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| Bill Mack |
Para que serve
a Filosofia?
José
Gabriel Trindade Santos é filósofo. "Não há nada mais espantoso do que
estarmos aqui a conversar do que haver um sentido para isto. Tenho quase 70
anos, a única coisa constante na minha vida foi ter sido professor."
A
entrevista são três horas de pé, em movimentos peripatéticos, à procura das
passagens exactas que exprimem o que quer dizer. A mais bela citação: "Que
inútil fardo seria eu, caminhando entre as naus, se não lutasse?"
Doutorou-se em Platão. "Li dezenas
de milhares de páginas, tirei muitas páginas de notas. Se vir a minha tese, são
duas. A minha tese propriamente dita, e a bibliografia, as notas críticas. São
900 páginas feitas em quatro anos e meio." Em 1988 estudou em Oxford. A
orientadora, Maria Helena Rocha Pereira, tinha-lhe dito: "Agora tem de
viajar, precisa de explicar porque é que isto é uma tese." Antes disso, no
pós-revolução, começou a ensinar. No liceu Passos Manuel, no Pedro Nunes e no
Camões. Depois no departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. O seu primeiro livro foi Filosofia no Liceu ("que
ainda hoje é citado, para dizer bem e para dizer mal, como todos"). Tem
uma obra extensa, traduções do grego, análise crítica. Ainda este ano deve ser
publicada uma tradução do Sofista de Platão, de cujo projecto
é o coordenador geral.
Desde 1998 que
se transformou "cada vez mais num investigador, e cada vez menos num
professor". Mas o que faz no Brasil, onde vive desde 2003, é ensinar na
Universidade Federal da Paraíba. O saber é o tema da sua vida.
Comecemos por
um verso da Antígona: "O homem nada sabe até queimar os pés no
fogo ardente." Sendo um dos temas da sua vida o saber, mesmo enquanto
estudioso dos clássicos, como lê esta frase?
[Procura na
estante a Antígona] É muito difícil responder sem saber do
contexto. Não gosto da tradução, não estou a reconhecer o grego por baixo.
Entendo a vida como uma luta. "Queimar os pés no fogo ardente":
acontece-me constantemente. A todo o momento, e aqui vem a lição de Sófocles, o
sofrimento é aprendizagem. O sofrimento pode manifestar-se das mais variadas
formas, nomeadamente na ignorância, e na presença da estupidez, que é o maior
inimigo.
O que entende
por estupidez, neste contexto?
A estupidez é
a incapacidade de distinguir o essencial do acessório, a incapacidade de
estabelecer uma prioridade, de perceber o que está em causa num problema. É o
caso da Antígona. Creonte põe a sua prioridade à frente das outras. Não vê os
sinais, não ouve os avisos; vai em frente, fiel apenas ao desígnio que traçou.
A consequência é a morte, primeiro, da mulher e, depois, do filho.
Antígona é um texto ao qual regressa no seu estudo.
As leituras que vem fazendo divergem muito umas das outras?
O primeiro
texto que escrevi foi entregue em homenagem à prof. [Maria Helena] Rocha
Pereira, em 1995, cinco anos depois do doutoramento. A minha última
interpretação da Antígona diverge das anteriores, e é uma
interpretação ritualista. O drama da peça é o conflito entre dois rituais.
Creonte percebe que tem de atender aos desígnios dos deuses olímpicos, mas não
pode infringir os decretos dos deuses infernais. Não pode deixar mortos ao cimo
da terra, e não pode sepultar vivos. A única forma de compreender que não pode
misturar os reinos é ver partir dois entes queridos, pela sua própria mão. A
maioria dos comentadores da Antígona, até 1990, insistia em
análises psicológicas ou políticas do conflito, a partir das personalidades dos
protagonistas. Antígona é obstinada, Creonte é obstinado; mas a obstinação não
é a causa do comportamento, é a qualificação que se dá ao comportamento. Há um
antecedente e um consequente.
