Voltaire
O sorriso de Voltaire
Inimigo mortal da intolerância, o irreverente filósofo francês ressurge
numa biografia que mostra como ele foi capaz de usar a opinião pública contra
as injustiças da velha França
Nas
comemorações do centenário da morte de Voltaire, em 30 de maio de 1878, o
poeta, escritor e político Victor Hugo declarou, diante da platéia reunida no
Théâtre de la Gaîté, em Paris: “Hoje, há 100 anos, um homem morria. Ele morria
imortal”. Essa imortalidade atribuída ao célebre filósofo – e, em vida,
perseguida pelo próprio Voltaire – se traduz nos títulos pelos quais até hoje
ele é conhecido: pai-fundador da Revolução Francesa, apóstolo da tolerância,
crítico do fanatismo religioso e defensor dos oprimidos.
Mas Voltaire
não foi apenas isso. “O homem é devorado pela ambição. Seu orgulho e seu
temperamento rancoroso podem conduzi-lo aos piores excessos e às piores
injustiças. Todas as suas retratações, simulações e adulações aos poderosos não
são ditadas por nobres sentimentos”, escreve o historiador francês Pierre Milza
na recém-lançada biografia Voltaire. Mas, para o autor, esses defeitos são
mínimos perto do combate do filósofo a serviço da razão, da verdade e dos
direitos humanos.
Se Voltaire
morreu imortal, ele veio ao mundo em toda a sua mortalidade. “Eu nasci morto”,
disse ele sobre seus difíceis primeiros dias. Para contrariar os que lhe deram,
em 1694, não mais do que uma semana de vida, fez questão de usar toda sua verve
e engajamento até a velhice. Conta-se que, aos 3 anos de idade, François-Marie
Arouet – que adotaria o famoso pseudônimo apenas em 1718 – sabia recitar de cor
o poema anti-religioso “La Moïsade”, que circulava clandestinamente. Certamente
trata-se de uma lenda, mas é verdade que o jovem Arouet foi cedo introduzido
aos rudimentos da versificação por seu padrinho, o abade Châteauneuf.
No colégio
Louis-le-Grand, o mais prestigiado dos estabelecimentos administrados pelos
jesuítas franceses, o estudante descobriu a paixão pelo teatro. Graças a seu
gosto pela poesia e a sua precoce aptidão em manejar o verbo e a rima, em pouco
tempo o ambicioso e dedicado aluno afirmou sua superioridade sobre os demais
colegas, representantes das grandes famílias da França. Ali já se revelava sua
sede pela distinção, uma obsessão do filho de burgueses em busca de
reconhecimento entre os nobres. Ao término de sua vida escolar, em 1711, seu
destino já estava decidido: a carreira em letras.
Mas seu gosto
pela provocação lhe faria pagar caro. Por causa de versos satíricos contra a
família real, o jovem aspirante a poeta amargou 11 meses na prisão da Bastilha.
Após a libertação, o jovem autor obteve o perdão real e foi recebido por
Philippe d’Orléans, regente responsável por sua detenção. Como prova de
sinceridade, o nobre lhe propôs o pagamento de uma pensão alimentar. Na
resposta, a língua ferina de Voltaire não se conteve: “Eu agradeço Vossa Alteza
por querer se encarregar de minha alimentação, mas eu vos suplico de não se
encarregar mais de minha moradia”. Essa atitude irreverente acompanharia o
filósofo em todos os seus embates – fossem eles pessoais ou universais.
Em pouco tempo,
Voltaire tornou-se um escritor aclamado em toda a Europa. Mas o que os leitores
atuais conhecem de sua produção literária? À parte Cândido ou o Otimismo e
Zadig ou o Destino (sua famosa resposta ao Discurso sobre a Origem e os
Fundamentos de Desigualdade entre os Homens, de seu desafeto JeanJacques
Rousseau), além de alguns trechos de ensaios históricos e filosóficos, quase
nada, responde Pierre Milza. Mas por que uma obra tão vasta tem sido, em sua
maior parte, ignorada? Simples: não é o escritor de sucesso do século 18 que
interessa aos contemporâneos, mas o defensor dos direitos humanos, o “amigo da
humanidade”, o símbolo do Iluminismo. “Para nós, homens e mulheres do século
21, é esse Voltaire que habita nossa memória”, diz Milza.
Um caso
universal
Todas as lutas
travadas pelo filósofo podem, de certa forma, ser simbolizadas pelo debate em
torno do Caso Calas. Em 9 de março de 1762, o comerciante Jean Calas foi
condenado em Toulouse a ter os membros partidos, ser estrangulado e queimado na
fogueira. O réu fora acusado de matar o filho, encontrado enforcado na casa da
família. Na verdade, a morte havia sido causada por suicídio – Calas escondera
o fato para evitar o tratamento infame reservado na época aos cadáveres de quem
se matava. De nada adiantou, depois, explicar isso à Justiça.
Em um
julgamento repleto de falhas, o veredicto já havia sido decidido
antecipadamente: Calas, protestante convertido, tinha assassinado o filho
porque o jovem era católico (vale lembrar que a França era marcada por uma rígida
intolerância religiosa). Um caso perfeito para a indignação de Voltaire,
crítico feroz do fanatismo, não importa sob que religião estivesse acobertado.
Ao tomar conhecimento dos detalhes do processo, menos de um mês depois da
execução de Calas, o filósofo se lançou na maior batalha de sua vida, usando
para fins políticos a notoriedade adquirida por meio de sua obra.
