Gilles Lipovetsky:
Os
paradoxos que enfrentamos e os valores que nos movem
Alimentação,
moda, tecnologia, lazer, esportes: quem lê o trabalho de Gilles Lipovetsky compreende como as tendências sociais
podem dizer muito mais sobre o mundo do que usualmente acreditamos.
É por seu trabalho sobre os desejos,
valores e desafios que motivam (e frustram) as pessoas que o filósofo francês
ficou conhecido como um dos pensadores mais originais do nosso tempo.
Em entrevista
à ZH, Lipovetsky fala sobre seu novo livro e
outros temas, como a desconfiança que toma a sociedade contemporânea, o desafio
de viver em um tempo em que tudo está sendo construído e aquele que considera o
grande problema do Brasil, um povo alegre e acolhedor que precisa conviver com
políticas que dificultam a vida da população.
Ainda,
dentro do tema do Fronteiras do Pensamento 2017, Civilização
- a sociedade e seus valores,
Lipovetsky confessa ser um otimista quanto ao futuro, porque "os valores
que nos regem são os humanistas, mesmo que não sejam respeitados." Confira
abaixo as ideias do pensador, que estará no segundo encontro desta temporada
anual de conferências.
No
livro Da Leveza — Para uma
Civilização do Ligeiro, você analisa a procura atual pela leveza na
vida, que no entanto não dispensa a obsessão pela performance da produção e
pelo reconhecimento social. Em sua opinião, até que ponto esse paradoxo é
sustentável?
Gilles Lipovetsky: De fato, o livro inteiro aborda esse sistema cada vez mais construído para tornar nossa vida mais leve — na técnica, no digital, na desmaterialização, no smartphone, na web, na nanotecnologia —, que também convive evidentemente com todo o mundo do consumo e da mídia, que são instâncias da leveza.
Os valores veiculados por eles — o
prazer, o divertimento, o lazer — compõem um universo de leveza, mas a vida
individual das pessoas continua pesada. Esse paradoxo não é uma contradição,
porque essa leveza é resultado da tecnociência e do capitalismo, que demandam a
mudança perpétua e, por outra parte, exigem competência na performance.
Dentro desse quadro, temos ao nosso
redor coisas cada vez mais leves, como as possibilidades de viajar e obter tudo
muito facilmente, mas, ao mesmo tempo, o mundo do trabalho e também o privado
se endurecem por causa da cultura do individualismo, que empurra o sujeito a
sempre se construir, a se inventar.
Então, estamos permanentemente fazendo
escolhas e nos impondo novos valores para obter sucesso. Por outro lado, o
mundo da tradição é muito duro, com miséria, fome, guerra. O caminho das
pessoas já está traçado nesse mundo, você consegue compreendê-lo porque a
religião e a tradição já estabeleceram o roteiro, você pode prever o futuro com
antecipação.
Hoje, no mundo da leveza, tudo está
aberto, nada é fixo, tudo está por construir. E, como tudo está por construir,
tudo é extremamente difícil. Acrescente-se a isso que a globalização
provavelmente não é algo passageiro e que a competição e a inovação vão se
acelerar ainda mais. Você não sabe mais o que vai mudar amanhã e o que vai
permanecer, tanto na economia quanto na vida privada.
Voltando ao paradoxo que você citou, nós
teremos universos cada vez mais preocupados com a performance para alcançar a
eficácia e a riqueza materiais e, ao mesmo tempo, uma vida pessoal mais
difícil. É possível continuar a viver assim? Penso que sim, precisamente
porque, como no Brasil e em outros países, as pessoas se preocupam menos com a
política e mais com a leveza de suas vidas. Por isso o sucesso do budismo, da
ioga, do zen, das atividades artísticas.
A vida global vai ficar mais difícil, ao
mesmo tempo em que as pessoas vão buscar cada vez mais por meios de aliviar o
peso de sua vida pessoal com atividades psicoespirituais que funcionam como uma
espécie de remédio. Isso vai continuar porque não há alternativa.
A novidade do mundo hipermoderno é
justamente essa. A modernidade do século 19, por exemplo, tinha um contramodelo
que era sociedade burguesa de então. Ela sonhava com o socialismo e a
revolução. Hoje, não temos outro modelo para contrapor. Sabemos apenas que
amanhã haverá ainda mais competição. É por isso que o desejo de revolução não
tem mais consistência e o que domina, ao contrário, é o desejo de leveza. As
pessoas procuram, cada uma a sua maneira, uma forma de aliviar o peso da vida.