Há dois tipos
de compreensão. Aquilo que só se sabe quando queimamos os pés no fogo ardente,
e o saber livresco, distinto daquele.
A última
palavra da Antígona é "aprendeu". Não é saber, é
aprender. Aprender é uma coisa que acontece a uma pessoa. Saber é uma coisa que
acontece quando, em função do exercício de uma capacidade, algo é efectivamente
sabido. O acto da aprendizagem é um episódio na vida de uma pessoa. O saber é
um estado: ou se sabe ou se ignora. Pode haver processos que medeiam entre
estes dois estados - a opinião, a sensação. São falíveis. Nunca se sabe
efectivamente.
"Só sei
que nada sei", parafraseando Sócrates. Na modernidade, fala-se de
ignorância e de irresponsabilidade. Ouvimos pessoas dizer: "Não tenho
culpa, não sabia."
Mas têm. A
noção de culpa não se aplica na Grécia antiga como se aplica hoje. O homem
grego tem noção das suas limitações e sabe que, quando as excede, paga por
isso.
Quando é que a
noção de que a vida é uma luta, e de que o aprender e o saber são essenciais,
aconteceu na sua vida?
Em momentos
diferentes. A noção de que a vida é uma luta surgiu algures nos meus 17 anos,
quando num jornal de estudantes, para o qual concorria, o director me
encarregou de fazer uma entrevista ao dr. Rogério de Freitas, que veio a ser
secretário de Estado da Cultura, muito depois do 25 de Abril. Uma das perguntas
que me sugeriu que fizesse era: "Por que luta?" Achei uma pergunta
estúpida. Naquele tempo, e para a minha formação, a minha cultura, a minha
superficialidade, essa não era uma pergunta que se fizesse. Calcule que ele
dizia que era do Partido Comunista...
O perigo era
fazer perguntas inconvenientes?
Entendi-a como
uma pergunta inconveniente. Disse ao dr. Rogério de Freitas:
"Instruíram-me para lhe fazer esta pergunta"; ele respondeu:
"Excelente pergunta." Pus-me imediatamente em causa. Mas tem de haver
qualquer coisa que justifique a luta. Tem de haver um princípio, um fim, um
ideal.
O que está em
causa é a força das palavras. As palavras que se usam para interpelar o outro.
Anos mais tarde, a questão da linguagem acabou por ser central no seu estudo.
As palavras
sempre foram importantes na minha vida. A primeira palavra é
"filósofo". "Filósofo" era a minha alcunha no primeiro ano
do liceu, em 1950. A minha ligação à Filosofia começou quando não fazia a
mínima ideia do que isso era. Com 11 anos comecei a ler a História da
Filosofia de August Messer, e não percebia rigorosamente nada. Se eu
era o filósofo, se estava ali um membro da filosofia, chamado História
da Filosofia, e se não entendia uma palavra, alguma coisa estava errada.
Havia que lutar para enfrentar esse erro.
Livros em
casa?
Nenhuns.
Quando é que
se dá o encontro com essa construção do que era um filósofo?
O professor de
Desenho pediu-me que desse provas de um trabalho, e respondi qualquer coisa
como: "Ninguém consegue dar provas de um trabalho absolutamente
realizado." Ele, que se chamava Calado Lopes, voltou-se para mim,
apertou-me no pescoço, e disse: "Sr. Trindade Santos, o senhor é um
filósofo."
Qual é a
primeira memória que tem de si?
As primeiras
memórias são fabricadas. A primeira memória segura que tenho de mim é do dia do
meu 4.º aniversário. A minha mãe deu-me um sobretudo creme, com muitos botões.
É claro que essa memória é condensada numa fotografia tirada nesse dia, nos
Restauradores.
A noção de
memória está umbilicalmente ligada à de identidade, outro dos temas essenciais
do seu estudo.
Quando alguém
me chama filósofo, e reconheço essa qualificação, o que estou a fazer é tentar
construir uma identidade, que não tenho. Não sei quem sou, não faço a mínima
ideia, mas sei o que quero ser: um filósofo. E como é que se é filósofo?
