Mundividências
«Vi que existe a mesma dignidade em
qualquer pessoa»
Da vila de Arouca e estudante de Belas
Artes na Universidade do Porto, André Gomes decidiu experimentar o voluntariado
e a descoberta de novas realidades e paisagens humanas. Projectos da Fundação
Lapa do Lobo e da Associação Gap Year despertaram-lhe a curiosidade e daí à
deliberação foi um passo. O novo destino levou-o sucessivamente à Índia, Sri
Lanka, Nepal e Irão.
Durante meses, constatou grandezas e misérias humanas, gravadas em desenhos e fotografias, cada qual com uma história significativa.
Durante meses, constatou grandezas e misérias humanas, gravadas em desenhos e fotografias, cada qual com uma história significativa.
O jovem arouquense
contou ao RODA VIVA como foi.
Não há muitos
jovens a deixar a casa, a família, em prol de uma experiência não europeia.
Como surgiu esta iniciativa? Tudo
surgiu quando a Associação Gap Year Portugal lançou um concurso nacional.
Informei-me sobre o que pretendiam e o que é que eu podia fazer num projecto
assim. Fui seleccionado e acabei por ser patrocinado não só pela associação mas
também por outras ajudas de entidades de Arouca.
Qual era a
sua expectativa? Senti que a viagem também era uma
das minhas paixões e esta era uma oportunidade excelente para pôr em prática
aquilo que eu acredito ser importante também para o meu futuro. Depois da
viagem, confirmei todos os valores e pedagogia que esta experiência nos pode
trazer.
O primeiro
lugar onde chegou foi à Índia. Como foi? Os
primeiros dias foram os mais marcantes. Conheci outras pessoas, com as quais
ainda hoje tenho contacto. Conheci templos, lugares históricos e entrei no
voluntariado. Estive numa instituição de crianças, completamente isolada no
meio de florestas exóticas. Tudo pobre, a ruralidade máxima da Índia. A
instituição acabava por ter uma influência grande na alimentação das crianças e
a nível da escola. Embrenhei-me completamente na cultura deles... comer com as
mãos, por exemplo. Era marcante a forma feliz como olhavam para nós. É uma
experiência que nos enriquece - este é o lado "egoísta" do
voluntariado - mas também sentimos que a nossa influência é pequena face à
enormidade dos problemas que há para resolver nestas comunidades.
O que achou
do contraste entre uma Europa farta e países como a Índia? Não dá para generalizar.
Cada região é um sítio completamente diferente. Goa está cheia de turistas, há zonas isoladas, há as regiões montanhosas, as cidades espelham grandes contrastes, onde se vê núcleos de modernidade e riqueza e outros de fome e de lepra.
Cada região é um sítio completamente diferente. Goa está cheia de turistas, há zonas isoladas, há as regiões montanhosas, as cidades espelham grandes contrastes, onde se vê núcleos de modernidade e riqueza e outros de fome e de lepra.
Depois foi
para o Sri Lanka... Estive numa
ecocomunidade, de voluntariado não com crianças mas numa quinta, onde vivia
numa cabana, no meio da floresta. Tratávamos do estrume, dos campos de arroz,
guiávamos as vacas e as cabras. Coincidiu com o período de Natal e Ano Novo
ocidental. Acabei por nem ter noção destes dias, porque a comunidade budista
não tem estes conceitos. No Nepal, para onde fui depois, acabei por festejar
com a comunidade o Ano Novo nepalês de 2074.
E voltou à
Índia... Fiquei aí mais um mês e meio. Conheci aí
os "homens sagrados", que são de uma casta elevada. Estive no
deserto, depois fui para Jaipur fazer um retiro budista de dez dias. Acordava
às quatro da manhã, imperava o voto de silêncio, a alimentação era vegetariana,
a meditação ocupava várias horas por dia, seguindo as lições do mestre. Sem
entrar no cliché do autoconhecimento, acabou por ser um momento de aprender uma
base moral.
Entrou também
no mundo tibetano... Vivi duas semanas em casa de um
tibetano, juntamente com um italiano, na região onde o Dalai Lama esteve
refugiado. Visitava o templo, a sua casa, partilhávamos todas as
circunstâncias. Foi dos momentos mais marcantes. No Nepal pude ainda confirmar
como é viver com electricidade e água apenas durante sete horas por dia.
Esteve numa
confluência de religiões... O meu
itinerário foi todo em busca de novas mundividências: induísmo, budismo,
islamismo... Há o outro lado fascinante das culturas destes povos, que nós aqui
nem sequer temos noção porque a comunicação acaba por colidir com as notícias e
com a guerra que está acontecer com países islâmicos.
A concepção
ocidental do Irão corresponde à que encontrou? Confirmei os testemunhos de que o povo iraniano é dos mais
hospitaleiros do mundo. Andei mais de quinhentos quilómetros à boleia, sozinho,
de cidade em cidade. Davam-me chá, frutos secos, encontrava empatia por parte
das pessoas. Há muita propaganda falsa em relação ao Irão, mas aqui também se
nota isso em relação à América. Notei que algumas mudanças vão acontecendo,
sobretudo nas zonas mais ricas, lojas de maquilhagem e lenços coloridos para as
mulheres, visitei livrarias onde se vendia livros de Albert Camus e Nietzsche.
Neste
múltiplo itinerário, como estabelecia a comunicação? Onde senti mais dificuldades foi no Irão, pois o domínio de outras línguas
não está tão conseguido em estratos sociais mais baixos.
Como avalia
estas formas diferentes de entender o mundo? Para as
avaliar, temos de nos despir dos nossos padrões culturais. Este tipo de
experiências ajuda a libertar dos condicionamentos da cultura em que se está e
do tipo de pensamentos e ideais que acabam por nos conformar. Cheguei a dormir
em locais onde a maioria das pessoas certamente não ficaria. Adaptei-me a esse
desconforto porque era para isso que eu ia.
Foi para si
uma experiência-limite? Que
significado retira de tudo o queviveu? No ir sozinho há um certo prazer nessa
aventura, conhecer o lado bom e o lado mau das coisas. A transformação "espiritual"
acontece de outra maneira, com as melhores e as piores circunstâncias. Notei
que os contrastes sociais são fortes. Do ponto de vista humano, uma pessoa
ganha muito mais compaixão, acaba por ver que existe a mesma dignidade em qualquer
pessoa. De cada região, trouxe vários objectos que simbolizam
as culturas que vivi e as minhas memórias.
as culturas que vivi e as minhas memórias.
Haverá um
conceito que possa sintetizar todas essas vivências? Escolheria um desenho que fiz e titulei de "neuroplasticidade
autodirecionada", isto é, a plasticidade dos neurónios a funcionar de
acordo com o que nós queremos, de acordo com a nossa vontade. Há aqui uma noção
de liberdade. Por outro lado, reforcei os laços da minha experiência com os
desenhos e com a arte. Essas memórias são muitas vezes os temas daquilo que
produzo.
Como é que os
seus pais encararam a sua decisão? Surpreenderam-me.
Acabaram por encarar de uma maneira muito humilde e seguiram a minha viajam com
firmeza. Para mim, seria difícil estar do outro lado do mundo com essa
barreira.
In jornal Roda Viva
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