Como é
possível conciliar essa demanda de aceleração na sociedade de hoje com domínios
do conhecimento e da vida que não podem ser mais acelerados do que já estão,
como a educação, por exemplo?
Gilles Lipovetsky: A vida de hoje é clivada. Isso quer dizer que uma pessoa que leva, durante a semana, uma vida de louco em grande velocidade pode mudar de vida no final de semana. Não se trata de uma conciliação, mas de uma combinação, uma hibridação, uma justaposição. Nós temos muitas vidas na mesma vida, ao mesmo tempo, com modelos e ideais diferentes.
No passado, a sabedoria era uma
atividade que visava mudar completamente o mundo. Hoje, a prática da sabedoria
— meditação, zen, desenvolvimento pessoal — não muda a organização do mundo.
Ela permite apenas adaptar-se, respirar um pouco.
Se você não gosta do seu trabalho, por
exemplo, porque é monótono ou o chefe o aborrece, pode reunir-se com os amigos
no final de semana e, digamos, fazer música com eles. Você consegue respirar
assim. Acho que esse é o modelo do futuro. Não creio na unidade e na harmonia
global. Penso que podemos ter momentos de harmonia que se destacam em um
universo difícil.
Por um
lado, no mundo hiperindividual, as mídias tradicionais parecem perder cada vez
mais o monopólio da informação. De outra parte, a difusão de notícias falsas e
o que está sendo chamado de "pós-verdade", tanto na internet quanto
na grande imprensa, é preocupante. Qual é a dimensão real da importância dos
meios de comunicação na formação da opinião pública hoje em dia?
Gilles Lipovetsky: Eles desempenham um papel enorme. A mídia teve uma importância considerável com o que se passou agora na Grã-Bretanha, porque os ingleses votaram pelo Brexit a partir de fake news. Foram difundidas pela mídia informações realmente falsas.
Essa situação é muito mais importante
hoje do que há 30 anos ou mesmo no começo deste século, porque, nas democracias
do passado, havia um papel capital para os partidos políticos, com quem as
pessoas se identificavam. Por exemplo, as pessoas que se definiam como
católicas tinham um voto bastante identificável, assim como os operários votavam
nos comunistas.
Hoje em dia, as pessoas não têm mais
confiança nos partidos. É como aí no Brasil, as pessoas rejeitam a classe
política e suspeitam dela. Há uma suspeita a respeito de tudo, que é uma
situação característica de nossa época.
As pessoas não confiam mais nos
deputados, nos ministros e também na mídia. A época hipermoderna é de
desconfiança. Nos tempos anteriores, isso não acontecia de forma alguma: as
pessoas acreditavam que Stalin tinha razão.
Hoje, ninguém mais acredita na palavra
política. No extremo, temos Donald Trump, que, não importa o que ele diga, as
pessoas gostam, porque o que ele diz não é politicamente correto. Ele se
endereça às emoções e, nessa situação, as fake news desempenham um papel
essencial.
É evidentemente grave e sobretudo triste
para o futuro da democracia. E novamente vem a questão do quanto devemos
investir em educação. Porque não podemos ser regrados pelo controle da
informação, mas tão somente pela formação de qualidade dos cidadãos. E essa
formação passa pela escola. Caso contrário, as pessoas googleiam, leem os blogs
e não sabem fazer a distinção entre os que dizem coisas sérias e os que dizem
qualquer coisa. Para ler uma informação é preciso luneta.
Você acredita em tudo o que lê? Não é
com a reforma da mídia que isso mudará, viu? É preciso algo muito mais
profundo, que as nações se conscientizem dos riscos do futuro e formem um corpo
de professores competentes, bem pagos e capazes de fazer corretamente seu
trabalho para que os cidadãos não caiam na armadilha das fake news.
Isso
pode ser entendido como uma recomendação ao Brasil?
Gilles Lipovetsky: Ao Brasil e à América Latina em geral. Olhem ao redor de vocês e vejam que os países bem sucedidos são aqueles que dedicaram um montante considerável de seus orçamentos à educação. Não há mistério.
Vejam
Cingapura, Finlândia, os países do norte. Todos investiram na formação de
qualidade dos professores, no método pedagógico. É o futuro da democracia! Não
é apenas a técnica que vai fazer nosso mundo. São os homens. E é preciso formar
os homens.
Você já visitou o Brasil muitas vezes. Que papel você acha que o país desempenha na cena mundial?