Estudando Filosofia. Tenho dez, 11 anos, os meus encontros com a História da
Filosofia realizam-se na biblioteca do liceu. É como uma imagem poética muito
gasta, a imagem do espelho partido, um fragmento de espelho. Um menino sentado
a uma mesa, com um livro enorme em frente, tentando compreender qualquer coisa.
Mas que acaba por ter um peso na vida dele (peso que ele vai impondo a si
próprio).
Uma procura de
quem era?
Não tinha
noção disso, bastava-me um papel que estivesse de acordo com a minha natureza.
Aquele papel era o que me estava a ser concedido, e aceitei-o. Aprendi a amar
esse papel. Estranhamente, ao longo da vida, continuo a ser devorado pela
vontade de saber, e provocado pela minha ignorância. Isto tem consequências
terríveis na acção. É-me muito difícil decidir qualquer coisa, estou sempre a
pensar noutra.
Isso contraria
a ideia de que, quando sabemos, decidimos melhor.
Na minha
perspectiva, o estado de saber nunca é atingido. Há sempre uma relação entre o
que nos é pedido e o que somos capazes de dar. Quando essa relação se exprime
de forma adequada, conseguimos realizar os nossos objectivos, pelo menos
parcialmente. Mas é uma vida levada nas sombras em busca da luz. Também não são
trevas completas. É procurar, chegar a qualquer coisa. E é terrível, isto? Não,
não é. Sempre que se encontra uma resposta, sempre que se publica um texto, se
dá uma aula, se dá uma entrevista, faz-se luz.
Na Odisseia,
quando Ulisses vai ao Hades, um mundo de sombras, encontra Aquiles que lhe diz
que mais vale ser servo da gleba na Terra do que rei de todos os mortos no
Hades. Ocorreu-me esta passagem a propósito do desejo de encontrar a luz, viver
na luz. Nem que seja na condição de servo da gleba.
Um momento de
luz. Conseguir encontrar uma resposta. Neste momento tenho de resolver um
problema de um texto que estou a escrever, conseguir compreender o sentido da
tese defendida por Sócrates no Fedro - de que o amor é uma divindade. Para um
grego, dizer que o amor é uma divindade é como dizer hoje que o amor é a mais
imediata expressão da nossa transcendência. Amando, transcendemo-nos.
Somos outros,
saímos de nós.
A força que
nos faz sair de nós só pode ser encarada como uma força divina. Nessa medida,
saímos de nós quando amamos. E todos temos em nós, a todo o instante, a medida
da nossa transcendência e a capacidade de a efectivar, através do amor. No amor
físico, evidentemente, e em todas as outras espécies de amor que estão
associadas ao amor físico. Dizer que o amor é divino é dizer que é a força que
pode levar todos os homens, machos - não estamos a falar de mulheres - a
transcenderem-se.
Parece que
estamos a falar de coisas de todos os dias.
E estamos.
Isso é que é a grande vantagem da Grécia: está viva todos os dias. A Grécia não
está fechada em bibliotecas, em museus, em rituais absurdos, nas universidades.
Tudo o que há para além da Grécia são reconfigurações da mensagem grega. Isto
não acontece, por exemplo, a um árabe.
É outra
matriz.
No séc. IV, V,
VI, VII, não era outra matriz, depois é que se transformou noutra matriz. É
preciso não esquecer que a mensagem da Grécia ao Ocidente, às universidades
medievais, chega também através dos árabes. Aprendemos muito com eles e há
ainda muito para aprender. Khadafi disse recentemente uma coisa terrível:
"O Mediterrâneo está em guerra." Outra vez?, pensei eu. A luta no
Mediterrâneo é um enorme problema político que a Europa tem de resolver. E vai
pagar a conta, seja qual for o resultado do conflito. O Mediterrâneo é o centro
do mundo.
Nas últimas
décadas achamos que o centro do mundo é o Médio Oriente.
