vivia numa cabana, no meio da floresta. Tratávamos do estrume, dos campos de arroz, guiávamos as vacas e as cabras. Coincidiu com o período de Natal e Ano Novo ocidental. Acabei por nem ter noção destes dias, porque a comunidade budista não tem estes conceitos. No Nepal, para onde fui depois, acabei por festejar com a comunidade o Ano Novo nepalês de 2074.







E voltou à Índia... Fiquei aí mais um mês e meio. Conheci aí os "homens sagrados", que são de uma casta elevada. Estive no deserto, depois fui para Jaipur fazer um retiro budista de dez dias. Acordava às quatro da manhã, imperava o voto de silêncio, a alimentação era vegetariana, a meditação ocupava várias horas por dia, seguindo as lições do mestre. Sem entrar no cliché do autoconhecimento, acabou por ser um momento de aprender uma base moral.

Entrou também no mundo tibetano... Vivi duas semanas em casa de um tibetano, juntamente com um italiano, na região onde o Dalai Lama esteve refugiado. Visitava o templo, a sua casa, partilhávamos todas as circunstâncias. Foi dos momentos mais marcantes. No Nepal pude ainda confirmar como é viver com electricidade e água apenas durante sete horas por dia.







Esteve numa confluência de religiões... O meu itinerário foi todo em busca de novas mundividências: induísmo, budismo, islamismo... Há o outro lado fascinante das culturas destes povos, que nós aqui nem sequer temos noção porque a comunicação acaba por colidir com as notícias e com a guerra que está acontecer com países islâmicos.

A concepção ocidental do Irão corresponde à que encontrou? Confirmei os testemunhos de que o povo iraniano é dos mais hospitaleiros do mundo. Andei mais de quinhentos quilómetros à boleia, sozinho, de cidade em cidade. Davam-me chá, frutos secos, encontrava empatia por parte das pessoas. Há muita propaganda falsa em relação ao Irão, mas aqui também se nota isso em relação à América. Notei que algumas mudanças vão acontecendo, sobretudo nas zonas mais ricas, lojas de maquilhagem e lenços coloridos para as mulheres, visitei livrarias onde se vendia livros de Albert Camus e Nietzsche.

Neste múltiplo itinerário, como estabelecia a comunicação? Onde senti mais dificuldades foi no Irão, pois o domínio de outras línguas não está tão conseguido em estratos sociais mais baixos.





Como avalia estas formas diferentes de entender o mundo? Para as avaliar, temos de nos despir dos nossos padrões culturais. Este tipo de experiências ajuda a libertar dos condicionamentos da cultura em que se está e do tipo de pensamentos e ideais que acabam por nos conformar. Cheguei a dormir em locais onde a maioria das pessoas certamente não ficaria. Adaptei-me a esse desconforto porque era para isso que eu ia.

Foi para si uma experiência-limite? Que significado retira de tudo o queviveu? No ir sozinho há um certo prazer nessa aventura, conhecer o lado bom e o lado mau das coisas. A transformação "espiritual" acontece de outra maneira, com as melhores e as piores circunstâncias. Notei que os contrastes sociais são fortes. Do ponto de vista humano, uma pessoa ganha muito mais compaixão, acaba por ver que existe a mesma dignidade em qualquer pessoa. De cada região, trouxe vários objectos que simbolizam
as culturas que vivi e as minhas memórias.







Haverá um conceito que possa sintetizar todas essas vivências? Escolheria um desenho que fiz e titulei de "neuroplasticidade autodirecionada", isto é, a plasticidade dos neurónios a funcionar de acordo com o que nós queremos, de acordo com a nossa vontade. Há aqui uma noção de liberdade. Por outro lado, reforcei os laços da minha experiência com os desenhos e com a arte. Essas memórias são muitas vezes os temas daquilo que produzo.

Como é que os seus pais encararam a sua decisão? Surpreenderam-me. Acabaram por encarar de uma maneira muito humilde e seguiram a minha viajam com firmeza. Para mim, seria difícil estar do outro lado do mundo com essa barreira.

Que mensagem final? Deixo o meu agradecimento a entidades que me ajudaram nesta iniciativa. Além da Fundação Lapa do Lobo, fiz uma exposição e venda de quadros na cafetaria da praça e tive outros contributos, de Juntas de Freguesia de Arouca-Burgo, Santa Eulália, Chave, e Rossas, FDN Mediação de Seguros, CAMARC, Arouplás, Carlos Mendes e Filhos, JSD Arouca e Caixa de Crédito Agrícola de Arouca.


In jornal Roda Viva
Manuel Matos Sousa 2017-03-27




Lola

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