Você já visitou o Brasil muitas vezes. Que papel você acha que o país desempenha na cena mundial?
Gilles Lipovetsky: O Brasil é um país imenso que tem tudo para ser bem-sucedido em termos de riqueza nacional. Mas, isso não é suficiente para fazer a prosperidade de um país.
O exemplo extremo é a Rússia, que sem
dúvida é o país mais rico do mundo, mas é um desastre. Do lado de vocês há a
Venezuela, que repousa sobre um tesouro de petróleo e está falida. A riqueza
não é suficiente.
Acho que o Brasil é bem sucedido em
alguns aspectos, mas, como você sabe melhor do que eu, há um grande problema
político. O sistema político não avança, há uma corrupção horrível, as pessoas
não confiam mais. Dentro desse contexto, acho que é um país que tem uma cultura
acolhedora e alegre, mas, ao mesmo tempo, vejo brasileiros muito estressados
por causa das dificuldades da vida em um país que poderia ser muito mais
bem-sucedido do que ele é.
Penso que, no Brasil, há todos os
recursos para se desenvolver, mas, de novo, não basta apenas isso. Mesmo que o
Estado e a política sejam menos importantes do que no passado, eles continuam
essenciais. É preciso fazer reformas, é preciso justiça e elites políticas de
talento.
Acho que o problema do Brasil não é a
economia. Em primeiro lugar, há um problema considerável no domínio da política
e provavelmente também da justiça social, com desigualdades insuportáveis. Isso
é evidente: no Brasil, a 200 metros de uma favela há um condomínio de luxo.
As
desigualdades não são más, não sou contra elas, mas elas não podem paralisar um
país. Penso que há um enorme trabalho a ser feito para que os brasileiros
acreditem que o futuro é para eles, que devem se esforçar, mas que haverá
justiça e que a corrupção, que é um enorme problema, será reduzida.
Você se
considera otimista ou pessimista quanto ao futuro?
Gilles Lipovetsky: Ah, me considero um otimista! Penso que a humanidade representa uma aventura na história da Terra de escala excepcional e que, apesar de todas as coisas horríveis pelas quais atravessou desde a pré-história, ela sempre superou os desafios. E por quê? Penso que pela inteligência do homem.
Gilles Lipovetsky: Ah, me considero um otimista! Penso que a humanidade representa uma aventura na história da Terra de escala excepcional e que, apesar de todas as coisas horríveis pelas quais atravessou desde a pré-história, ela sempre superou os desafios. E por quê? Penso que pela inteligência do homem.
O homem é um animal que inova. Ele cria
o problema com muita aflição e sempre é bem sucedido em superá-lo. Mas, ao
mesmo tempo, ele recria o problema outra vez. O resultado final é que, apesar
de tudo, os ideais que amamos, quer dizer, o humanismo, a liberdade, a
igualdade, a democracia liberal, são valores cada vez mais partilhados pelas
pessoas. Claro que há desigualdades, coisas ignóbeis. O que pode alimentar o
otimismo é que, apesar de tudo, cada vez menos pessoas aceitam a escravidão, a
dominação das mulheres, a vitimização das crianças. Por fim, temos três séculos
de dinâmica da ciência.
Sou um homem das luzes, racionalista,
herdeiro do século 18. Acredito que a grande conquista da humanidade não é a
moral. A moral está muito bem, amo ela como você, não há problema quanto a
isso. Mas os grandes problemas, como a poluição, as mudanças climáticas, as
desigualdades, exigem inovação, que repousa na inteligência dos homens, formada
nos laboratórios, nas ciências, nas universidades. E observo que esse fenômeno
explodiu por todo o planeta. Não há um país sequer que não faça pesquisas! A
maioria da população do mundo participa hoje dessa inovação.
Temos forças em nós, a força do
humanismo democrático e da tecnociência. Penso que isso é uma aquisição
considerável. Em países desenvolvidos e mesmo no Brasil as pessoas vivem mais,
a miséria absoluta recua. Mesmo que haja coisas horríveis, não há por que
ocultar que também existem coisas positivas.
Não é o paraíso, mas sou otimista porque
os valores que nos regem são os humanistas, mesmo que não sejam respeitados.
Esses valores estão aí. Em segundo lugar, sou otimista porque usamos a inteligência
e a racionalidade para fazer a humanidade progredir em direção a algo mais
satisfatório.
· in Fronteiras do Pensamento 2017
Lola
Sem comentários:
Enviar um comentário