O Médio
Oriente ainda é o Mediterrâneo, é o Levante. De novo estamos a voltar a uma
antiga matriz. Desta vez não é por causa de deuses, de impérios, de
civilizações, é apenas por causa do petróleo, que foi escolhido como
instrumento do nosso desenvolvimento.
As pessoas têm
a ideia de que os mitos gregos, as palavras dos filósofos, são coisas
longínquas, sem aplicação no mundo em que vivemos.
É possível.
Esses textos estão a falar de um tempo que não é o nosso, numa linguagem que
não é a nossa, mas os problemas desses homens são os nossos. É através do exame
do nosso comportamento, a partir da nossa própria experiência, que esses textos
podem ser compreendidos, que essas perguntas se actualizam. Enquanto forem
encarados como documentos de outros tempos, que por acaso acabam por acontecer
aos alunos, nunca serão compreendidos.
Exemplifiquemos
com dois mitos, dos mais populares na cultura ocidental, o de Sísifo e o de
Orfeu e Eurídice. Como interpretá-los à luz dos nossos dias?
No caso de
Orfeu parece-me evidente: o amor nunca pode refugiar-se no passado. Daqui a
algumas horas, quando a minha mulher chegar a casa, vou-lhe perguntar onde é
que ela esteve, e ela vai-me dizer. Se eu conceder importância demais a essa
pergunta e a essa resposta, estou a fechar o amor num círculo de factos
passados. Estou a transformar a minha vida, e também a dela, num episódio
inquisitorial. Eurídice não pode olhar para o mundo de onde foi afastada. A
morte não se pode observar por cima do ombro - a morte agarra.
Podemos ser
engolidos pelo passado?
Toda a gente
é. Creonte deixou-se engolir pelo passado. Antígona deixou-se engolir pelo
passado. E o resultado é a morte, a destruição, a loucura. É preciso sempre ter
os olhos abertos para a frente.
O que implica
aprender a distinguir o essencial do acessório. Só assim podemos olhar para a
frente.
Exactamente.
Somos o nosso passado. A lição vem-me de um autor que pouca gente que me
conhece acreditaria que tivesse tido tanta influência em mim, [Henri] Bergson.
O nosso passado está a refazer-se constantemente no nosso presente. Isso
implica que não possamos parar e olhar para trás. O nosso passado está a
acontecer agora.
Está a ser
reconstruído à medida que é recuperado. Por isso se diz que a memória é
reconstitutiva, que não é exacta.
Ela apareceu
no começo da nossa conversa, quando falei da memória do sobretudo creme, aos
quatro anos. Tenho uma memória da tarde desse dia, em que havia uma luz na casa
de jantar. Guardo carinhosamente memórias de luminosidades. Mas pode não ser
verdade.
Que leitura
faz do mito de Sísifo?
O mito de
Sísifo não é independente do Sísifo, que é uma tragédia da autoria de Crítias,
onde pela primeira vez é defendida a crença de que os deuses são uma invenção
dos homens. Crítias é um dos 30 tiranos, um dos perseguidores de Sócrates, um
dos que morrem lapidados no dia em que a revolução democrática corre com ele e
com Cármides, e acaba por matá-los à pedrada. Depois há o famoso suplício de
Sísifo, que empurrava uma pedra até ao alto de um monte, e depois a pedra caía
de novo. Essa é uma forma de ver a vida. Nalgum momento a pedra escapa-nos, o
terreno falta-nos debaixo dos pés. É uma das muitas possíveis formas de
consciência da mortalidade e da limitação do ser humano. Não é isso a vida,
empurrar uma pedra e vê-la cair? Como a sua própria vida, a perder-se.
Se a vida
fosse a pedra e a viagem fosse única. Mas no mito de Sísifo acontece um
movimento contínuo, ininterrupto. Ele não desiste de pôr novamente a pedra no
cimo do monte, e ela acaba sempre por rolar.