Durante três
anos, de seu reduto na vila de Ferney (hoje Ferney-Voltaire, no leste da
França), ele escreveu centenas de cartas a sua rede de correspondentes
influentes – nobres, ministros, embaixadores, escritores, homens de finanças e
até membros da Igreja – para mobilizar o máximo de pessoas pela sua causa: a
revisão do processo de Jean Calas. Em vez de se dirigir à autoridade máxima como
cortesão respeitoso, seguindo o costume da época, Voltaire resolveu agitar a
sociedade civil para fazer pressão sobre o poder. Segundo Pierre Milza, esse
uso da opinião pública é a grande inovação introduzida por Voltaire no século
do Iluminismo. O filósofo surge como o intelectual autônomo, “uma figura que
vai marcar durante mais de dois séculos a história política e cultural da
Europa”.
Para Voltaire,
o Caso Calas trazia um significado universal. Não se tratava apenas de obter a
reabilitação de um inocente, mas de questionar as razões que levaram a sua
condenação equivocada, baseada no fanatismo e na intolerância. Voltaire não
poupava de ataques as grandes religiões e o que ele chamava de “despotismo do
espírito”. Ao mesmo tempo, entretanto, dizia-se crente em Deus – no sentido de
uma “religião natural” que via um grande “relojoeiro” por trás do Universo.
Voltaire acabou
vitorioso no Caso Calas, derrotando os magistrados e o clero: a reabilitação
póstuma foi obtida e os juízes que haviam condenado o inocente, afastados. Em
30 de março de 1778, depois de duas décadas em Ferney, o filósofo retornou a
Paris, onde foi acolhido em triunfo e ovacionado por onde passava. Foi a
apoteose final do combatente público. Voltaire morreu na capital francesa em 30
de maio, no hotel de Villette, sem poder assistir aos primeiros sinais da era
revolucionária que se aproximava.
Apesar de não
ter visto a queda da Bastilha, que ocorreu pouco mais de 11 anos após sua
morte, Voltaire tinha previsto que a França estava prestes a passar por uma
grande transformação. Catorze anos antes da Revolução Francesa, ele escrevera:
“Tudo o que vejo lança as sementes de uma revolução que ocorrerá de qualquer
maneira e da qual não terei o prazer de ser testemunha. Os franceses chegam
tarde, mas acabam chegando”. Mas é preciso ter cuidado, alerta Pierre Milza:
quando Voltaire fala de “revolução” em suas obras históricas, nunca é para
evocar uma transformação brutal e repentina, mas, pelo contrário, para
descrever um processo demorado de mutação profunda. Por isso, Milza é cauteloso
com os que definem o filósofo como “precursor” da Revolução de 1789: “As
mudanças por ele conclamadas não visam a destruir a monarquia, mas sim
rejuvenescê-la e reforçá-la ao livrá-la das escórias que paralisam sua ação. Voltaire
não é um fervente partidário da República. Seu ideal permanece o de uma
monarquia à inglesa”.
Para Milza, o
rumo que a Revolução tomou a partir de 1792 (com o período do Terror e a
profusão de execuções na guilhotina) teria horrorizado o Voltaire defensor dos
direitos humanos. E na França atual, não por acaso, a memória do filósofo tem
sido invocada com freqüência, diante de crescentes sinais de intolerância. Um
pouco mais do espírito voltairiano talvez não fizesse mesmo mal aos franceses.
Polemista eterno
Voltaire foi alvo de protestos de muçulmanos em 2005
Em 8 de
dezembro de 2005, a tranqüilidade do pacífico vilarejo francês de
Saint-Genis-Pouilly, na fronteira com a Suíça, foi quebrada por uma tentativa
de censura. Associações muçulmanas queriam proibir a peça O Fanatismo ou Maomé,
o Profeta. O texto que causou tanta comoção tinha mais de 260 anos de idade:
foi escrito em 1741 por Voltaire, ironicamente também autor do Tratado Sobre a
Tolerância (um libelo contra a intolerância, o fanatismo e o ódio). Para
completar, o episódio ocorreu logo em Saint-Genis-Pouilly, vizinha a
Ferney-Voltaire – cidade que foi o lar do filósofo durante 18 anos e mudou de
nome em sua homenagem. Na época, Hafid Ouardiri, porta-voz da Mesquita de
Genebra, na Suíça, atravessou a fronteira para exigir o cancelamento da leitura
teatral do texto por considerar a peça “blasfematória”. Em um comunicado, as
associações muçulmanas definiram a peça como “um ataque explícito à paz
islâmica”. O prefeito de Saint-Genis-Pouilly, Hubert Bertrand, não cedeu:
“Somente o fato de vir nos dizer que não temos o direito de ler este texto é
uma agressão. Quer o senhor goste ou não, nós vivemos em uma república. O
direito de expressão é importante”, respondeu. A leitura da peça foi realizada na
data prevista, mas sob proteção policial. Manifestantes contrários ao evento
incendiaram um carro, lixeiras e a entrada de uma escola. Ao tentar impedir os
atos de vandalismo, bombeiros foram atacados com pedras. Para o prefeito de
Saint-Genis-Pouilly, o fato, mesmo que protagonizado por uma minoria, foi um
“alerta”. “A questão não é ser anti-religioso ou antimuçulmano, mas defender a
laicidade e o direito de cada um”. Se fosse vivo, Voltaire teria certamente
muito o que dizer aos nossos contemporâneos.
A obra
Voltaire, Pierre Milza, Perrin, 2007, 26,50 euros
Fernando Eichenberg | 01/02/2008 00h00
Pequena resenha sobre uma biografia de Voltaire comentando especialmente a defesa que o "filósofo das Luzes" fez da tolerância religiosa e dos direitos humanos.
Professor de Filosofia -
Pense fora da caixa!
Lola
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