E eu não
desisto de conferir sentido à minha vida. E, pelo menos até agora, tenho a
consciência de que sempre algo me escapa [riso]. Só que a minha atitude não é
trágica. Quando se está a jogar um jogo, o jogo é a nossa forma de estarmos
vivos enquanto o jogo dura. A única diferença entre uma concepção lúdica e uma
concepção trágica da vida, neste ponto, é que o jogo acaba quando o jogador
diz: "Acabou."
Ou:
"Acabei de jogar este jogo."
Sim. Na
concepção trágica, o jogo nunca acaba. Temos de continuar a empurrar a pedra.
Afligiu-me muito quando tive contacto, muito cedo, com os mitos de Sísifo e de Tântalo.
Havia um livro de leitura na minha escola primária onde estavam apresentados.
Somos nós que operamos a queda da pedra. E temos a ideia de que Sísifo ainda lá
está, empurrando a pedra. E Tântalo ainda lá está, olhando a água; quando se
baixa, a água baixa com ele. Terrível ou não, foi esta vida que me deram para
viver.
Quando disse
que se afligiu muito, com oito anos, antes de o ouvir falar das imagens de
Sísifo e Tântalo, achei que ia dizer que teve nessa altura um primeiro contacto
com a morte.
A primeira
morte real na minha vida aconteceu com um amigo muito próximo, que teve um
acidente, em 1965. Depois foi o ano da morte do meu pai, em 1988. No funeral
não entendi nada do que estava a acontecer. Não estava em mim. A minha relação
com a morte não é frontal.
Uma reacção
paradoxal, para um estudioso dos gregos, em cujos textos esta questão aparece
continuamente.
A questão que
aparece continuamente é a da natureza humana, dos conflitos, e esses são os
nossos, não são gregos. Como é que as pessoas fazem umas às outras o que fazem?
Como é que consigo fazer coisas horríveis? Isto perturba-me. Isso é trágico.
Numa leitura
muito redutora, e pela rama, as tragédias gregas surgem-nos pejadas de
situações desmedidas, de uma enorme violência, de um carácter sangrento. Medeia
é uma mulher que mata os seus filhos. Como compreendê-lo?
Medeia mata-os
porque são filhos dela, ela vai ser posta fora daquela terra, vai ficar sem os
filhos. O melhor é matá-los para não os deixar a qualquer homem. O homem não é
portador de vida, e a mulher é, e se é portadora de vida tem o direito de
matar.
Esse é o
entendimento de Medeia.
É.
Isso contraria
aquela leitura, muito apressada, de que o faz enlouquecida de ciúme.
Qualquer
leitura da história de Medeia é redutora. O que está em causa é a figura da
mulher, e o questionamento que faz do seu lugar no mundo. Todas as mulheres são
Medeia, podem é não matar os filhos [riso].
Significa que
todas têm a capacidade de gerar vida, é nesse sentido que o diz?
Não só porque
têm a capacidade de gerar vida, mas também porque os homens que geram a vida
nelas não têm essa capacidade. É essa diferença que gera o conflito.
Medeia tinha
uma terra e era alguém. De repente trocou tudo isso por um homem. Foi
proscrita, teve de fugir. Entregou tudo àquele homem, que a abandona, que lhe
tira o futuro, o presente. O passado, já lho tinha tirado. Resolve cortar com
isso, e cortar com isso é cortar com o seu próprio corpo, com os filhos.
Mata-os amando-os. (Isto aprendi: as mulheres são capazes de sacrificar o seu
próprio amor, os homens, não, são muito mais egoístas.) As mulheres ainda hoje
fazem isso. Não matar os filhos, mas ritualizarem esse acto nas inúmeras formas
de separação. A forma como as mulheres se separam dos homens, e estou a falar
das que estão conscientes do processo em que se encontram, é diferente do modo
como os homens se separam. Eurípides percebeu isso, e pôs tudo isso naquela
peça. Todos matamos os nossos filhos.
Amputando-os,
castrando-os? Infligindo-lhes sofrimento.
Isso.
Amputando-nos, separando-nos deles. É muito mais frequente do que a
excepcionalidade do mito pode dar a entender.
"Nada do
que é humano me é estranho", como dizia Terêncio. Mesmo o que parece ser
monstruoso.
Tento
compreender. Os outros são a única oportunidade que me é concedida de me
compreender a mim mesmo. Perante eles tenho a noção do outro. Tento aprender a
lição de Sócrates: perceber-se a si mesmo como um outro. Vendo-me de fora como
alguém que, perante todas as tentativas que fez de saber alguma coisa,
compreendeu que eram ridículas e descobriu que não sabia nada. Quando descobriu
que não sabia nada, descobriu que sabia que não sabia nada.
Quando se fala
de transcendência, normalmente, isso aponta para a existência de um deus.
Mas não é um,
nem dois, nem cinquenta. É o reverso da consciência da minha limitação. A
transcendência é aquilo em que eu me situo. Não tenho memória de nenhum
sucesso. Tenho memória de muitas derrotas. Não me lembro de nada na minha vida
para que possa olhar e dizer: "Olha que bem."
Parece uma
frase humilíssima, mas tendemos a descrer dela. Se não ficamos, pelo menos de
vez em quando, contentes com o nosso existir, é a desesperança absoluta.
Não tem nada a
ver com desespero. É a profunda esperança de encontrar um sentido para isto.
Isto é positivo: continuo a ter esperança de me encontrar, de fazer, de deixar
alguma coisa a alguém. Sou nada, ou muito pouco, em algo que é maior do que eu.
Pensei que
fosse ateu.
Pelo
contrário. Nunca deixei de ser religioso. Tive uma conversa muito importante
com um padre no final de um retiro espiritual, no Seminário dos Olivais. (Um
retiro espiritual é um fim-de-semana que é concedido para, num local
determinado, fazer contas com a própria vida. As contas e o local que me eram
proporcionados eram fornecidas pela Igreja Católica, que me deu a noção de
transcendência e a noção de amor, de que falo constantemente, e que transponho
para a Grécia com alguma aventura.) Tive um encontro comigo mesmo através do
modo como fui visto por alguém, que olhou para mim e disse: "Está tudo a
andar. Não te preocupes, hás-de chegar onde queres."
Havia um
objectivo estrito para o retiro?
Era responder
à pergunta: "Sou cristão ou não sou cristão? Sou crente ou não sou
crente?" Depois dessa conversa, a lição com que fiquei é que não tem
importância. Já estou no caminho. Todo o mal que acontecer vem por acréscimo na
viagem que estou a fazer, na qual entrei e da qual não vou sair.
Parece haver
nisso uma certa impotência em relação a um destino.
Não entendo
assim. É como se dissesse: não consigo deixar de amar. Só sou afligido pela
consciência de que não amo suficientemente bem. Mas não me passa pela cabeça
abandonar este caminho e começar outro. Acho que foi isso que me foi dito. Saí
da igreja naquele momento, mas não saí da religião. Saí contente por ter
descoberto que estava vivo, que cria no amor, cria na força. Nos momentos mais
difíceis, dos quais também me esqueci, isso persistiu.
Novo verso da
Antígona: "Não se pode ter a grandeza sem a desgraça." É assim?
A grandeza é
encontrar uma resposta a uma pergunta. A desgraça é a inevitabilidade de não
ter encontrado a resposta, até a ter encontrado. Não faço outra coisa na minha
vida que não seja procurar respostas a perguntas. Sou mais feliz do que a
maioria dos outros homens porque posso pôr essas respostas em papel, e alguém
as publica. Estou a escrever sobre Parménides desde 1981, já dei a volta a mim
mesmo não sei quantas vezes. Estou muito contente com a última resposta a que
cheguei, e muito aflito com o facto de as pessoas continuarem a ler coisas que
escrevi e publiquei em 1997, e que hoje, para mim, estão completamente erradas.
Para conseguir chegar à resposta que encontrei, e que acho que está certa, e
que me dá muita felicidade, tive de dizer asneiras durante 30 anos.
Errar.
Uma coisa é
errar, outra é publicar. Tenho uma grande convivência com as minhas limitações
e com a dimensão minúscula dos meus conseguimentos. Isto não é trágico, é o
estado natural da vida. Quando me põe diante dos olhos e dos ouvidos frases em
que há uma desgraça absoluta, reajo. Nunca senti a desgraça absoluta. As
pessoas não sabem ler as mensagens. Até porque não são capazes de se ler a si
próprias. Mas isso não é grave, é sério.
O que é que é
grave?
O grave é o
irremediável da desgraça, é não haver saída. Por exemplo, a dívida soberana de
Portugal, não é grave, é séria, vai ter uma solução qualquer.
Nesse caso, o
único irremediável é a morte.
Claro. O homem
é o único animal que sabe que vai morrer.
Não sabe é
quando.
Mas sabe que.
Os gregos têm a profunda consciência da inevitabilidade da morte e de que,
nessa medida, é preciso dar um sentido à vida. Aquiles, o Príncipe dos Aqueus,
pode, olhando de fora a sua vida, lamentar tudo o que perdeu, lamentar as
razões que o levaram a pôr em perigo a sua vida. É citado por Sócrates quando
diz: "Que inútil fardo seria eu, caminhando entre as naus, se não
lutasse?" E depois morre. E depois de morrer diz: "Aquilo é que
era."
Muitos destes
de que estamos a falar são os heróis. É menos comum falar dos derrotados. Como
se recusássemos para nós essa dimensão? Na Ilíada, fala-se mais de
Aquiles do que de Heitor.
É impossível
não amar Heitor.
É aquele que é
morto.
E é morto de
uma forma terrível. Ganhar é óptimo, sobre isso não estamos em desacordo. É bem
melhor que perder. Mas um ganhador, eu? Ganhador é qualquer coisa que se põe no
túmulo de uma pessoa: "Este foi um ganhador."
Depois, de
nada serve, porque está no túmulo.
Deixou filhos,
deixou uma memória, deixou uma lição. Ser lembrado com um sorriso é um triunfo.
É algo que se pode ambicionar. Quando se lembrarem de mim, que seja com um
sorriso.
Isso podia ser
um epitáfio.
Podia. Ser
lembrado com um gesto de tolerância, carinho. Carinho já não é grego.
Não conhecem
esse conceito?
Não posso
responder com segurança, porque estou a responder sobre páginas e páginas de
literatura, e estaria a dizer-lhe: "Não está lá." Mas posso dizer que
abundam os sinais em sentido contrário.
Qual seria o
sentimento semelhante?
A compaixão, a
amizade. Carinho é talvez aquilo que uma mãe sente por um filho.
Porque é que
decidiu doutorar-se em Platão?
Quando comecei
a tentar entender qualquer coisa de Filosofia, percebi que faltava sempre
qualquer coisa antes. Fui recuando, recuando, e quando cheguei a Platão não
precisei de recuar mais. Depois tornei-me platonista e, de algum modo,
platónico (não no sentido mais corrente). Ser platónico é ter uma visão
estruturada e estruturante da realidade. É ter noção de que a realidade é uma
estrutura de formas, e compreender a realidade é descobrir as formas. Nenhuma
realidade é compreensível, nem sequer abordável, se não pensarmos que resulta
do encontro da matéria com a forma. Quem sou? A resposta de Platão: és um
homem, porque tens uma alma, e tens uma alma porque viste as formas, porque
compreendes que a realidade tem uma estrutura. Compreendes que o único sentido
da vida é perceberes e comungares dessa estrutura, e encontrares o teu lugar
nela.
Há alguma
pergunta que não tenha feito e que este perguntador teria feito?
Por que luta?
Por que luta?
Luto para me
encontrar nesta sociedade a que pertenço. Ser português é uma condição que não
se pode perder. E acima de português só consigo ser lisboeta. Esta é a minha
cidade. O sentido da vida é descobrir a que pertencemos. Tudo isto é inquieto.
ANABELA MOTA RIBEIRO
01/05/2011 - 00:00
anabela.mota.ribeiro@publico.pt


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